Anais da Ilha Terceira/I/II

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Pelo que fica dito no capítulo antecedente, sempre temos as ilhas dos Açores descobertas pelos Portugueses, ou fosse por Gonçalo Velho Cabral[1], por Nuno Tristão, António de Nole e seu companheiro Álvaro Fernandes da Câmara; ou finalmente por Vicente de Lagos[2] e Luiz Cadamosto, depois da conquista de Arguim, das ilhas Garças, e de Guiné; não obstante dizer Guilherme Guthrie[3] resolutamente: — que as ilhas dos Açores foram descobertas por João van der Berg, mercador de Bruges, no meio do século XV, em uma viagem para Lisboa; o qual fora pela tempestade lançado para estas ilhas, que achou sem habitantes, e lhes chamou Ilhas Flamengas. Que à sua chegada a Lisboa se gabara disto descobertamente; à vista do que se fizeram imediatamente à vela e foram tomar posse delas os Portugueses, a quem ainda pertencem: e foram chamadas em geral Açores, do grande número de açores e falcões achados entre elas.

Ora que mais se poderá alegar em um insondável pélago de incertezas? Parece que cada um discorreu à sua vontade! De parte a parte falecem as provas decisivas, não havendo mais que a possibilidade de uma e outra coisa, inclinando-se mais a favor dos Portugueses. Também é certo que não influi nada na nossa glória serem estes, ou aqueles que as descobrissem; quando a maior parte dos escritores afirmam sermos nós, e os primeiros que as habitámos. E finalmente lhes não esqueceu aos nossos rivais de glória o apelido Flamengas, ou Flândricas, que em princípio se lhes deu, por serem em grande parte habitadas pelos flamengos[4]. Porém isto não obsta, porquanto sabemos que a ilha Terceira, Faial, Fico e São Jorge tiveram os seus primeiros donatários desta nação; isto é: Jácome de Bruges, Joz de Utra, e Guilherme Brandath, ou Vandarago[5], que todos andavam, e outros muitos, ao serviço dos Infantes e Reis de Portugal, sem que eles fossem os descobridores de terras, porquanto aos Portugueses se entregavam estas empresas, sendo mui raros os exemplos em contrário.

Pela leitura dos irrefragáveis documentos, extraídos da Torre Tombo, e insertos na importantíssima Memória sobre o Descobrimento de uma Ilha ao Norte da Terceira[6], se vê não ser destituída de fundamento a notícia tradicional em que se fundou Frutuoso, Livro 6.º, capítulo 7.º, a quem seguiu Cordeiro na História Insulana, Livro 6.º, capítulo 20, § 9, a respeito dos primeiros habitantes que vieram a esta ilha serem flamengos: dizem estes autores que depois de descoberta a ilha Terceira veio a ela um Fernão Dulmo, de nação flamengo, ou francês, e entrando pelo norte habitou no lugar, que ali fez, das Quatro Ribeiras, e com trinta pessoas, que consigo trouxera; e pode ser, que este fosse o que ali levantou a primeira ermida, ou igreja, dedicada a Santa Beatriz, primeira freguesia que houve em toda a ilha; e querendo abrir e cultivar a terra (de que parece não entendia muito), impaciente de logo lhe não responder como ele desejava, se voltou a Portugal; e ou deste, ou de outrem, informando-se o fidalgo Jácome de Bruges, se ofereceu ao Infante a ir povoar a dita ilha. Ora, para tributarmos o devido respeito a esta antiquíssima tradição, diremos o que sobre o assunto achámos escrito.

