Anais da Ilha Terceira/I/XXXII

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Não cessava D. António de solicitar na corte de França novas tropas, com que obstasse aos espanhóis meterem-se de posse da ilha Terceira, a qual, como já dissemos, se achava guarnecida de gente francesa e inglesa, que seriam 1 800 homens, e de quase três mil portugueses, e fortificada de muitos fortes e trincheiras em todos os lugares susceptíveis de desembarque[1]; de tal maneira que sendo ela inacessível pela natureza de suas rochas na maior parte[2], com tamanho presídio parecia inexpugnável.

Ainda que o monarca francês não estava muito disposto a franquear mais socorros ao pretendente D. António, em razão de se achar ocupado com os negócios do seu reino, e mui principalmente com os olhos na Flandres, onde o duque de Alençon e o duque de Orange continuaram a guerra, e ruim sucesso das campanhas passadas nos Açores: contudo, por intervenção da rainha, que muito aborrecia El-Rei Filipe, lhe concedeu mil e quinhentos homens de guerra, munições e artilharia, além de 80 fidalgos franceses bem acreditados nas armas, e os entregou ao comendador de Chaste[3], cavaleiro da Ordem de São João, governador de Dieppe, grande fidalgo, cabo de verdadeiro merecimento e completa reputação.

No enquanto El-Rei Católico, da sua parte, não cessava de empregar todos os meios para ganhar o coração dos portugueses; mas apesar disso, seus desvelos eram baldados pela aversão natural que eles lhe tinham. Obedeciam-lhe, e detestavam sempre o seu governo. E sem embargo de que este poderoso Monarca experimentara grande perda com a morte do duque de Alba, D. Fernando de Toledo, e com a de D. Sancho de Ávila[4], o mais experimentado nas coisas da guerra depois daquele grande general, e que o tinha ajudado a conquistar Portugal; ainda lhe restavam outros muitos generais a quem confiasse a empresa da ilha Terceira.

O marquês de Santa Cruz, D. Álvaro de Bazán, que no ano antecedente derrotara a armada de El-Rei D. António defronte da ilha de S. Miguel, foi o general encarregado da conquista da ilha Terceira e suas dependentes. Preparou-se uma armada muito maior do que de antes se tinha feito, o que na corte de Espanha deu motivo a diferentes discursos. Diziam uns que em chegando o marquês se lhe entregaria a ilha, por se achar fatigada de presídios, de incómodos e trabalhos. Outros afirmavam que ainda que se não entregasse, seria a sua conquista mui fácil, por serem todos os lugares da ilha abertos, existindo somente a dificuldade no desembarque da tropa, o qual não se podia estorvar, por ser necessário grande número de gente para guarnecer tão dilatado espaço em toda a costa do sul[5]. Outros, finalmente, que não seria conquistada com essa facilidade, porque a ilha era mui povoada, e abundante do necessário para se manter na independência, intransitável por ser montanhosa e áspera nas ribeiras; o mar inconstante e tempestuoso; e que os seus naturais estavam desesperados do perdão. Acrescentavam mais que os franceses se empenhariam em divertir as forças de Espanha, custando-lhe menos fazê-lo assim, do que ao Rei o conquistar a ilha. Nada disto serviu para retardar as ordens terminantes da corte espanhola; cuidou-se incessantemente dos preparativos da armada, e o marquês de Santa Cruz não se deteve.

Deliberado El-Rei de França a proteger novamente a causa do Prior do Crato D. António, mandou ao comendador de Chaste se fizesse à vela para esta ilha Terceira, trazendo às suas ordens os soldados e fidalgos atrás mencionados; e lhe deu cartas para os magistrados da cidade, nas quais muito louvava e engrandecia a sua constância, e lhes manifestava o ardente desejo que tinha de coadjuvá-los contra os inimigos que pretendiam usurpar a antiga liberdade de Portugal. Exortava outrossim a não desanimarem, e a defenderem-se com vigor; prometendo-lhes nunca os abandonar, contanto que eles, de sua parte, lhe correspondessem com lealdade. Em igual sentido lhes escreveu também a Rainha[6].

