Anais da Ilha Terceira/I/III

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Deixámos escrito nos capítulos antecedentes o dia, mês e ano provável[1] em que foi descoberta a ilha Terceira de Nosso Senhor Jesus Cristo[2], e as armas que lhe foram dadas.

Atrevido parecerá o intento de tratar uma matéria onde ocorrem dúvidas sobre dúvidas, como bem o conheceu o elegante escritor Cândido Lusitano[3]; culpa do tempo que tudo do reduz a cinzas, encobrindo com elas os sucessos e acções mais ilustres. Como aquele autor vacilei com o temor de tropeçar, e às vezes sem tino, em quanto não saí do complicado labirinto em que me prendia, a cada passo. Agora porém com melhores auspícios venho datar com segurança o nascimento, e povoação desta ilha, entregue ao nobre cavalheiro Jácome de Bruges. Seguro é o norte que sigo; já não temo as borrascas da incerteza, ofereceu-se-me a luz em um documento único, e irrefragável[4]. Daqui por diante escurece outra vez a cronologia em espessas sombras, e falecem os sucessos, de quando em quando.

Atraído pela fama dos nossos descobrimentos, ou constrangido a evitar as grandes calamidades e opressões da guerra que naquele tempo se experimentavam, veio para o reino de Portugal o rico cavalheiro Jácome de Bruges, natural do condado de Flandres, e já tão conhecido na corte que lá casara com Sancha Rodrigues de Arce[5], ou de Toar[6], dama da Infanta D. Brites; com ela se achava ali, e com as duas filhas[7], empregado no serviço do Infante, que proficiente nos estudos matemáticos, com socorro de alguns sábios vindos de diferentes partes da Europa, empreendera os descobrimentos da Costa de África, e ilhas adjacentes às mesmas costas, bem como ao Reino[8].

Então Jácome de Bruges, correndo ali a fama do descobrimento e exploração da ilha de Jesus Cristo, ou levada pelos portugueses, ou pelos flamengos seus nacionais[9], ou por outros quaisquer aventureiros, animado no direito de petição, segundo os seus relevantes serviços, e fundado na base essencial da riqueza que o distinguia, e na sua capacidade e boa disposição para a empresa, foi ao Infante e lhe disse que porquanto desde ab initio, e memória dos homens, se não sabiam as Ilhas dos Açores sobre outro agressor Senhorio[10] salvo o seu[11] (veja-se a carta dada a Jácome de Bruges, primeira prova, — Documento A/Documento B —), nem a ilha de Jesus Cristo, terceira das ditas ilhas, a não souberam povoada de nenhuma gente que até agora fosse no mundo[12], e ao presente estava erma[13] e inabitada, que lhe pedia por mercê porquanto ele a queria povoar lhe fizesse dela mercê, e lhe desse sua autoridade para ele como Senhor das Ilhas.

Feito nestes termos o requerimento, o Infante lhe deferiu, doando-lhe a mesma ilha, por ser Jácome de Bruges tão rico e tão católico, que dele se fiou para povoá-la com boa gente que professasse a religião católica, e que ele mesmo viesse a habitá-la, tudo à sua custa, regendo-a em direito, e justiça; o que não fez a outro algum donatário, ainda que fosse descobridor; e lhe concedeu a capitania com o dízimo de todos os dízimos que a Ordem de Cristo ali tinha, não só para ele e também para o filho mais velho varão que lhe ficasse, mas ainda para a filha maior, não tendo filho varão, sem excepção alguma; exceptuando esta sucessão da lei mental: o que não concedeu a outro algum donatário, senão depois de muitos anos e de mui reiterados serviços.

Logo que o Infante houvera notícia certa dos graus e rumo das ilhas que se tinham descoberto intentando mandá-las povoar, primeiro que lhes mandasse gente, lhes fez lançar toda a espécie de gados para sustento dos homens; e foi este o seu cuidado desde 1420 em que se povoaram as ilhas de Porto Santo e Madeira, até ao de 1432 em que se povoou a ilha de Santa Maria, a primeira dos Açores, onde se continuou a fazer o mesmo. Em tais conduções andou em todo aquele tempo[14] o ilustre comendador de Almourol, Gonçalo Velho Cabral, sem outra ocupação que vir todos os anos conduzindo grande de gados, e caças agrestes, sem a multiplicação dos quais se não poderiam conservar as gentes. Assim o relata o venerável Gaspar Frutuoso a quem se deve todo o crédito por tão próximo àqueles anos[15]; com o que concorda o insigne João de Barros, na Primeira Década, livro 2.º, capítulo 1.º, e se depreende do último item da carta de doação de João Vaz da Costa Corte Real, que adiante copiarei. Eram portanto estes gados comuns a todos os vizinhos e moradores das ilhas, como coisa própria sem para isto intervirem os donatários, e só passavam alvará às pessoas que pretendiam ir às montanhas matar os gados bravos, e buscar os mansos, a fim de que não houvesse abuso, como se entende daquele a Fernão Álvares deu Jos de Utra[16], capitão do Faial em 1501, para que na ilha do Pico, em seu nome, desse licença naquela ilha para os montes assim para matar os gados bravos, como para buscar os gados mansos; com pena de 1$000 réis a quem, por ousado, fosse sem licença.

