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Anais da Ilha Terceira/I/XXXI

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Vendo-se o conde Manuel da Silva com todos os poderes de El-Rei D. António, cuidou de se fazer respeitar, e, para melhor dizer, adorar dos habitantes e dos defensores da ilha Terceira, servindo-se com estado real, e escoltando-se pelas diferentes partes onde saía, com guardas francesas e inglesas[1].

Tinha em seu serviço todos os oficiais, como há na casa do rei. Fez capitão da gente de cavalo a Gaspar de Geão, homem respeitável; e capitão da infantaria em que entravam os nobres, a António da Silva, sobrinho dele conde, mancebo solteiro, e grande militar. Porque o mesmo conde Manuel da Silva era mui destro cavaleiro, passava a maior parte do tempo em divertimentos e exercícios de cavalaria, deixando de cuidar em outras coisas que muito lhe convinham, afim de repelir os golpes da constante adversidade; mas como tudo isto e muito mais fazia sem conselho de pessoa alguma, deu lugar a continuadas murmurações, e a supor-se muito mal do fim de seu governo.

Deste desmesurado amor próprio resultou que, depois de haver partido El-Rei D. António para França, chegasse a esta ilha certa embarcação em que vinha um Amador Vieira[2], trazendo cartas de El-Rei de Castela a seu primo D. António. Porém o conde, abusado do poder que lhe fora confiado, as guardou consigo todas, abrindo-as, e lendo-as sem as mandar a seu amo; procedimento arbitrário, que ofendeu a todos quantos pensavam livremente; e que na verdade foi a causa principal de que a ilha não gozasse dos excelentes partidos e mercês oferecidos ainda por esta vez. Acresceu a isto que o dito enviado não mostrou empenho algum em cumprir a importante comissão de que fora encarregado; antes pelo contrário, desprezando as ordens que trazia, se deixou seduzir pelo conde, e com afagos e promessas se sujeitou ao seu serviço, descobrindo-lhe traiçoeiramente a muitos homens que naquela ocasião lhe haviam manifestado seus intentos[3]. E julgando não ser conveniente estarem paralisadas tantas forças de seu comando, quis pô-las em acção e distraí-las da ociosidade, no intuito de lucrar alguma coisa em benefício dos cofres públicos, que estavam exaustos.

Para isto formou logo uma armada de 10 velas, guarnecidas pela maior parte de soldados franceses; e lhe deu por comandante a um Manuel Serradas, da ilha da Madeira, e capitão particular em cada nau: ordenando-lhes que levassem a bandeira portuguesa em cada uma delas; e que em nome de El-Rei D. António apreendessem todos os navios de qualquer nação que lhe não obedecessem, trazendo-os à ilha Terceira prisioneiros. Que outrossim fossem ao castelo de Arguim, o tomassem, e embarcassem consigo todas as munições de guerra e artilharia nele existentes; e que passando às ilhas de Cabo Verde lhes não fizessem dano algum, mas concordassem nos meios com que as pudessem trazer à obediência de El-Rei D. António; e a respeito de tudo isto lhes deu regimento escrito, e por ele assinado.

Quase todas as embarcações eram francesas, e a capitânia era uma formosa nau por nome Amberle. Saíram estas em direitura ao castelo de Arguim, o qual tomaram de surpresa por estar a guarnição a sono solto. Apreenderam também muitos navios de pescaria, e naus de grande porte, os quais mandaram para a Terceira com soldados portugueses e franceses de guarnição. Acontecendo porém tomar conta de uma destas naus um piloto natural da Terceira, por serem em pouco número os portugueses, e a gente da nau muita mais, se levantou esta em certa noite, assassinando os portugueses que pela maior parte dormiam. Fazendo-se a nau então no rumo da ilha da Madeira, ali chegou a salvamento, e logo foram enforcados o dito piloto e o cabo do mar, que era natural de Angra[4].