Partiu enfim o cavalheiro Mr. de Chaste com este socorro em 8 embarcações grandes, artilhadas, e chegou à Terceira no princípio de Junho de 1583, dando notícia dos grandes preparativos que em Lisboa se faziam por parte de El-Rei de Castela[7]. Aos capitães e soldados foram dados quartéis suficientes, e o comandante foi alojado em casa de Fernão Garcia Jacques, onde esteve Duarte de Castro.

Com este novo socorro ficaram então consistindo as forças da ilha em seis a sete mil homens de guerra, municiados com trezentas bocas de fogo, quase todas peças de bronze, vindas nesta expedição, outras que foram tomadas nas ilhas de Cabo Verde, e muitas que haviam na Terceira; e o conde regedor Manuel da Silva se considerou então capaz de resistir a qualquer poder que sobre ela viesse. A maior parte desta força destacou-se pela ilha, e principalmente pelas vilas da Praia e de S. Sebastião; e as 8 embarcações que trouxera Mr. de Chaste, as quais só foram ajustadas para o transporte da tropa, por serem mui bem guarnecidas as apresou o conde para ficarem ao serviço e defensão da ilha.

Apesar desta confiança do conde, alguns terceirenses (talvez acossados de suas consciências) retiravam para os montes seus bens; fazendas e famílias; e Mr de Chaste, conferindo com Manuel da Silva, exigiu dele lhe dissesse em que se fundava para a defesa, pois a ele, como homem de guerra, lhe parecia mui pouca a gente e mui poucas as provisões também para defender-se de uma armada poderosa como se esperava, aconselhando-lhe que mandasse levantar um forte em certo lugar vantajoso para se recolherem os víveres e munições e servir à retirada quando acontecesse que os inimigos pusessem pé em terra[8]. Porém o conde não só sustentava a opinião em contrário, mas ainda dizia que os franceses eram desnecessários, e sem eles se podia muito bem defender; tomando como efeito de fraqueza o conselho do comendador.

Pouco depois veio a persuadir-se que os franceses intentavam assenhorear-se da ilha, e que para esse fim queriam fundar um castelo. Nesta persuasão, baldou as representações do comendador de Chaste, fazendo valer a sua opinião, que era defender o desembarque do inimigo, porque segundo a experiência, nunca os soldados pelejavam bem restando-lhe esperança de ter onde se salvassem[9]. Desta maneira discordavam os pareceres. Porém, quanto às outras ilhas, faltando-lhes gente para as guarnecer todas, assentaram manter somente a do Faial, e enviar-lhe o capitão francês Carlos, com 400 soldados, reforço bastante para com o povo da ilha se defender de qualquer ataque; no que assaz se enganaram, em razão de ser o castelo da vila da Horta muito fraco, e lhe faltarem armas e munições suficientes. Nisso de boa vontade conveio Manuel da Silva, com intento de dividir os franceses para que se lhe não fizessem superiores, como o fizeram quando se apoderaram de alguma força.

Como já constava de certo que sobre a ilha Terceira vinha uma grossa armada, e o conde ignorava se ela teria partido de Lisboa, mandou um barco à ilha de S. Miguel com 5 soldados portugueses, que se chamavam Francisco Pacheco, João Nunes, Pantaleão Dias, Manuel Gonçalves, e Gaspar Gonçalves; e por se julgar ser um barco de pesca, não trataram os da ilha de o vigiar. Saltaram portanto os soldados, duas léguas junto da cidade, e apreendendo certo homem que estava trabalhando no seu campo, o trouxeram ao barco; porém fazendo-se o vento contrário, viram-se obrigados a saltar em terra, e aquartelar-se em casa do prisioneiro, que, suposto lhes fizesse bom agasalho, os foi denunciar ao governador da ilha, o qual os mandou prender na fortaleza, dando-lhes tratos para que descobrissem o fim a que eram mandados: o que eles imediatamente confessaram; e também contaram o estado em que se achava a ilha, dividida em facções. Chegando àquela terra o general marquês de Santa Cruz, foram estes soldados compelidos, com outros muitos portugueses, a seguir as suas armas contra a pátria, que deles aliás não devia recear-se.

