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Anais da Ilha Terceira/III/V

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Ano de 1801

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No dia 26 de Janeiro, pelas três horas e meia da tarde, sentiu-se em toda esta ilha um violentíssimo terramoto, que destruiu, e desmoronou a maior parte dos edifícios nos lugares onde houvera o do ano próximo passado; porém ainda desta vez na vila de São Sebastião fez maiores estragos, deixando assolada uma boa parte dela, arruinada a igreja matriz, a torre dos sinos, as ermidas filiais, a casa da Câmara e os paços do concelho, e até as fortalezas da costa. Foi o maior terramoto que nesta vila consta houvera até hoje. Sofreram geralmente os edifícios, e igrejas desde o lugar da Vila Nova, até à dita vila de S. Sebastião, onde sempre costuma acabar o flagelo; mas foram vítimas de total ruína as paróquias de Santa Catarina do Cabo da Praia, e Santa Bárbara de Fonte Bastardo; e as torres dos sinos de todas as outras, excepto de Vila Nova, ficaram tão arruinadas e fendidas, que nelas se não podia entrar sem risco iminente, pelo que se tiraram os sinos para deles se usar em pequenas sineiras que se lhes fizeram nos adros, e o mesmo aconteceu nos conventos de religiosos, até que se reedificaram as torres, o que só foi depois de muitos anos. O estrago que fez este horrendo terramoto, sobre as ruínas do outro de 24 de Junho, do ano próximo pretérito, foram muito maiores (se exceptuarmos a vila da Praia) do que os de 15 de Junho de 1841. Continuaram por espaço de 15 dias os tremores de terra, ainda que brandamente; com a felicidade de serem mui poucas as pessoas que sofreram no meio de tamanhas ruínas, pois somente na vila de S. Sebastião morreu uma pobre mulher debaixo da verga da porta por onde saía com uma criança nos braços, a qual tombem foi vitima desta desgraça.

A reedificação dos edifícios públicos, anos depois, e por meio de sumas dificuldades, como sempre, acudiu a fazenda real; e também se tornou digno do censura o pouco zelo e cuidado dos oficiais da Câmara da Praia em comunicar ao general o estado em que ficara o seu concelho depois desta horrorosa catástrofe, como se lê no ofício escrito ao juiz de fora em 29 de Janeiro, arguindo-o da sua omissão, e exigindo que ele imediatamente lhe dissesse quais os estragos ali feitos e o estado dos edifícios públicos e particulares e que acautelasse as casas dos que fugiram, e lhe propusesse o remédio conveniente nas actuais circunstâncias, com o fim de se providenciar o que fosse possível — e que lhe indicasse os materiais necessários para a reedificação.

Por ocasião deste miserando acontecimento, como já disse do ano próximo passado, fizeram-se muitas procissões e penitências. A segunda povoação mais incomodada foi a dita vila da Praia, onde caíram muitas casas, e ficaram outras inabitáveis, os mosteiros das freiras e os de S. Francisco; para cuja reedificação se ajuntaram dentro e fora da província muitas esmolas, assim como já se ajuntava para as das outras ilhas, onde nunca se concluíram as obras, sendo inspector das que se fizeram no dito convento até o ano de 1813, em que se deram por acabadas faltando o dinheiro, o padre definidor frei José de Santa Ana, natural da mesma vila.

Nenhuns socorros se deram para a reedificação dos edifícios particulares, e sendo passados muitos e muitos anos, é que os moradores das referidas povoações os foram consertando, como lhes foi possível, de forma que ainda hoje em algumas delas aparecem vestígios do que naquele tempo sofreram, sem embargo do muito que se fez na sua reparação desde 15 de Junho de 1841 até o ano de 1844.