Temos portanto a maior evidência de que se na ilha Terceira se não lançaram gados antes de vir Jácome de Bruges, nem a ela chegou em comissão o mencionado Gonçalo Velho Cabral, por não ser o seu descobridor, sempre a respeito dos que depois veio lançar o nosso capitão, logo que foi provido, haveria o mesmo preceito e regulamento; e para evitar descaminho se estabeleceram os currais do concelho, e o registo de ferro e sinal; no que tiveram os antigos respúblicos grande cuidado.

Notas[editar]

  1. Enquanto não me apareceu a Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné, por Gomes Eanes de Azurara, segui os escritores referidos no Capítulo I, os quais punham o descobrimento de Cabo Verde no ano de 1443 ou 1444, dando ao português Vicente de Lagos e ao veneziano Luiz Cadamosto, o descobrimento dos Açores neste ano; porém isto é vago, porquanto, ainda este cabo não estava descoberto; e o primeiro explorador de Cabo Verde que regressou, no fim de 1416, ou no princípio de 1447 foi Diniz Fernandes. Com isto concorda o autor das Empresas Militares dos Lusitanos, dando a Álvaro Fernandes da Câmara o descobrimento dos Açores, por haver passado 100 léguas além do Cabo Verde. Ora, sendo esta viagem em 1446 para 1447, e sendo as ilhas dos Açores nove, achando-se já descobertas as de Santa Maria e de São Miguel, é manifesto que a Terceira entrou ao número das sete das quais trata o autor, e assim por esta forma fica reformado o parecer dos referidos escritores.
  2. Assim é tratada em todos os actos públicos.
  3. Matéria é esta — diz ele — que não nos convida a escrever, porque em nada nos socorre a cronologia, e a História: esta falta-nos com os sucessos e aquela com os anos prefixos de tais descobrimentos; e assim iremos com temor de tropeçar, e às vezes sem tino, enquanto não saímos das ilhas dos Açores. [nota do editor: Cândido Lusitano, pseudónimo de Francisco José Freire (1719-1773) foi um dos expoentes do neoclassicismo português. Autor, entre muitas outras obras, da Arte Poética (1748) e do Dicionário Poético (1765). O texto citado pertence à obra Vida do Infante D. Henrique, dedicada à Majestade Fidelíssima de El-Rei D. José I (1758), impressa por Francisco Luiz Ameno, Lisboa, XVI+393+II páginas, em formato 28 x 20 cm].
  4. Falo da carta de doação pelo Infante D. Henrique a Jácome de Bruges.
  5. Não usava o prenome Dona: esse sinal de estima, que antigamente apenas era concedido pelos Reis a suas descendentes, e aos ricos homens, parece que não lhe pertencia, evitando cair nas penas das Ordenações do Reino. Que diremos hoje à liberdade e à lisonja com que este apelido se dá, e alguns mais, a quem lhe não pertence? O mesmo que disse Garcia de Resende nas suas Miscelâneas:

    Os Reis por acrescentar
    As pessoas em valia
    Por lhe serviços pagar
    Vimos a uns o Dom dar,
    E a outros fidalguia.
    Já dos reis não há mister,
    Pois toma o Dom quem o quer,
    E as armas nobres também
    Toma quem armas não tem,
    E dá o Dom à mulher.

