A velhice do Padre Eterno/III

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No topo do calvario erguia-se uma cruz,
E pregado sobre ella o corpo do Jesus,
Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas
Corriam pelo ar como grandes manadas
De bufalos. A lua ensanguentada e fria,
Triste como um soluço immenso de Maria,
Lançava sobre a paz das coizas naturaes
A merencoria luz feita de brancos ais.
As arvores que outr'ora em dias de calor
Abrigaram Jesus, cheias de magua e dôr,
Sonhavam, na mudez herculea dos heroes.
Deixaram de cantar todos os rouxinoes,
Um silencio pesado amortalhava o mundo.
Unicamente ao longe o velho mar profundo
Descantava chorando os psalmos da agonia.

Jesus, quasi a expirar, cheio de dôr, sorria.
Os abutres crueis pairavam lentamente
A farejar-lhe o corpo; ás vezes de repente
Uma nuvem toldava a face do luar,
E um clarão de gangrena, estranho, singular,
Lançava sob a cruz uns tons esverdeados.
Crucitavam ao longe os corvos esfaimados;
Mas passado um instante a lua branca e pura
Irrompia outra vez da grande nevoa escura,
E inundavam-se então as chagas de Jesus
Nas pulverisações balsamicas da luz.

No momento em que havia a grande escuridão,
Christo sentiu alguem aproximar-se, e então
Olhou e viu surgir no horror das trevas mudas
O cobarde perfil sacrilego de Judas.
O traidor, contemplando o olhar do Nazareno,
Tão cheio de desdem, tão nobre, tão sereno,
Convulso de terror fugiu... Mas nesse instante
Surgiu-lhe frente a frente um vulto de gigante,
Que bradou:

É chegado emfim o teu castigo

O traidor teve medo e balbuciou:

— Amigo,
Que pretendes de mim? dize, por quem esperas?
Quem és tu?

— O Remorso, um caçador de féras,
Disse o gigante. Eu ando ha mais de seis mil annos
A caçar pelo mundo as almas dos tiranos,
Do traidor, do ladrão, do vil, do scelerado;
E depois de as prender tenho-as encarcerado
Na enormissima jaula atroz da expiação.
E quando eu entro ali na immensa confusão
De tigres, de leões, d'abutres, de chacaes,
De rugidos febris e de gritos bestiaes,
Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto.
Caim baixa a pupilla e vai deitar-se a um canto.
E quando em summa algum dos monstros quer luctar
Azorrago-o co'a luz febril do meu olhar,
Dando-lhe um pontapé, como n'um cão mendigo.
Já sabes quem eu sou, Judas; anda comigo!

Como um preso que quer comprar um carcereiro,
Judas tirou do manto a bolça do dinheiro,
Dizendo-lhe:

— Aqui tens, e deixa-me partir...

O gigante fitou-o e começou a rir.

Houve um grande silencio. O infame Iskariote,
Como um negro que vê a ponta d'um chicote,
Tremia. Finalmente o vulto respondeu:

«Judas, podes guardar esse dinheiro; é teu.
O oiro da traição pertence-lhe ao traidor,
Como o riso á innocencia e como o aroma á flôr.
Esse oiro é para ti o eterno pesadello.
Oh! guarda-o, guarda-o bem, que eu quero derretel-o,
E lançar-t'o depois caustico, vivo, ardente,
Lançar-t'o gota a gota, inexoravelmente
Em cima da consciencia, a pudrida, a execravel!
Com elle hei de fundir a algema inquebrantavel,
A grilheta que a tua esqualida memoria
Trará, arrastará pelas galés da Historia,
Durante a eternidade illimitada e calma.
Essa bolsa que ahi tens é o cancro da tua alma:
Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso,
Como a lepra nojenta ao peito do leproso,
Como o iman ao ferro e o verme á podridão.
Não poderás jámais largal-a da tua mão!
És traidor, assassino, hypocrita, perjuro;
A tua alma lançada em cima d'um monturo
Faria nodoa. És tudo o que ha de mais vil,
Desde o ventre do sapo á baba do reptil.
Sahe da existencia! dize á sombra que te acoite.
Monstro, procura a paz! verme, procura a noite!
Que o sol não veja mais um unico momento
O teu olhar obliquo e o teu perfil nojento.
Esse crime, bandido, é um crime que profana,
Todas as grandes leis da vida universal.
Esconde-te na morte, assim como um chacal
No seu covil. Adeus, causas-me nojo e asco.
Deixo dentro de ti, Judas, o teu carrasco!
És livre; adeus. Já brilha o astro matutino,
E eu, caçador feroz, cumprindo o meu destino,
Continuarei caçando os javalis nos matos.»

E dito isto partiu a procurar Pilatos.

Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada.
Judas, ficando só, meteu-se pela estrada,
Caminhando ligeiro, impavido, terrivel,
Como um homem que leva um fim imprescriptivel
Uma ideia qualquer, heroica e sobranceira;
De repente estacou. Havia uma figueira
Projectando na estrada a larga sombra escura;
Judas, desenrolando a corda da cintura,
Subiu acima, atou-a a um ramo vigoroso,
Dando um laço á garganta. O seu olhar odioso
Tinha n'esse momento um brilho diamantino,
Recto como um juiz, forte como um destino.

N'isto echoou atravez do negro céo profundo
A voz celestial de Jesus moribundo,
Que lhe disse:

— «Traidor, concedo-te o perdão.
Além de meu carrasco és inda o meu irmão.
Pregaste-me na cruz; é o mesmo, fica em paz.
Eu costumo esquecer o mal que alguem me faz.
Eu tenho até prazer, bem vês, no sacrificio.
Não te cause remorso o meu atroz suplicio,
Estes golpes crueis, estas horriveis dores.
As chagas para mim são outras tantas flôres!»

Judas fitou ao longe os cerros do calvario,
E erguendo-se viril, soberbo, extraordinario,
Exclamou:

— «Não acceito a tua compaixão.
A Justiça dos bons consiste no perdão.
Un justo não perdôa. A justiça é implacavel.
A minha acção é infame, hedionda, miseravel;
Preguei-te nessa cruz, vendi-te aos Farizeus.
Pois bem, sendo eu um monstro e sendo tu um Deus,
Vais vêr como esse monstro, ó pobre Christo nu,
É maior do que Deus, mais justo do que tu:
Á tua caridade humanitaria e doce,
Eu prefiro o dever terrivel!»

E enforcou-se.