Em outra nau meteram-se alguns soldados franceses, e da mesma forma contra eles se levantaram os da maruja, que eram portugueses. Contudo não foram tão bem sucedidos estes como os da outra nau, porque estando os franceses senhores das armas, em breve espaço mataram a maior parte, e os poucos que trouxeram vivos os mandou o conde açoitar, tomando-lhes as fazendas que haviam saqueado. Deste modo pagaram na mesma moeda, e pela mesma forma, quanto haviam roubado a seus donos.

Continuando a sua derrota chegou Manuel Serradas às ilhas de Cabo Verde com 6 naus, porquanto as outras andavam ao corso naqueles mares: e mandando recado a terra pelo padre Manuel Rodrigues Teixeira, certificando ser aquela armada de El-Rei D. António, e querer lhe prestassem obediência, apenas ele desembarcou, logo os da ilha começaram a persegui-lo, e o levaram preso à cadeia.

Já naquele tempo haviam saltado em terra furtivamente perto de 200 soldados, e vinham marchando pela falda de uma montanha, dispostos em ordem de batalha, figurando muito maior número do que na verdade era. Logo que os da cidade os avistaram puseram-se em retirada; em consequência do que foi a mesma cidade entrada livremente, e saqueada.

Entraram depois na cadeia, tirando dela o dito padre Manuel Rodrigues, a quem supunham já morto. Pouco depois fez-se à vela para a Terceira o capitão-mor Serradas com esta armada carregada de tudo que achou naquela terra, trazendo consigo também muitos escravos forros e cativos. Ao Bispo lhe não deixaram coisa alguma, e correu fama de que até os soldados franceses o maltrataram. Todavia ao recolher-se esta expedição não foi a sua vitória louvada pelos terceirenses, nem tão pouco aplaudida pelos homens de melhor entendimento[5]; e sem embargo de que esta aventura os animava, não era suficiente para remover-lhes o desassossego em que andavam, esperando o termo fatal em que devia acabar esta contenda tão porfiosa e aturada.

No entretanto lavrava na ilha Terceira o devorante fogo da calúnia e da perfídia, pelas sugestões do falsário Amador Vieira; pois além da gente que El-Rei D. António levara consigo por desconfiar da sua fidelidade, ficou outra de suspeita, com a qual aquele se foi entender. Já se achava preso na cadeia Braz Nogueira, escrivão da correição, que fora o seu maior e mais zeloso amigo, e Gaspar Gonçalves de Utra, e seu irmão Estácio de Utra Machado[6]. Com estes últimos, principais da ilha do Faial, foi ter Amador Vieira a fim de os experimentar, figurando-se amigo de El-Rei Filipe, como pessoa que viera com as cartas, e só reduzido (dizia ele) ao serviço de D. António por medo que tinha de Manuel da Silva. Em vão trabalhou este figurado amigo para inculcar aos dois prisioneiros a sua fidelidade; em vão lhes suplicou em segredo que lhe dessem rol dos homens que sabiam parciais de El-Rei de Castela, prometendo-lhes os maiores favores quando este entrasse no gozo da ilha. Tudo foi inútil, porque os dois prisioneiros, que jamais tinham visto aquele homem, entenderam a peçonha que se continha em suas meigas palavras.

Causa horror a série de traições perpetradas por este malfeitor; a pena se recusa ao escrevê-las. Na verdade seríamos demasiadamente extensos, se pretendêssemos relatar aqui todas as traficâncias e vil comércio deste delator, que tomou por ofício denunciar quantas pessoas sincera e cordialmente se confiaram de suas sedutoras palavras. Não podemos contudo escusar-nos à narração de alguns destes factos resumidamente.

Francisco Gil, piloto natural de Angra, e filho de Gil Rodrigues, foi um dos que Amador Vieira enganou, pedindo-lhe que o levasse consigo da ilha para fora. Neste sentido lhe inculcou ele a um piloto francês, que disse estava ajustado a levar no seu pataxo cartas de certos homens da cidade para El-Rei Filipe e o avisar do lugar por onde haviam de dar entrada às armadas que se esperavam nesta ilha. Que ambos eles pilotos estavam à espera de vento favorável para saírem do porto. Afora isto, nomeou-lhe alguns dos interessados naquele negócio, entre os quais foi um Melchior Afonso.

