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A parasita azul/I

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I

VOLTA AO BRAZIL


Ha cêrca de deseseis annos, desembarcava no Rio de Janeiro, vindo da Europa, o sr. Camillo Seabra, goyano de nascimento, que alli fôra estudar medicina e voltava agora com o diploma na algibeira e umas saudades no coração. Voltava depois de uma ausencia de oito annos, tendo visto e admirado as principaes cousas que um homem póde ver e admirar por la, quando não lhe falta gôsto nem meios. Ambas as cousas possuia, e se tivesse tambem, não digo muito, mas um pouco mais de juizo, houvera gozado melhor do que gozou, e com justiça poderia dizer que vivêra.

Não abonava muito os seus sentimentos patrioticos o rosto com que entrou a barra da capital brazileira. Trazia-o fechado e merencorio, como quem abafa em si alguma cousa que não é exactamente a bemaventurança terrestre. Arrastou um olhar aborrecido pela cidade, que se ia desenrolando á proporção que o navio se dirigia ao ancoradouro. Quando veiu a hora de desembarcar fel-o com a mesma alegria com que o reu transpõe os umbraes do carcere. O escaler affastou-se do navio em cujo mastro fluctuava uma bandeira tricolor; Camillo murmurou comsigo:

— Adeus, França!

Depois envolveu-se n’um magnífico silêncio e deixou-se levar para terra.

O espectaculo da cidade, que elle não via ha tanto tempo, sempre lhe prendeu um pouco a attenção. Não tinha porêm dentro da alma o alvorôço de Ulysses ao ver a terra da sua patria. Era antes pasmo e tedio. Comparava o que via agora com o que vira durante longos annos, e sentia a mais e mais apertar-lhe o coração a dolorosa saudade que o minava. Encaminhou-se para o primeiro hotel que lhe pareceu conveniente, e alli determinou passar alguns dias, antes de seguir para Goyaz. Jantou solitario e triste com a mente cheia de mil recordações do mundo que acabava de deixar, e para dar ainda maior desafôgo á memoria, apenas acabado o jantar, estendeu-se n’um canape, e começou a desfiar comsigo mesmo um rosario de crueis desventuras.

Na opinião d’elle, nunca houvera mortal que mais dolorosamente experimentasse a hostilidade do destino. Nem no martyrologio cristão, nem nos tragicos gregos, nem no livro de Job havia sequer um pallido esbôço dos seus infortunios. Vejamos alguns traços patheticos da existencia do nosso heroe.

Nascêra rico, filho de um proprietario de Goyaz, que nunca vira outra terra alêm da sua provincia natal. Em 1828 estivera alli um naturalista francez, com quem o commendador Seabra travou relações, e de quem se fez tão amigo, que não quiz outro padrinho para o seu unico filho, que então contava um anno de edade. O naturalista, muito antes de o ser, commettêra umas venialidades poeticas que mereceram alguns elogios em 1810, mas que o tempo, — velho trapeiro da eternidade, — levou comsigo para o infinito depósito das cousas inuteis. Tudo lhe perdoára o ex-poeta, menos o esquecimento de um poema em que elle metrificára a vida de Furio Camillo, poema que ainda então lia com sincero enthusiasmo. Como lembrança d’esta obra da juventude, chamou elle ao afilhado Camillo, e com esse nome o baptisou o padre Maciel, a grande aprazimento da familia e seus amigos.

— Compadre, disse o comendador ao naturalista, se este pequeno vingar, hei de mandal-o para sua terra, a aprender medicina ou qualquer outra cousa em que se faça homem. No caso de lhe achar geito para andar com plantas e mineraes, como o senhor, não se acanhe; dê-lhe o destino que lhe parecer como se fôra seu pae, que o é, espiritualmente fallando.

— Quem sabe se eu viverei n’esse tempo? disse o naturalista.

— Oh! há de viver! protestou Seabra. Esse corpo não engana; a sua têmpera é de ferro. Não o vejo eu andar todos os dias por esses mattos e campos, indifferente a soes e a chuvas, sem nunca ter a mais leve dôr de cabeça? Com metade dos seus trabalhos ja eu estava defunto. Ha de viver e cuidar do meu rapaz, apenas elle tiver concluido ca os seus primeiros estudos.

A promessa de Seabra foi pontualmente cumprida. Camillo seguiu para Paris, logo depois de alguns preparatorios, e alli o padrinho cuidou d’elle como se realmente fôra seu pae. O commendador não poupava dinheiro para que nada faltasse ao filho; a mezada que lhe mandava podia bem servir para duas ou tres pessoas em eguaes circumstâncias. Alêm da mezada, recebia elle por occasião da Paschoa e do Natal amendoas e festas que a mãe lhe mandava, e que lhe chegavam ás mãos debaixo da fórma de alguns excellentes mil francos.

Até aqui o unico ponto negro na existencia de Camillo, era o padrinho, que o trazia peado, com receio de que o rapaz viesse a perder-se nos precipicios da grande cidade. Quiz, porêm, a sua boa estrella que o ex-poeta de 1810 fosse repousar no nada ao lado das suas producções extinctas, deixando na sciencia alguns vestigios da sua passagem por ella. Camillo apressou-se a escrever ao pae uma carta cheia de reflexões philosophicas.