Parecerá excessivo o dizermos que a vila de S. Sebastião ofereceu por muitos anos um horroroso espectáculo ao viajante, pelo grande número de edifícios de todo o género que nela estavam caídos; e pouco melhor se manifestava a vila da Praia, na qual ainda no ano de 1812, conhecemos algumas casas espequeadas sobre as ruas públicas, e outras muitas com feias e medonhas ruínas, porque a falta de meios não permitia que seus donos as reparassem, nem havia quem se aventurasse a suplicar a caridade e beneficência dos povos residentes em outros países; sendo as autoridades desse tempo, se não indiferentes, surdas e mudas a tal respeito, ao menos pouco empenhadas em promover os prontos socorro de que careciam estes povos, perseguidos no espaço de dois anos por flagelos tão respeitáveis; acrescendo-lhes a esterilidade dos frutos da terra que também nessas épocas fatais os não deixava.

Se não parece justo imputarmos ao general, conde de Almada, este descuido, visto que a respeito da vila da Praia, como acima dissemos, parecia querer dar algumas providências, também o não louvaremos pelo silêncio em que ficou depois de saber qual o estado dela. Se alguma coisa representou em favor dos povos, o que não consta de registo algum público, nada se lhe respondeu talvez; e se quanto lhe disseram de tais desastres lhe pareceu mui pouco, bem podemos acreditar que o enganaram.— Em todo o caso, não sendo próprio atributo do historiador o fundar-se em suposições, inclinamo-nos contudo a imputar estas grandes faltas ao estado de atrasamento em que estavam os homens e as coisas do século — seria despotismo o fintar os povos, ou vergonha o pedir-lhes?

A fraqueza e inépcia dos ministros de estado, entre os quais representava de principal Luiz Pinto, que depois foi visconde de Balsemão, desceu à humilhação de pedir a paz aos franceses que se achavam senhores das três praças: Olivença. Juromenha e Campo Maior; e assinou o tratado em Badajoz a 6 de Janeiro do ano em que vamos, cedendo Portugal à nação limítrofe a praça de Olivença com todo o seu termo.

Por esta forma acabou a injusta agressão francesa, e em 28 de Outubro veio com efeito a assinar-se o decreto de paz entre Portugal, a Corte de Madrid, e a República Francesa. E suposto que já na Terceira constasse de um tão valioso documento, o mandou o corregedor da comarca publicar no dia 15 de Dezembro, o que com efeito só verificou na cidade a 2, 3 e 4, e nas vilas já a 7 de Janeiro do ano imediato. Assistiu o general na Praia nestes dias, em que na forma do costume se faz a festa dos Reis, a qual ainda foi de maior concurso e celebridade, por este plausível motivo. Também por esse mesmo motivo se celebraram as festas da praça, chamadas de S. João, logo que a estação o permitiu, com a possível grandeza e aparato.

Em 8 de Setembro reuniu-se na sala da Câmara da cidade a nobreza como os da governança, e tendo sido ali chamados os cobradores dos dízimos, assentou-se como exacto haver sido a colheita do trigo, centeio e cevada, muito mais pequena do que a do ano passado, que fora de 8 000 moios; e que a do verão actual fora, quanto muito, de 4 000 moios; e que a colheita futura dos milhos em agro prometia menos a terça parte; pois que se não podia esperar mais de 6 000 ou 7 000 moios: concluindo-se de tudo ser ano mui escasso, e deverem tomar-se todas as cautelas contra a necessidade que poderia haver de pão em toda a ilha: e no mesmo dia liquidaram o moio de trigo a 30$000 réis, que foi o preço maior a que nunca chegara.

E continuando a mesma Câmara a promover o necessário melhoramento na administração dos expostos, havia solicitado licença régia para lançar finta. Ouvidas as pessoas do seu regimento, isto é, nobreza, clero e povo, no dia 22 de Setembro, assentaram, por não haver outro algum meio a que recorrer para tão justo fim, que por cada moio de sal entrado no porto da mesma cidade se pagasse 1$000 réis e que cada um carro que nela entrasse sendo de fora da jurisdição pagaria 120 réis anualmente, e sendo do concelho, 400 réis.

Em a noite do dia 7 para 8 do dito mês de Setembro houve em todas as ilhas deste arquipélago um furacão terrível, que nelas causou muitos danos, e sendo geral na ilha das Flores, muito mais sofreu a freguesia de Ponta Delgada, onde foram derribadas casas sem número: arderam 10 nos Cedros, e 7 nas Lajes da mesma ilha (Manuscrito do padre José António Camões).