De dia em dia pioravam as coisas na ilha Terceira, com os danos e desordens entre as tropas, diminuindo-se por isto a força do exército. Desejosa a maior parte da tripulação da armada que trouxera Mr. de Chaste de se evadir do porto, para não presenciar o combate que a toda a hora se esperava, e por se lhe haver acabado já a obrigação do serviço a que viera, descuidadas as fortalezas, evadiu-se efectivamente com 5 embarcações daquela armada, entre as quais foi a capitânia, a qual somente da Ponta de Santo António pôde ser alcançada com o tiro de uma colubrina, que a desmastreou, sem contudo a fazer mudar de rumo com as outras: e este prejuízo não foi de pequena consideração para a ilha, que se achava carecedora de todos os auxílios.

A isto acresciam as repetidas desordens da tropa francesa e inglesa que andava de presídio na cidade; de modo que dormiam companhias de portugueses às portas dos capitães, com receio de eles se levantarem contra a terra, a qual em dia de Espírito Santo esteve quase perdida de todo. Os grandes excessos da mesa naquele dia deram lugar a desafios entre dois franceses e um português, e travou-se um grande barulho, que se não pôde apaziguar sem muita efusão de sangue. Tocou-se imediatamente a rebate em todas as companhias, até que chegou o conde Manuel da Silva juntamente com os mestres-de-campo franceses e ingleses; mas o combate estava de tal forma encarniçado, que não só os soldados no meio das ruas e praças se batiam, senão ainda as mulheres e homens pelas janelas das casas atiravam aos franceses com pedras, e com tudo o que o furor lhes subministrava. Ardia por toda a parte a cidade com o fogo das armas; e um grande estrondo de vozes e artilharia figurava ter o inimigo tomado posse dela. Depois de duas horas que durou este renhido combate, acharam-se em campo 30 franceses mortos e 40 feridos; e dos portugueses 12 mortos e muitos feridos e maltratados.

Além disto, todos os dias se contavam muitos roubos que os franceses cometiam, como foi aquele em que tiveram parte quatro soldados da guarda do conde que sabendo de um Simão Dias, lavrador de Agualva, havia vendido ao mesmo conde um cavalo por 40 000 réis, o mataram tirando-lhe o dinheiro; delito este que lhes custou bem caro, porque o principal destes agressores foi morto e esquartejado e os outros três soldados foram postos a galés. De todos estes corpos andavam rondas pela cidade, e mais de uma vez aconteceu encontrarem algumas pessoas que, por lhes não falarem logo à primeira voz, as matavam, como fizeram a um infeliz, porém valoroso, alfaiate, chamado Luiz Gonçalves, que injustamente, depois de vigorosa defesa, atravessaram com uma alabarda, e a outros muitos que seria enfadonho relatar.

Muitas vezes saíam os franceses para fora da cidade, pelos pomares e vinhas e mais campo, roubando o que queriam; e se conta que indo dois à vinha de um Melchior de Ceia, ele matara um às pedradas, fugindo o outro: mas no dia seguinte o foram desafiar 15 franceses. Então o bom português se defendeu só por um grande espaço, amurando-se em um pequeno torreão; e sendo socorrido por algumas pessoas, ficaram no campo estirados sem vida quatro franceses, e fugindo os mais para a cidade, na retirada foram mortos nove, escapando unicamente de toda a quadrilha dois, que assim mesmo foram castigados rigorosamente.