O periodo final dizia assim:

« Em summa, meu pae, se lhe parece que eu tenho o necessario juizo para concluir aqui os meus estudos, e se tem confiança na boa inspiração que me ha de dar a alma d’aquelle que la se foi d’este valle de lagrymas para gozar a infinita bemaventurança, deixe-me ca ficar até que eu possa regressar ao meu paiz como um cidadão esclarecido e apto para o servir, como é do meu dever. Caso a sua vontade seja contrária a isto que lhe peço, diga-o com franqueza, meu pae, porque então não me demorarei um instante mais n’esta terra, que ja foi meia patria para mim, e que hoje (hélas!) é apenas uma terra de exilio. »

O bom velho não era homem que pudesse ver por entre as linhas d’esta lacrymosa epistola o verdadeiro sentimento que a dictára. Chorou de alegria ao ler as palavras do filho, mostrou a carta a todos os seus amigos, e apressou-se a responder ao rapaz que podia ficar em Paris todo o tempo necessario para completar os seus estudos, e que, alêm da mezada que lhe dava, nunca recusaria tudo quanto lhe fosse indispensavel em circumstâncias imprevistas. Alêm d’isto, approvava de coração os sentimentos que ele manifestava em relação á sua patria e á memoria do padrinho. Transmittia-lhe muitas recomendações do tio Jorge, do padre Maciel, do coronel Veiga, de todos os parentes e amigos, e concluia deitando-lhe a benção.

A resposta paterna chegou ás mãos de Camillo no meio de um almôço, que elle dava no Cafe de Madrid a dous ou tres estroinas de primeira qualidade. Esperava aquillo mesmo, mas não resistiu ao desejo de beber á saude do pae, acto em que foi acompanhado pelos elegantes milhafres seus amigos. N’esse mesmo dia planeou Camillo algumas circumstâncias imprevistas (para o commendador) e o proximo correio trouxe para o Brazil uma extensa carta em que elle agradecia as boas expressões do pae, dizia-lhe as suas saudades, confiava-lhe as suas esperanças, e pedia-lhe respeitosamente, em post scriptum, a remessa de uma pequena quantia de dinheiro.

Graças a éstas facilidades atirou-se o nosso Camillo a uma vida sôlta e dispendiosa, não tanto, porêm, que lhe sacrificasse os estudos. A intelligencia que possuia, e certo amor proprio que não perdêra, muito o ajudaram n’este lance; concluido o curso, foi examinado, approvado e doutorado.

A notícia do acontecimento foi transmittida ao pae com o pedido de uma licença para ir ver outras terras da Europa. Obteve a licença, e sahiu de París para visitar a Italia, a Suissa, a Allemanha e a Inglaterra. No fim de alguns mezes estava outra vez na grande capital, e ahi reatou o fio da sua antiga existencia, ja livre então de cuidados extranhos e aborrecidos. A escala toda dos prazeres sensuaes e frivolos foi percorrida por este esperançoso mancebo com uma sofreguidão que parecia antes suicidio. Seus amigos eram numerosos, solicitos e constantes; alguns não duvidavam dar-lhe a honra de o constituir seu credor. Entre as môças de Corintho era o seu nome verdadeiramente popular; não poucas o tinham amado até o delirio. Não havia pateada célebre em que a chave dos seus aposentos não figurasse, nem corrida, nem ceiata, nem passeio, em que não occupasse um dos primeiros lugares cet aimable brésilien.

Desejoso de o ver, escreveu-lhe o commendador pedindo que regressasse ao Brazil; mas o filho, parisiense até á medula dos ossos, não comprehendia que um homem pudesse sahir do cerebro da França para vir internar-se em Goyaz. Respondeu com evasivas e deixou-se ficar. O velho fez vista grossa a ésta primeira desobediencia. Tempos depois insistiu em chamal-o; novas evasivas da parte de Camillo. Irritou-se o pae e a terceira carta que lhe mandou foi ja de amargas censuras. Camillo cahiu em si e dispoz-se com grande magua a regressar á patria, não sem esperanças de voltar e acabar os seus dias no boulevard dos Italianos ou á porta do Cafe Helder.

Um incidente, porêm, demorou ainda d’esta vez o regresso do joven médico. Elle, que até alli vivêra de amores faceis e paixões de uma hora, veiu a enamorar-se repentinamente de uma linda princeza russa. Não se assustem; a princeza russa de quem fallo, affirmavam algumas pessoas que era filha da rua do Bac e trabalhára n’uma casa de modas, até á revolução de 1848. No meio da revolução apaixonou-se por ella um major polaco, que a levou para Varsovia, d’onde acabava de chegar transformada em princeza, com um nome acabado em ine ou em off, não sei bem. Vivia mysteriosamente, zombando de todos os seus adoradores, excepto de Camillo, dizia ela, por quem sentia que era capaz de aposentar as suas roupas de viuva. Tão depressa, porêm, soltava éstas expressões irreflectidas, como logo protestava com os olhos no ceu:

— Oh! não! nunca, meu caro Alexis, nunca deshonrarei a tua memoria unindo-me a outro.