Também nesse ano houveram muitas bexigas, e delas morreram lá bastantes meninos e adultos; foi contágio, que obrigou a porem-se incomunicáveis algumas povoações por espaço de 70 dias; duraram até o mês de Novembro em que morreu um Francisco Rodrigues, que tinha mais de 40 anos. Porém nesta ilha Terceira e nas outras não foi o mal de tanta veemência.

A morte da condessa de Almada D. Maria Bárbara Lobo, em a noite de 22 para 23 de Novembro, em idade de 28 anos, por ocasião de dar à luz um filho que se chamou D. Antão de Almada, e teve o mesmo título de seu pai, motivou um geral sentimento na capitania toda. O conde parecia inconsolável nesta mágoa : participando ao governo este sucesso infausto, recebeu então o aviso régio — Documento HH — bem próprio a suavizar tamanha dor; recomendando-lhe uma completa resignação cristã, que é escudo impenetrável a iodos os golpes, e adversidades da vida humana. Celebrou-se em Angra em honra dela o ofício militar, e na Sé catedral fizeram-se pomposas exéquias, a que assistiram todas às autoridades, e grande concurso de povo; as colegiadas, e corporações religiosas; mas na colegiada de S. Sebastião de Ponta Delgada da ilha de S. Miguel, a numerosa clerezia secular e regular, a nobreza da cidade, e os militares excederam muito nestes obséquios, fazendo celebrar um grande ofício e missa de música, e por fim uma oração fúnebre, em que o orador se houve com o maior desempenho; e sabendo o conde a maneira honrosa com que os micaelenses honraram a memória de sua amada condessa, escreveu-lhes em 16 de Fevereiro de 1802 agradecendo-lhes, e disse-lhes: “que a notícia daqueles obséquios fúnebres vieram avivar o estímulo da sua saudade, tanto quanto também se confessava obrigado a todos os assistentes, e aos militares que ornaram aquele acto com suas demonstrações”. Foi o cadáver da condessa sepultado defronte da capela de nossa Senhora das Dores na igreja de S. Francisco, onde lhe mandou o conde impor uma campa de mármore com o nome da defunta, e conta-se que antes de se retirar da ilha para Lisboa, fora pela última vez visitar e despedir-se daquele túmulo, que saudou com bastantes lágrimas, devidas à esposa que tão cordialmente estimava, por suas virtudes e atractivos singulares, assim como por sua formosura, pois se afirma ser uma das mais belas senhoras que em seu tempo houveram.

Ainda por este mesmo tempo ocorreram nesta ilha algumas coisas que deram cuidado ao governo do general conde de Almada. Não se abstinha o juiz de fora da vila da Praia, António de Castro de Sousa, de praticar escandalosos arbítrios no exercício de seu cargo, ofendendo as pessoas principais e os da governança, por coisas de interesse comum; mas o que de todo o comprometeu com a autoridade superior, foi o ardor com que se houve pretendendo nivelar a rua denominada da Graça, que vai dar à do Cruzeiro, por ocasião de se consertarem as calçadas à custa dos moradores da mesma vila; e para isto tinha mandado no ano de 1799 fazer uma profunda escavação, com a qual prejudicava os edifícios eminentes, sendo em dos mais notáveis e perigosas as casas nobres do vigário e ouvidor Vicente Ferreira Souto Maior; e por mais que lhe representassem a próxima ruína daquele edifício, nado o persuadia a que desistisse da obra, antes deixou por mais de um ano a rua descalça e intransitável. Sobre isto houveram na Câmara vivos debates que todos iludia o juiz do fora.

Recorreram então os interessados ao capitão-general expondo o estado da questão, lembrando-lhe o escândalo com que o recorrido juiz de fora já bloqueara a vila, desacreditando e perseguindo os moradores que não puderam ser indiferentes àquela travessura; e por fim mostrando a sua incapacidade na gerência de um concelho tão dilatado como aquele era, onde se carecia de um outro magistrado mais hábil e prudente; e concluíam pedindo que ele fosse deposto.