Da carta de doação a Fernão Dulmo, cavaleiro da casa de El-Rei D. João II, pelo Duque D. Manuel, datada em Santarém a 3 de Março de 1486, consta ser ele já capitão da ilha Terceira, ou na ilha Terceira, como algumas vezes se trata no processo do contracto com o sócio João Afonso do Estreito; e é esta notícia que não deu algum dos historiadores, ou genealogistas açorianos, quando trataram dos nossos capitães[7]. Mas não pareceria acertado considerá-lo capitão donatário de alguma capitania da Terceira, porque sabemos que nesta data de 1486 estavam providos na parte de Angra João Vaz Corte Real, confirmado pelo Duque D. Diogo, em 3 de Maio de 1483, e na parte da Praia Antão Martins, também confirmado pelo mesmo Duque a 26 de Março de 1483 e contra eles ainda disputava Duarte Paim, confiado na carta de seu sogro Jácome de Bruges. Assim, para o considerarmos provido em qualquer destas capitanias, ou em ambas, faríamos injustiça à memória do referido Duque, o qual pouco antes acabava de assinar alvará de confirmação aos dois; ou taxaríamos de injusto a seu irmão, o Duque D. Manuel, que, ainda bem não havia entrado a reger o Grão-Mestrado de Cristo, logo o assinalava com uma acção pouco decorosa, qual se considera negar a posse de uma coisa a quem de tantos anos a tinha[8]. Antes quiséramos aventurar que Fernão Dulmo fora capitão ad honorem[9]; ou pelas empresas dos descobrimentos em que estava empregado e que eram a moda daqueles tempos; ou por ser capitão daquela parte da ilha, que de muitos anos andava em questão, ignorando-se a qual dos donatários pertencia, e que pode ser já lhe houvesse sido dada para a cultivar, ou agora concedida conforme a recomendação da Infanta D. Brites, ou do Infante seu marido, antes do ano de 1474, em que terminou a divisão da ilha pela Ribeira Seca, em direcção do Norte onde está o marco dos Folhadais. A leitura do seguinte artigo do foral da alfândega de Angra[10] me confirma na última suposição. Fernão Dulmo foi capitão donatário da parte da ilha que compreende desde a ribeira da Agualva até ao Biscoito Bravo, limite das Quatro Ribeiras; foi ele o que ali desembarcou com trinta pessoas, cultivou a terra, deu princípio à igreja; e impaciente de não achar correspondência na terra, ingrata a seus suores, a abandonou para sempre. E todavia não foi este o primeiro povo da ilha Terceira, nem esta foi a primeira e única igreja, onde iam ouvir missa os da Praia, como é tradição, a qual na origem dos povos sempre caminha ao mais alto, ainda com o socorro das fábulas, fundando-se em quimeras[11]. O referido artigo do foral é o seguinte: Porque as terras das Quatro Ribeiras e Agualva para diante estão por dar, por aí haver nelas litígio entre os Capitães a quem pertencem de as dar: a qual coisa enquanto se não determina não hei por meu serviço, nem proveito da terra estarem assim por dar, vos mando que vós almoxarife da parte da Praia, e os escrivães de vossos ofícios, todos quatro as deis a quem quer que vo-las pedir, em ausência dos ditos Capitães. E as Cartas vão feitas em nome de todos: e digam como por meu mandado as destes.

Comprova-se a antiguidade deste foral por este artigo em que se dispõe das terras que eram objecto de litígios, os quais refere a Infanta D. Brites na carta de Álvaro Martins dividindo a ilha em duas capitanias no ano de 1474. Ele é em tudo contra a opinião daqueles, que disseram ser a primeira povoação da ilha nas Quatro Ribeiras; porque, a ser assim, não se mandaria cultivar o terreno aonde ela já existia. Talvez fosse este o terreno que se concedeu a Fernão Dulmo, onde ele fez as experiências de que acima se falou, em 1486, tempo em que é denominado capitão, e passou ao descobrimento da ilha, ou ilhas das Sete Cidades com o seu sócio João Afonso do Estreito[12], por se não achar ele em disposição para armar na ilha Terceira as duas caravelas, que se destinaram. Não padece dúvida que ao tempo que Fernão Dulmo é feito capitão da armada para o descobrimento, já era capitão da ilha Terceira, já nela habitava, e provavelmente que já era donatário da terra de Agualva e Quatro Ribeiras; devendo supor-se já acontecida a sua passagem para lá, e por mar, em razão de não ser aquele sítio acessível por terra, o qual se achava cerrado de mato bravo[13], impenetrável, além de entrecortado de muitos vales, ribeiras e biscoitos bravos.

Parece pois ter sido ele quem lançou os fundamentos da igreja[14] orago de Santa Beatriz em obséquio da Infanta, que nesse tempo governava, lembrando-se do seu nome, ou porque fosse ela que o proveu, ou porque resolveu a questão dos litigantes, como fica dito, que na verdade, em princípio tal, devia considerar-se uma guerra civil entre a nascente povoação; o que caibo muito na lembrança de um homem como era Fernão Dulmo, cavaleiro da casa de el-rei, e por este título obrigado a tais obséquios.

Talvez fosse em razão de possuir aquele extenso campo (até ao marco dos Folhadais, são quase quatro léguas) que o Duque D. Manuel o confirmou, e se chamava capitão na ilha Terceira, tomando-se a parte pelo todo. Finalmente, seja como for, Fernão Dulmo parece ser com a maior evidência, se não o primeiro povoador que saltou na Terceira logo depois do seu descobrimento, ao menos o primeiro povoador das Quatro Ribeiras, donatário daquele grande terreno. Ainda é verosímil que ele não se demorou ali por muito tempo; porque não consta deixasse descendentes; antes é tradição constante nos povos da mesma parte, que o vasto campo que fora objecto de tantas questões, e onde se acha hoje estendida a povoação, se dividiu pelos Albins, de quem descende o conde de Camarido, por João de Aguiar, e por João Scotto, cujos descendentes ainda apresentam documentos de posse bem demonstrativos da verdade tradicional[15].