Semelhante atentado cometeram outros franceses contra um rico cidadão de Angra, chamado Sebastião Álvares, que vivia com sua família na sua quinta da Terra Chã. E assim se conta: — em certo dia à noite foram mais de 20 franceses com armas de fogo à sua casa, batendo às portas para que lhes abrisse. Acudiu Sebastião Álvares à janela, e vendo tanta gente perguntou-lhe que pretendiam ali, dizendo-lhe os franceses ousadamente que lhes abrisse as portas, senão que lhe poriam fogo às casas; resolveu-se ele a defender-se chamando a dois escravos seus e a um filho, o qual subindo acima do telhado das casas, lançou uma grande bomba de fogo, a qual caindo entre os franceses os desordenou de tal forma, que, não lhes dando o fogo lugar à defesa, ali foram 8 destes mortos pelo dito Sebastião Álvares, pelo filho, pelos dois escravos, e por alguns cães de fila a este fim soltos, de sorte que somente escaparam com vida 12 franceses, os quais à cidade trouxeram a triste nova deste combate; e com tal infelicidade, que a estes mesmo, segundo se disse, mandou o mestre-de-campo enforcar.

Os franceses que estavam destacados em outros pontos da ilha, segundo a distribuição que deles se fizera à chegada de Mr de Chaste, não faziam menos de sua parte indisciplinados, pois achámos que na Praia armaram muitas brigas, e fizeram outros desatinos insuportáveis; e os que estavam na vila de S. Sebastião, além de muitas insolências que praticaram com ofensa da moral pública, saquearam a igreja matriz, levando-lhe todas as alfaias, ornamentos, cruzes de prata e vasos sagrados, o que tudo ao depois mandou El-Rei Filipe II restituir à dita igreja[10].

Também os franceses de contínuo faziam moeda falsa, e falsificavam outra[11]. Finalmente deles se vigiava a cidade; ninguém se dava por seguro em suas vinhas, quintas e hortas. E por se achar tão arriscado com esta gente, não cessava o conde de fazer rondas quase todas as noites, não sem muito risco de sua pessoa[12].

Notas[editar]

  1. Deixámos no Capítulo IV desta Época circunstanciada relação dos lugares fortificados, como susceptíveis para neles se fazer um desembarque hostil.
  2. As costas da Terceira são geralmente alcantiladas, e cheias de rochedos; elas tornam a ilha quase completamente inacessível pela parte de oeste e pela do norte; nestas partes apenas há alguns insignificantes portos, dos quais o dos Biscoitos, na costa do norte, é o mais notável (in Folhinha da Terceira para Ano de 1832, impressa em Angra).
  3. Na tradução de Mr. de la Clède lê-se Chattes [Nota do editor: Drummond usa a grafia Xatres].
  4. A sua morte foi resultado do coice de um cavalo.
  5. A ilha Terceira tem 7 léguas ao seu maior comprimento, e 4 léguas na maior largura. Em muitas partes da costa, do lado de oeste e do norte, apenas existem alguns portos insignificantes, dos quais o mais notável era o dos Biscoitos, onde havia uma pequena fortaleza; e nos mais lugares susceptíveis de desembarque, existiam as fortificações de que tratámos no Capítulo IV desta Época.
  6. Não achámos em parte alguma cópia destas cartas; mas de que assim se escreveram trata [Nicolas] de la Clède.
  7. A Relação citada, no capítulo 74.
  8. Herrera, Livro 12, capítulo 2.
  9. Os franceses imputaram ao conde uma fraqueza que ele não teve; e disseram que o não querer formar reduto para e exército se recolher fora com o fim sinistro de se evadir pelo melhor modo que pudesse, logo que lhe não fosse possível rechaçar o inimigo à borda de água.
  10. Este facto acha-se comprovado pelo acórdão de 29 de Junho de 1584, no qual a Câmara de S. Sebastião encarrega o seu deputado à corte Aleixo Pacheco de Lima, para que represente a El-Rei mande prover a igreja das alfaias, e vasos sagrados ali roubados. E com efeito passou-se provisão a este fim, e a segunda via achámos se dirigiu ainda (por se haver descaminhado a primeira) no ano de 1590, incumbindo a mesma Câmara este negócio ao reitor do seminário de Lisboa, o padre Sebastião Rodrigues, neto de Estêvão Afonso Camacho, de quem falámos no ano de 1555.
  11. A Relação citada, capítulo 75.
  12. Cumpre-nos observar, que, se o conde se mostrava tão activo nestes exercícios, logo não autorizava as desordens que se faziam, como anda escrito no historiador Herrera, e no padre António Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 29, §323 da História Insulana.