Vendo então o general a razão dos recorrentes ordenou ao juiz do fora que no dia 22 de Dezembro, pelas 11 horas da manhã, se achasse no seu palácio — onde tinha coisas do Real Serviço a comunicar-lhe. — Compareceu com efeito o juiz, e o general ouvindo-lhe a defesa, conheceu a sem razão com que se houvera em todo este negócio, e os modos e manejos empregados para iludir as suas ordens, reputando-o por isso mesmo — insubordinado e rebelde, e merecedor de um exemplar castigo: — e sem lhe dar mais atenção o suspendeu do magistério no dia 23 de Dezembro, emprazando-o em Angra. E dando fim a todas as questões, determinou à Câmara concluísse o conserto da referida rua da Graça, restituindo-a à sua antiga forma visto que o juiz de fora, tendo-a há muito descalçado, e sendo avisado para a nivelar, o não fizera, com vistas particulares. — Nesta mesma ocasião lhe disse que prontificasse as casas de sua residência, pois queria transportar-se à vila, e assistir à festa dos Reis com o seu estado-maior, e nobreza da cidade, na forma do costume: o que assim se verificou no dia 4 de Janeiro próximo futuro.

Tornou posse deste bispado D. José Pegado de Azevedo, na pessoa do deão Mateus Homem Borges, que também foi nomeado governador do bispado, cuja posse tomou ele no dia 15 de Dezembro, e a 16 assinou uma circular noticiando ao clero o que se acabava de verificar, desculpando-se pela sua incapacidade literária e muito mais pelos seus muitos anos para bem servir o cargo de que se achava incumbido.

Ano de 1802

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Em 21 de Janeiro deste ano passou o deão governador do bispado uma circular ao clero ordenando-lhe dirigisse a Deus preces para que abençoasse o episcopado do novo eleito D. José Pegado: é quanto se lê no — Documento II —.

Em 22 de Dezembro recebeu a Câmara da cidade uma carta de ofício do general, a respeito da paz, determinando-lhe que nos dias 2, 3 e 4 de Janeiro imediato se fizessem luminárias: e que assistisse na Sé catedral a um solene Te Deum, que se havia de celebrar em acção de graças, ao qual também ele havia de concorrer; para o que devia ser avisado o deão governador do bispado, e os nobres da governança da cidade, que na forma do costume compareciam em semblantes ocasiões de regozijo público. Muito bem se haviam os moradores desta capitania com o seu general, conde de Almada; porém constando a dita Câmara que de se queria retirar para Lisboa a tratar dos negócios de sua grande casa, logo que estivesse acabado o triénio; convocando as pessoas do regimento municipal, com elas assinou uma representação em data de 3 de Abril, dirigida ao príncipe regente, agradecendo-lhe a mercê e honra de lhes haver dado aquele general para os governar, e suplicando-lhe a graça de o prorrogar por mais 3 anos. A esta vereação não assistiu o juiz de fora da mesma cidade, que andava em desinteligência com ele.

Já nesse tempo achámos haverem aumentado bastante as rendas do concelho, pois que chegavam as imposições dos vinhos a 1:102$000 reis —, da aguardente a 300$000 réis —-, a varredura a 14$000 réis —, e a vigia e tempero das águas a 17$000 réis; quantias estas porque foram arrematadas. Chegando a esta ilha o novo bispo D. José Pegado de Azevedo, foi hospedar-se no convento de S. Francisco donde, achámos, oficiara ao cabido para que se preparasse a recebê-lo com a necessária ostentação religiosa, pois queria fazer a sua entrada na Sé catedral processionalmente, na quarta-feira imediata que eram 15 de Dezembro, dia da Transfiguração: e com efeito nesse mesmo dia tomou posse conferida pelo deão Mateus Homem Borges da Costa.