A tão generoso serviço seguiu-se da parte de Amador Vieira a promessa de grandes mercês, com hábito de Cristo; e ajustado o sinal de que todos se haviam de valer, retirou-se o traidor. E sem perder tempo, foi ter com o dito Melchior Afonso, o qual tendo-se por muito seguro, por saber que ele fora o portador das cartas de El-Rei de Castela a D. António, lhe descobriu quanto havia maquinado, declarando-lhe a gente que tinha à sua disposição para o efeito pretendido. Confessou-lhe mais que tinha escrito a El-Rei Filipe, indicando-lhe mandasse pôr as armadas sobre a costa de São Mateus, defronte do forte, porque ele já tinha arrolados 100 homens de seu serviço, para darem sobre os bombardeiros e os prenderem; e que por ali, melhor do que por outra qualquer parte, saltaria o exército, e se faria senhor da terra; que finalmente o sinal acordado era uma bandeira branca. À vista desta confissão, declarou o crédulo Melchior Afonso os nomes dos conjurados seus companheiros; e então, com pleno conhecimento deles, se retirou Amador Vieira, assaz contente pelo resultado das suas dolosas investigações.

Não perdeu tempo algum o traidor Amador Vieira, antes vai a toda a pressa descobrir ao conde o que ouvira a Melchior Afonso. Este pois é perseguido pela justiça, e lhe são apreendidos todos os papéis, entre os quais se lhe acharam muitas correspondências com vários indivíduos, que todos foram presos na cadeia; sendo porém levados a perguntas, não havendo contra eles quem depusesse, e negando o facto, foram soltos, ficando somente na prisão os referidos Francisco Gil, Melchior Afonso, e Álvaro Pereira de Lacerda, que passou ao aljube, por dele haverem diversas culpas.

Murmurou-se muito contra o conde por conservar ainda presos Gaspar Gonçalves e seu irmão, que eram tão decididos pela causa de El-Rei D. António, e por isso os mandou ele pôr em liberdade, e chamando-os ao paço, lhes agradeceu muito os serviços prestados à causa pública, em que se achava empenhado; certificando-lhes estar convencido do quanto eles haviam feito na ilha do Faial em seu favor, podendo ali, e sem risco algum, entregar a terra aos castelhanos; o que tudo muito bem lhe havia manifestado Amador Vieira. Em consequência do que o mesmo conde lhes lançou o hábito de Cristo, com 100$000 réis de tença; o que estimaram e tiveram em muito apreço, usando desta condecoração até entrar o marquês de Santa Cruz na ilha Terceira.

Julgando o conde Manuel da Silva necessário entrar nas mais sérias averiguações com o prisioneiro Melchior Afonso, ordenou tormentos de fogo para dar tratos, e foi este infeliz o primeiro que assim passou a sofrer tal género de suplício[7].

Na força dos tormentos, que lhe faziam encarar a morte com todos os seus horrores, confessou tudo o que tinha dito, e o mais que sabia. Feita esta confissão, o mandou o conde retirar para um aposento do paço, escrevendo-se por tabeliães o que ele dizia[8]. No outro dia o mandou meter na cadeia pública (era já no ano de 1583) fazendo-lhe sequestrar todos os seus bens, e tomando por inventário quanto o réu possuía, ordenando-lhe, finalmente, que em termo breve arrazoasse de sua justiça. Parece que o réu rejeitou a defesa, e foi sentenciado a ser arrastado pelas ruas públicas da cidade, e depois enforcado e esquartejado; e que a cabeça lhe fosse tirada, posta na torre do relógio da praça, assim como os quartos pendurados aos portões da entrada da cidade; que seus bens fossem incorporados nos próprios da Coroa, por traidor e cabeça do bando contra seu rei natural. Preferida tão cruel sentença nos autos, imediatamente lhe foi denunciada; e logo entraram na cadeia os respectivos padres para o confessarem. Era em um sábado pela manhã, e estiveram com ele até à véspera, em que o foram tirar do cárcere com a bandeira da Misericórdia, os da irmandade que então serviam na Santa Casa de Angra.