Isto eram punhaes que dilaceravam o coração de Camillo. O joven médico jurava por todos os santos do calendario latino e grego que nunca amára a ninguem como á formosa princeza. A barbara senhora parecia ás vezes disposta a crer nos protestos de Camillo; outras vezes porêm abanava a cabeça e pedia perdão á sombra do venerando principe Alexis. N’este meio tempo chegou uma carta decisiva do commendador. O velho goyano intimava pela ultima vez ao filho que voltasse, sob pena de lhe suspender todos os recursos e trancar-lhe a porta.

Não era possivel tergiversar mais. Imaginou ainda uma grave molestia; mas a ideia de que o pae podia não acreditar n’ella e suspender-lhe realmente os meios, aluiu de todo este projecto. Camillo nem ânimo teve de ir confessar a sua posição á bella princeza; receava alêm disso que ella, por um rasgo de generosidade,—natural em quem ama,—quizesse dividir com elle as suas terras de Novogorod. Acceital-as seria humiliação, recusal-as poderia ser offensa. Camillo preferiu sahir de Paris deixando á princeza uma carta em que lhe contava singelamente os acontecimentos e promettia voltar algum dia.

Taes eram as calamidades com que o destino quizera abater o ânimo de Camillo. Todas ellas repassou na memoria o infeliz viajante, até que ouviu bater oito horas da noite. Sahiu um pouco para tomar ar, e ainda mais se lhe accenderam as saudades de París. Tudo lhe parecia lugubre, acanhado, mesquinho. Olhou com desdem olympico para todas as lojas da rua do Ouvidor, que lhe pareceu apenas um becco muito comprido e muito illuminado. Achava os homens deselegantes, as senhoras desgraciosas. Lembrou-se, porêm, que Santa Luzia, sua cidade natal, era ainda menos parisiense que o Rio de Janeiro, e então, abatido com ésta importuna ideia correu para o hotel e deitou-se a dormir.

No dia seguinte, logo depois do almôço, foi á casa do correspondente de seu pae. Declarou-lhe que tencionava seguir dentro de quatro ou cinco dias para Goyaz, e recebeu d’elle os necessarios recursos, segundo as ordens ja dadas pelo commendador. O correspondente accrescentou que estava incumbido de lhe facilitar tudo o que quizesse no caso de desejar passar algumas semanas na côrte.

— Não, respondeu Camillo; nada me prende á côrte, e estou ancioso por me ver a caminho.

— Imagino as saudades que ha de ter. Ha quantos annos?

— Oito.

— Oito! Ja é uma ausencia longa.

Camillo ia-se dispondo a sahir, quando viu entrar um sujeito alto, magro, com alguma barba em baixo do queixo e bigode, vestido com um paletó de brim pardo e trazendo na cabeça um chapéu de chile. O sujeito olhou para Camillo, estacou, recuou um passo, e depois de uma razoavel hesitação, exclamou:

— Não me engano! é o sr. Camilo!

— Camillo Seabra, com effeito, respondeu o filho do commendador, lançando um olhar interrogativo ao dono da casa.

— Este senhor, disse o correspondente, é o sr. Soares, filho do negociante do mesmo nome, da cidade de Santa Luzia.

— Que! é o Leandro que eu deixei apenas com um buço…

— Em carne e osso, interrompeu Soares; é o mesmo Leandro que lhe apparece agora todo barbado, como o senhor, que tambem está com uns bigodes bonitos!

— Pois não o conhecia…

— Conheci-o eu apenas o vi, apezar de o achar muito mudado do que era. Está agora um moço apurado. Eu é que estou velho. Ja ca estão vinte e seis… Não se ria: estou velho. Quando chegou?

— Hontem.

— E quando segue viagem para Goyaz?

— Espero o primeiro vapor de Santos.

— Nem de proposito! Iremos juntos.

— Como está seu pae? Como vae toda aquella gente? O padre Maciel? O Veiga? Dê-me noticias de todos e de tudo.

— Temos tempo para conversar á vontade. Por agora so lhe digo que todos vão bem. O vigario é que esteve dous mezes doente de uma febre maligna e ninguem pensava que arribasse; mas arribou. Deus nos livre que o homem adoeça, agora que estamos com o Espirito Santo á porta.

— Ainda se fazem aquellas festas?

— Pois então! O imperador este anno, é o coronel Veiga; e diz que quer fazer as cousas com todo o brilho. Ja prometteu que daria um baile. Mas nós temos tempo de conversar, ou aqui ou em caminho. Onde está morando?

Camillo indicou o hotel em que se achava, e despediu-se do comprovinciano, satisfeito de haver encontrado um companheiro que de algum modo lhe diminuísse os tedios de tão longa viagem. Soares chegou á porta e acompanhou com os olhos o filho do commendador até perdêl-o de vista.

— Veja o senhor o que é andar por essas terras extrangeiras, disse elle ao correspondente, que tambem chegava á porta. Que mudança fez aquelle rapaz, que era pouco mais ou menos como eu!