Era o novo bispo da congregação de S. Filipe Neri, e tinha servido de prior na igreja de Santos de Lisboa: e dizem que tinha sido militar: achava-se em idade de 50 a 60 anos. Parece que fora despachado em 20 do Junho do ano pretérito, e sagrado em 13 de Novembro. Logo que começou a governar cuidou de transferir diferentes eclesiásticos empregados nas igrejas de todo o bispado, uns por lhe constar a vida licenciosa que passavam nos lugares de seu nascimento, e deverem experimentar os incómodos, da vida eclesiástica em serviço de igrejas mais trabalhosas; outros porque deviam, por seus serviços, passar a melhores e mais rendosas côngruas retirando-os também dos lugares onde já tinham adquirido uma demasiada popularidade, que os apartava do seu instituto para o comércio ilícito das coisas humanas.

Fundou estatutos e regulamentos para governo das colegiadas, e das paróquias rurais, determinando as horas improrrogáveis da missa conventual e mais ofícios; e finalmente sagrou a Sé catedral. Também redigiu um formulário com mui explícitas declarações para servirem no assento da vida civil. Determinou que os clérigos usassem de vestidos talares, e de chapéus triangulares, como ele usava. Visitou as igrejas principais da cidade, e vilas desta ilha, advertindo os párocos de muitas obrigações que já se achavam relaxadas em prejuízo da sã moral e boa doutrina. Era muito apaixonado pela música, razão por que em seu tempo se executou na Sé com a maior perfeição em todas as festividades que nela se faziam; e o mesmo gosto se foi estendendo às outras igrejas por sua influência, e de seus delegados, principalmente na vila da Praia, e nos mosteiros de freiras, donde já nesse tempo havia desaparecido o estatuto, que ordenava se dissesse o ofício divino em “cantochão simples, e uniforme, e não em canto de órgão, nem contraponto ; e o mesmo acontecia em quase todos os mosteiros da província seráfica: e foi na verdade esta a época em que mais floresceu a música, e se acharam os mais completos executores, entre os quais se distinguiram o mestre da capela Manuel Machado Diniz, que faleceu cónego da mesma catedral; João José da Silva, que em Lisboa aprendeu esta arte , e tanto a fundo que ninguém cá nas ilhas o excedeu, assim nos preceitos do contraponto, como na execução, o que ainda atestam as suas muitas obras neste género; de cantochão os muitos livros que na Sé existem por ele compostos no maior asseio, perfeição, e inteligência; e de música os excelentes motetes: “Paixão de Dia de Ramos”, “Lições a 4”, “Ofício de Defuntos”, e outras composições, que tudo se julgou no valor de quatro mil cruzados, quantia naquele tempo considerável, e que ainda assim mesmo não era suficiente para trabalho de tanto merecimento com que este respeitável eclesiástico se entreteve uma grande parte da sua vida.

Também aqui floresceram os padres José Pinheiro, por sua melíflua voz de basso, e Manuel Caetano, prendado organista, e Francisco Jerónimo, secular, ambos discípulos do padre José Benedicto, que a todos se avantajou e faleceu organista desta catedral, com o crédito de ser o melhor de todas estas ilhas, como discípulo do padre João da Silva Morais, mestre da capela na real basílica de Santa Maria.

Por não vir ao meu intento, não menciono os nomes de outros indivíduos mui prendados na música ; assim vocal como instrumental, que por influência do referido bispo D. José Pegado se distinguiram no seu tempo. Era outrossim este bispo mui amigo da grandeza e aparato; pregador afamado, homem de boa presença; voz sonora e forte, e bom teólogo. Neste mesmo tempo servia de juiz de fora da cidade, (veja-se o ano de 1800) um homem do mesmo nome, pois era seu parente, mas que o não mostrou ser, porque, parece, recusara frequentá-lo.