Amarrado o padecente Melchior Afonso sobre um couro, e arrastado pelas ruas da cidade ao rabo de um cavalo, conservava nesta deplorável posição um ânimo verdadeiramente singular[9]: — Quando neste amargurado transe lhe lembravam algumas coisas de obrigação, que tinha a outras pessoas[10] se assentava no couro, e com a sua mão escrevia tudo.

Desta forma foi conduzido até a forca, a qual estava colocada na ponta do cais, onde o enforcaram, morrendo muito conforme, e animado nos auxílios divinos, pedindo perdão ao povo do escândalo que lhe havia dado no seu criminoso projecto. Ali o esquartejou o algoz, e no mesmo cavalo foram postos os quartos, levando-os aos lugares onde se costumavam pôr; e a cabeça foi levada à praça, e pregada em um pau que estava atravessado em cima da torre do relógio, em cujo lugar se deteve até ser conquistada a ilha pelos castelhanos.

Depois de estarem algum tempo os quartos deste desditoso homem pendurados às portas da cidade com licença do conde foram enterrados. Era Melchior Afonso natural de Angra, na qual tinha parentes; e também sua segunda mulher Isabel de Novais não só era de pessoas nobres, mas ainda muito do serviço de El-Rei D. António. Todos estes parentes se empenharam de uma maneira a mais decidida, para que o conde lhe concedesse o tirarem de ali a cabeça do infeliz padecente.

Vários dias se passaram, nesta súplica, mas sem nada se puder alcançar. Parecia já uma excessiva pertinácia no conde, e indo em certo dia repetir a súplica muitas pessoas juntas com alguns religiosos a quem o conde havia já atendido em várias coisas, só puderam ouvir dele as seguintes palavras: — Para que é já porfiar nisso? Se eu houvera de dar tal licença para se tirar a cabeça desse homem, já a houvera de dar; mas para que me não porfiem, afirmo que quando virem tirar dali a cabeça de Melchior Afonso, que se há-de por a minha; e com isto vão todos desenganados e se não cansem mais. Com esta imprudente e desumana resposta se retiraram aquelas pessoas, injuriadas do mau acolhimento que tivera a sua caridade, e ficaram esperando o resultado da profecia do conde regedor, que sortiu o seu efeito por altos juízos de Deus[11].

Mandou outrossim o conde Manuel da Silva, que o piloto Francisco Gil fosse levado ao pomar dos aposentos dele conde, em que estava o tronco e o lugar em que se haviam dado os tormentos e tratos de fogo ao finado Melchior Afonso; e depois de ordenar que ele se confessasse (acto que a todos se mandava fazer) começou a dar-lhe tormentos; porém, o miserável piloto logo em princípio confessou tudo quanto havia dito ao falsário Amador Vieira, pelo que o mandou o conde recolher à cadeia, e autuada a sua confissão, que ele assinou, em breve espaço lhe foi ordenado que arrazoasse a final em termo de 24 horas; o que de nada lhe aproveitou, porque foi condenado em perdimento de vida, e sua fazenda confiscada para a Coroa. Havia esperanças de que e conde perdoasse a este homem, e ele mesmo dizia que não duvidaria fazê-lo se pudesse ter a certeza de que o mestre de campo Baptista perdoasse também ao seu piloto, que era igual cúmplice no crime, como já dissemos. E com efeito, vendo este que o conde mandava enforcar a Francisco Gil, mandou igualmente enforcar o seu piloto na forca do cais, sem lhe dar tratos porque confessou o delito[12].