Em conclusão: sendo estas as opiniões de maior vulto sobre o provável descobrimento da ilha Terceira, quando, como e por quem foi feito, devemos agora dizer o que se oferece a respeito do dia em que teve lugar, o qual parece fora dia festivo com especialidade dedicado ao Salvador do Mundo, e por isto foi denominada ilha de Jesus Cristo, e se lhe deram por armas um Cristo crucificado, e a Sé se chamou do Santíssimo Salvador; ainda que o Cabido tem por armas um Menino Jesus: donde procede o dizerem alguns, e parece atendível, que o dia do descobrimento fora em o 1.º de Janeiro, que é o da Circuncisão: e outros que fora o do Corpo de Deus; e finalmente que foi Quinta-feira Santa do ano de 1445 com o fundamento de serem as armas da cidade uma cruz[16] e ser a estação mais conveniente para se navegarem tais mares. E assim, não achámos outra coisa do que incertezas, e conjecturas, que nos fazem romper no mesmo pensamento do autor do Mapa de Portugal[17] falando da fundação de Lisboa: — A averiguação deste ponto é sumamente árdua, e não admite decisão absoluta, pelo remoto de sua antiguidade em que não há documento sólido que o determine, constituindo sem dúvida esta mesma incerteza uma das veneráveis excelências que a condecoram.

Agora quanto ao nome de ilha Terceira, já se disse foi pela ordem de seu descobrimento, depois das ilhas de Santa Maria, e do S. Miguel, e dela, como de sua capital, derivaram às outras o apelido de Terceiras[18] e também o de Ilhas de Baixo[19] pela sua situação, o que a cada passo se encontra em muitas cartas régias, doações, e outros diplomas do governo assim antigos como modernos. E a serem chamadas geralmente ilhas dos Açores, e andarem estas aves pintadas nas varas dos ministros da justiça, e senadores das Câmaras[20], serve de fundamento o terem-se achado em todas elas abundância de milhafres com que se confundiu o nome; porque os açores e falcões que se dizem encontrados nelas parecem tão fabulosos nestas ilhas[21] como a fénix lá nas regiões da Arábia.

Notas[editar]