  6. O padre Maldonado assim trata esta dama.
  7. Antónia Dias de Arce, que depois casou com Duarte Paim; e outra cujo nome não alcançaram os antigos; e se tem por certo que faleceu religiosa em um convento de Portugal (diz o padre Maldonado).
  8. Veja-se Cândido Lusitano, na Vida do Infante D. Henrique [nota do editor: Cândido Lusitano, pseudónimo de Francisco José Freire (1719-1773), Vida do Infante D. Henrique, dedicada à Majestade Fidelíssima de El-Rei D. José I (1758), impressa por Francisco Luiz Ameno, Lisboa, XVI+393+II páginas, em formato 28 x 20 cm].
  9. Já se mostrou que grande parte dos historiadores dá aos flamengos o descobrimento, e primeira povoação dos Açores, e às ilhas o apelido de Flândricas; e não deixa de admirar que Jácome de Bruges, sendo estrangeiro, obtivesse uma doação tão ampla como ninguém teve; dando-se lugar a supormos que algum direito lhe assistia com preferência a qualquer outro dos muitos que em iguais serviços andavam entretidos.
  10. Ninguém antes de Jácome de Bruges habitou na ilha com posse legal; mas parece que este modo de se explicar inculca a algum intruso possuidor. Alguns escritores com a maior injustiça, parece que torcendo o sentido das palavras agressor Senhorio, hão querido infamar os habitantes dos Açores chamando-lhe bárbaros na sua origem, e impondo-lhes o ferrete de conquistados, talvez pelo sentido daquelas palavras controvertidas em seu favor. O padre Maldonado queixa-se amargamente de um religioso franciscano que teve o arrojo de fazer esta imputação.
  11. Próprias palavras da doação.
  12. Sem dúvida que, achando-se a ilha cerrada de mato bravo, e todo inacessível e impenetrável, não havia lugar a explorar-se o seu interior para logo se examinarem os profundos vestígios que em muitas partes fizeram as carros — do mesmo sintel que os de hoje — e dos quais ainda aparecem rompidas duríssimas pedrarias nos matos altos: Caminho do Borratém, Areeiros, fim da Serra, Cavacas, Caldeira, e outras muitas partes, onde os nossos nonagenários confessam sempre os conheceram, já com admiração de seus pais, que os tinham por obra de remotos séculos. Ora o que mais nos decide para acreditar que esses vestígios não são dos portugueses, nossos avós, é uma sentença proferida pelo corregedor Luiz da Guarda contra os oficiais da Câmara da vila da Praia, ali registada, a favor do 2.º escrivão dos órfãos da mesma vila Afonso Lopes, a respeito do Caminho do Fanal, a 22 de Outubro de 1518, e diz assim: — que a ilha estivera muitos anos cerrada de mato bravo; e somente haviam 50 anos se lhe tinham feito três caminhos: a que um deles ia por beira-mar à Vila S. Sebastião, e outro acima dela para a Cidade de Angra; e outro para o mato. — Observamos portanto, quer se ainda na dezena de 1500 é que se fez o primeiro caminho para ir ao mato, e provavelmente, não a buscar lenha ou madeira, porque tudo havia nos mesmos lugares habitados, além de ser mui pequena a povoação, e a dificuldade dos caminhos e a distância de três léguas ser gravíssimo obstáculo, não se poderiam conhecer esses vestígios à primeira vista, nem tais relheiras de carros fazerem-se ainda durante os séculos XVII e XVIII nos quais não havia precisão de se carrear tanto para os matos altos, onde estão os vestígios de que se trata. Um obstáculo se porá a esta observação e à primeira vista atendível; e vem a ser: que só ali existam, e não se achem noutras partes. Ao que se responde que também em algumas escavações a têm encontrado sinais de edifícios, que já houveram, e outras coisas que deixam em perplexidade. À vista do que parece haver outro povo habitado (lá nessas idades milionárias) a ilha de Jesus, a qual na referida carta se trata com a particularidade de não haver nela vestígios alguns de haver pertencido a gente que até então fosse no mundo.
  13. Esta expressão indica, segundo o uso vulgar, uma afirmativa, isto é: — que se ao presente estava erma, já fora habitada. — Este é o pensamento que ocorre ao leitor. Caiba-nos agora aproveitar o dizerem alguns escritores que as ilhas foram descobertas por flamengos, e as habitarem algum tempo; e por as não deverem possuir em direito, talvez as abandonassem.
  14. Não consta que ele viesse à Terceira; nem que antes do capitão Bruges algum outro trouxesse gados para ela; porém isto não prova que se deixasse de fazer nas demais ilhas.
  15. Nasceu na ilha de São Miguel no ano de 1522, e faleceu em 1595.
  16. Este alvará, datado em 14 de Maio de 1501, feito pelo tabelião António da Veiga, e assinado por Jos de Utra, achei no precioso manuscrito Espelho Cristalino, original, que compôs o mestre frei Diogo das Chagas; e outros mais que ele teve a fortuna de achar no arquivo da Câmara da ilha do Pico. O padre Maldonado também deles usou para confirmar a assistência dos gados em comum proveito dos moradores das ilhas. Aqui vai o alvará: — Joz de Utra, fidalgo da Casa de El-Rei Nosso Senhor, Capitão por Sua Senhoria destas ilhas do Faial e Pico, &c: — Faço saber aos Juízes, e Oficiais, e Povo da ilha do Pico que eu dou ora poder e autoridade a Fernão Álvares, morador desta dita Ilha, que ele por si, e em meu nome dê licença nesta dita Ilha para os montes, assim para matar os gados bravos, como para buscar os gados mansos: e nenhum seja tão ousado que sem sua licença vá aos ditos montes sob pena de pagar 1$000 réis para a chancelaria de El-Rei nosso Senhor; e isto se entenderá em toda essa ilha. E por sua guarda, e certeza dele, lhe mandei passar este alvará por mim assinado, feito em 14 dias de Maio. – António da Veiga, tabelião, o fiz. Ano de 1501 anos. E mais mando ao Juiz, e Justiças, dessa dita Ilha que eles cumpram, e guardem este meu mandado, e façam cumprir, e guardar como nele é contendo: e qualquer Juiz que o não quizer cumprir, e contra ele for o hei por condenado em outros 1$000 réis, a metade para a Chancelaria, e a metade para o Concelho dessa Ilha; e al não façais. – Joz de Utra.