Não param aqui as tremendas operações da justiça contra as pessoas suspeitas. Achavam-se presos muitos homens leigos, e clérigos; e por não caberem na cadeia, estavam alguns no aljube. Ali se achava também preso Álvaro Pereira de Lacerda, homem bastante velho, muito avisado, de nobre geração e rico[13]. Servia nesta ilha de mamposteiro dos cativas, e nas Ilhas de Baixo; era também lealdador mor dos pastéis, e parece que dele tinha Manuel da Silva algumas culpas, por falar contra o Rei. E suposto que até ali disfarçava com ele, procurando, como se suspeitou, o modo mais oportuno para lhe tirar o dinheiro da remissão dos cativos, agora, tanto que o conde o achou inscrito no rol de Melchior Afonso, o prendeu; e se bem que soltasse outros sob fiança, não lha quis admitir a ele.

Qualquer que fosse o intento do conde, ele ordenou dar tormentos a este venerando ancião Álvaro Pereira, e mandou que o trouxessem ante si. Correu logo pela cidade a fama deste mandato, de cuja execução ninguém parecia duvidar, e sabendo-se igualmente no mosteiro da Esperança, em que servia de abadessa uma das duas irmãs que ali tinha o suposto réu, correram ambas à portaria, e a portas abertas esperavam que passassem os oficiais de justiça trazendo do aljube o irmão, para o abraçarem.

Após estas religiosas concorreu toda a comunidade, e o motim fui grande. Chegando enfim o prisioneiro, foi tão grande o pranto, e tais as instâncias com o meirinho para lhe relaxar a prisão, que ele se viu quase nas circunstâncias de pedir socorro ao braço militar. No entretanto puderam as religiosas conseguir que Álvaro Pereira se confessasse (desconfiavam todos que ele sobrevivesse aos tratos, em razão da sua avançada idade) e valendo-se da demora que isto havia, a toda a pressa escreveram uma carta ao conde, cheia de muitos conceitos e veneração, rogando-lhe somente dilação no caso, e alegando em seu favor os serviços que haviam feito a El-Rei D. António, seu amo.

Em conclusão, chegando o prisioneiro Álvaro Pereira de Lacerda à presença do conde, travaram entre si um tão extenso diálogo já a respeito da sua tardança, já sobre os meios espirituais que o réu tinha procurado para a hora do suplício, pedindo-lhe ainda lhe mandasse chamar outro confessor, que era o licenciado Manuel Gonçalves, que deu tempo a que chegasse a carta das religiosas da Esperança, por mão de certa mulata a qual, achando as portas do palácio fechadas, saltou pela cerca do mosteiro dos padres de S. Francisco, com favor deles, e entregou a carta ao conde. Admirado ele de ver ali a mulata, e certo do empenho das mencionadas religiosas que lhe pediam a dilação da causa do réu, disse à mulata Ide dizer às senhoras madres, que lhe concedo quanto me pedem, e muito mais farei por amor delas. Saiu então a mulata a dar parte do que passara, e Álvaro Pereira foi conduzido à prisão, na qual se conservou até ser entrada a ilha.

Como havia muita falta de gente para o serviço militar, todos os indivíduos que chegavam capazes de pegar em armas o conde os recrutava, e mandava logo para os castelos e fortes, e para bordo das armadas; e porque todos procuravam escapar-se a tão perigoso serviço, o conde não cessava de os persuadir ou ameaçar, com o fim de os conter na disciplina fazendo-lhes ver que ele mesmo deixara a condessa sua mulher, dotada de excelentes virtudes e que tanto amava, e a seus próprios filhos, só para vir em serviço de El-Rei D. António, com muito risco de sua vida, podendo estar seguro e descansado em sua casa. Estes e outros argumentos de igual peso lhes fazia o conde repetidas vezes, sem que aproveitasse a impedir em muitos o desejo de se evadirem da ilha para fora. De maneira que achando-se nestas arriscadas conjunturas, falaram a um Salvador Francisco, velho de mais de 80 anos, que possuía um barco da carreira das ilhas, para que transportasse à ilha de São Miguel 10 ou 12 passageiros à custa de um vantajoso frete; e disto foi agente um João Lopes; mas recusando ir na companha um dos marinheiros, não guardou o segredo: e sabendo-o Manuel da Silva, mandou prender a todos aqueles passageiros, e que fossem levados à cerca dos paços reais com o dito mestre do barco. Ali mandou pôr a tormentos ao dito Lopes, o qual, vendo o aparato de tão cruéis suplícios, confessou tudo quanto fizera. Passando então o conde a perguntar o velho Salvador Francisco, tanta simplicidade e candura achou nas suas respostas, afirmando o velho que nunca expressamente se lhe proibira aquele negócio, e que nisto ganhava sua vida, que de boa vontade lhe perdoou, e a todos os outros acusados. Mui louvada foi nesta ocasião a prudência do conde; apesar disto o pobre velho intentou abusar daquele favor, continuando no tráfico de transportar fugitivos para fora da terra, motivo porque Manuel da Silva o mandou prender a bordo de uma emborcação com o referido seu agente João Lopes, e ali os fez empregar nos trabalhos que lhes eram próprios.