  1. Se fosse o descobridor seria o donatário dela: a ela iria alguma hora e fariam menção disso os autores que destas ilhas trataram como Guedes, Góis, Barros, Frutuoso e outros (Cordeiro, Livro VI da História Insulana). Teve Carta das ilhas de Santa Maria em 1432, da ilha de São Miguel em 1444, e da Graciosa em 1455.
  2. Isto é a ilha Terceira, que se diz eles descobriram na volta de Cabo Verde.
  3. [Nota do editor: William Guthrie (1708-1770) foi um prolífico escritor de origem escocesa que, entre muitas outras obras de carácter histórico e geográfico, escreveu New Geographical, Historical, and Commercial Grammar; and Present State of the Several Kingdoms of the World ... (2 volumes, editado por Charles Dilley, Londres, 1770) onde se inclui o texto citado. O livro foi um dos maiores sucessos editoriais de todos os tempos, tendo conhecido mais de duas dezenas de edições, revistas e aumentadas, e múltiplas traduções e edições no estrangeiro. Foi também publicado com o título de A Universal Geography e de A New System of Modern Geography. Francisco Ferreira Drummond provavelmente refere-se à tradução francesa daquela obra que saiu com o título Nouvelle Géographie Universelle, traduzida do inglês por Noel e Soules, Paris, 1803.
  4. A ribeira dos Flamengos, no lugar hoje chamado Quatro Ribeiras, e aquela deste nome na ilha do Faial [nota do editor: a freguesia dos Flamengos], e o apelido de algumas famílias, atestam a existência deste facto, e ficaram como vestígios permanentes.
  5. [Nota do editor: Willem van der Hagen.]
  6. Por Bernardino José de Sena Freitas, impressa no ano de 1845. Já referimos esta Memória no Capítulo I [nota do editor: Freitas, Bernardino José de Sena – Memória Histórica sobre o Intentado Descobrimento de uma Suposta Ilha ao Norte da Terceira nos Anos de 1649 e de 1770, com muitas Notas Ilustrativas e Documentos Inéditos, Lisboa, na Imprensa Nacional, 1845, 4.º de 107 páginas].
  7. A fl. 63 está a carta referida — D. João por graça de Deus Rei de Portugal, e do Algarve de aquém a de além mar, em África Senhor de Guiné: — Fazemos saber que Fernão Dulmo, Cavaleiro e Capitão na Ilha Terceira por o Duque D. Manuel meu muita prezado e amado primo veio ora a nós e nos disse como ele nos queria dar achada uma grande Ilha ou Ilhas ou terra firme, por costa que se presume ser a ilha das Sete Cidades e isto tudo à sua própria custa e despesa, &c. &c.. Pode ser, não faltará quem aventure que este capitão o era de navios empregados na espera e defesa das armadas dos nossos descobrimentos, estacionado na Terceira para as dirigir e lhes dar farol; mas com que autoridade o digam não sei, porque disto tratariam os nossos escritores ainda que eventualmente o que não achámos.
  8. Também o mesmo Duque D. Manuel o confirmou em 6 de Abril de 1488. Em 19 de Maio de 1495 confirmado nas alcaidarias de Angra e S. Jorge (Livro 1.º da Câmara). Mas não aparece que lhe fosse outorgado o senhorio temporal destas ilhas ao Duque (veja-se Rui de Pina).
  9. Algumas vezes é tratado por Capitão-Mor da Armada.
  10. O padre Maldonado achou ainda um fragmento do primeiro foral que houve nas ilhas dos Açores, dado à ilha da Madeira em 1437, a 2 de Julho, em Santarém, copiado, acrescentado, e adoptado para estas ilhas: e da mesma forma o regimento de alfândega, que tudo foi dado em 23 de Abril de 1520, e nele se achava o artigo 32.º da maneira que acima se copia.
  11. Mr. l’Abbé de Vertot falando dos primeiros habitantes de Portugal, que se pretende descendam de Tubal: — on ne se peut guère remonter plus haut, même avec le secours de la fable. Chaque Nation a sa chimère au sujet de son origine.
  12. Celebraram estrumento de contrato a 12 de Julho de 1486 em Lisboa e se diz nele — apareceu aí, Fernão Dulmo Cavaleiro da Casa de el-rei nosso Senhor, e capitam na ilha Terceira, que ora vai por capitão a descobrir a Ilha das Sete Cidades por mandado de el-rei nosso Senhor e outro aí apareceu João Afonso do Estreito morador na Ilha da Madeira na parte do Funchal...
  13. Está na Câmara da Praia registada uma sentença do corregedor Luiz da Guarda, pela qual se vê que pelos anos de 1503 é que se fizeram o caminho do Fanal, e o de Cima que vai para a cidade de Angra, e outro para o mato, por estar a ilha impenetrável, e cerrada de mato bravo (veja-se o ano de 1503).
  14. Nem assim concordamos fosse ali baptizado Gaspar Gonçalves, o primeiro que na ilha nasceu, porque já devia estar acabada a igreja de Santa Ana, em Porta Alegre.
  15. A primeira data foi aos Albins desde a Ribeira da Agualva ao Cruzeiro: dali à Ribeira da Igreja a João de Aguiar: e desta ao Biscoito Bravo a terceira parte que pertenceu a João de Scotto. Nestes sítios tomaram suas terças, a saber — João de Aguiar em 12 de Março de 1548, tabelião João Anes Nobre; e Pedro Jácome e sua mulher Branca Gonçalves, a Genovesa, parentes daquele João Scotto, a 19 de Novembro de 1554, em que fundaram a capela do Bom Jesus no referido sítio de sua herdade, onde apenas hoje se mostram os vestígios dela. Todo o mais terreno que vai aos Folhadais parece que pertenceu por compra a Pedro Anes do Canto, Gonçalo Álvares Valadão, e outros progenitores que nele se aposentaram, como foram Gonçalo Álvares Pamplona, e Gomes Pamplona de Miranda.
  16. Assim lemos na carta de el-rei D. António, pela qual se mandou cunhar moeda nesta ilha, em data do 10 de Abril de 1580, a qual achei no Livro dos Acórdãos da Câmara da vila da Praia.
  17. O padre João Baptista de Castro.
  18. A respeito destes apelidos veja o padre António Cordeiro, no Livro 6, Capítulo 1.º, da História Insulana.
  19. Comummente são chamadas assim: São Jorge, Graciosa, Faial, Pico, Flores e Corvo.
  20. Por uma provisão de 12 de Julho de 1578, que está a fl. 273 do 2.º Livro do Registo da Câmara de Angra, se ordenou que os procuradores dos misteres tivessem os privilégios que el-rei D. Manuel concedera aos da ilha da Madeira, Ponta Delgada, e vila da Praia, e as varas que levassem nas procissões e tivessem no açougue ao partir da carne tivessem açores por armas que são as da cidade. E com efeito não só andavam pintadas nas varas, mas ainda no fim da haste da bandeira do senado se vê figurado o açor lavrado em prata.
  21. Na estação invernosa aparecem nestas ilhas muitas aves de arribada, o que dá argumento ao povo para acreditar nas ilhas encobertas; contudo na Terceira também se acham nos matos e nos pomares, o mocho e o bufo que de noite guerreiam as outras aves estranhamente — Illic vultures, hic Iuctifer bubo gemit (Séneca in Hércules Furens).