Notas

[editar]
  1. A citada Relação no capítulo 60.
  2. Parece que trazia por companheiro a Gaspar de Magalhães, mancebo muito nobre, e que depois fez grandes serviços a D. Filipe, em consequência dos quais foi premiado.
  3. Deste pernicioso delator Amador Vieira trata o Padre Cordeiro no Livro 6.º, capítulo 19, § 323 da História Insulana, e Herrera no Livro 13.º, capítulo 2: — ... y procedia — diz este falando do conde — com cruéis castigos en las personas, y en los bienes, y por esta causa hizo matar a muchos vendidos de un Amador Viera, que havia ydo por orden de El-Rei a conservar sus amigos, y conocer los animos de la gente de la isla.
  4. O piloto chamava-se de alcunha o Trompica, e o cabo apelidava-se o Marquês.
  5. Citada Relação, no capítulo 62.
  6. Estes nobres cidadãos eram descendentes de Gaspar Gonçalves Ribeira Seca, procedidos de seu filho Diogo Gonçalves Machado, da quem falámos no ano de 1551.
  7. Um francês ensinou ao conde aquela terrível invenção de tormentos, preparada desta maneira: mandava pisar carvão, e fazê-lo em pó, como se fosse farinha coada, lançava-o então em azeite de oliva, e fazia polme; depois disto acendia lume bem vivo (isto na cerca dos paços abaixo do Castelo dos Moinhos) e mandava descalçar os pobres delinquentes, os quais estavam firmes com os pés metidos em um tronco direitos ao fogo, com umas servilhas calçadas, e untadas as mesmas e os pés, os punham ao lume, como quem os assava, de maneira que vivos se estavam frigindo. Enquanto procedia a este bárbaro tormento, o conde passeava muito a sangue frio e inquiria os padecentes (citada Relação, no capítulo 68).
  8. O autor da Relação presenciou todos estes actos.
  9. São estas palavras da Relação referida.
  10. Além dos parentes por parte de seus pais tinha de sua primeira mulher uma filha, e um filho ausente; e da segunda tinha dois meninos, por ser há pouco tempo casado.
  11. Este caso aplicam outros à cabeça do fidalgo João de Betancor, e que este mesmo, quando o degolavam, predisse o tal sucesso. O caso é certo, mas o sujeito Deus o sabe. (Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 30, § 328 da História Insulana).
  12. Este francês era homem de 40 anos, e ainda que o mestre de campo general o mandou enforcar, como fizera a outros, sem preparação espiritual, logo que ele soube que morria, mandou chamar um confessor, e se dispôs. E sabendo os irmãos da Misericórdia que o condenado ia a padecer, lhe foram a toda a pressa acudir com os necessários socorros, e com os padres que o ajudassem a bem morrer, como cristão que era. Toda a cidade lamentou a morte deste francês, que deu muitos sinais de predestinado.
  13. Citada Relação, capítulo 71. À varonia deste ilustre cidadão anda actualmente em Diogo Pereira de Lacerda, morador em Angra, e administrador do morgado por aquele instituído.