Além de outras providências adoptadas pelo bispo tendentes à boa disciplina do clero secular e regular da diocese foi a provisão de 6 de Agosto de 1799, pela qual se determinava que não houvessem párocos amovíveis, como haviam nas ilhas, do tempo em que as igrejas consistiam simplesmente em oratórios ambulantes, o que agora se havia alterado, por se achar uma grande parte deitas fixas e permanentes; e mandava que todos os párocos fossem colados, conforme a disciplina eclesiástica, e tivessem côngrua pela fazenda real na forma prescrita na mesma provisão — Documento JJ —, contando nela as ofertas de pé de altar, livres oblações dos fiéis na primitiva igreja; e que como tais desde logo se pusessem a concurso, e se fizessem as propostas pela mesa da consciência e ordens. Tomou posse de corregedor desta comarca em 24 de Dezembro, o referido juiz de fora José Pegado de Azevedo e Melo, posse que lhe deu o actual José Acúrcio das Neves, havendo-se por demitido deste mesmo cargo, e ficou juiz de fora, provedor dos resíduos, defuntos e ausentes o dr. Luiz António de Araújo e Amorim.

Já no ano de 1799, por carta circular de 9 de Julho, recomendava o príncipe regente aos governadores dos domínios ultramarinos procurassem introduzir nas suas capitanias a inoculação das bexigas, porque a experiência mostrava ser este o único preservativo contra aquele flagelo devastador. Esta mesma recomendação deveria ter chegado à capital dos Açores; mas não achamos vestígio algum do que então se fizesse; sem contudo podermos descobrir a causa. O mesmo príncipe admirado deste lastimoso silêncio, pelo aviso do 1.º de Outubro, mandado cumprir aqui a 24 de Dezembro, novamente decretou a execução da referida carta circular de 9 de Julho de 1799, como se lê no — Documento KK —. Também neste aviso se recomenda ao conde a remessa do sumário a que fizera proceder quando foi suspenso o juiz de fora da Praia, de quem se tratou acima.

Ano de 1803

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Vieram a estas ilhas ordens as mais apertadas do governo de Portugal contra as pessoas que apanhassem urzela, ou dessem ajuda e favor do seu comércio, por ser contrabando, conforme os alvarás de 12 de Outubro de 1770 e de 11 de Outubro de 1792. As mesmas ordens se repetiram 7 de Abril de 1804; todavia ignoramos qual o resultado destas medidas legislativas.

Também em 14 de Abril se publicou o imposto do papel selado, como se achava determinado no Decreto de 29 de Setembro de 1802 ; mas esta disposição foi revogada pelo alvará de 24 de Janeiro de 1804, do qual falaremos em seu lugar: dele constam outras leis e regulamentos relativos a este mesmo tributo. Perigava de dia para dia em alguns conventos de um e outro sexo nestas ilhas a religião e a sã moral: com tal esquecimento das leis regulamentares e estatutos estabelecidos para lhes servir de regra, que mal se podia afirmar serem umas sombras do que em princípio de tais instituições tanto avultaram, por bons exemplos, com desempenho dos sagrados deveres prometidos, e preparados no ensaio dos noviciados, e juramento das profissões. Passava-se ali uma vida licenciosa, e tão profana, que exigia pronto e eficaz remédio.

Assim mesmo, conhecendo o governo a relaxação de tais casas, e o prejuízo da sociedade nas muitas pessoas que pretendiam professar (quase sempre zelo dos parentes para lhes ficarem com os bens) por diferentes vezes se opôs a isto, facultando mui escassamente as licenças, e até cassando outras, quando já dadas.

A insubordinação às autoridades superiores e ordinários das dioceses, a par da impunidade, também tinham animado a relaxação dos regulares do ultramar, não faltando as contendas de jurisdição, a que se animavam sem embargo de se lhe haverem prescrito as mais impreteríveis regras no alvará de 23 de Setembro de 1793 , mas nem por isso alguns prelados regulares destas ilhas dos Açores se abstiveram de seus escandalosos excessos, nutrindo-se em acintosa insubordinação, e no péssimo e pernicioso exemplo com que após de si arrastavam os súbditos, que então por isso mesmo em nada tinham escrúpulos.

No entretanto alcançando o príncipe regente notícia certa destes insólitos procedimentos em matéria tão grave, e sabendo o mais que se seguia arredado da boa razão e direito em que se fundara o estabelecimento das ordens monásticas, e nomeadamente na custódia da ilha de S. Miguel, onde grassavam, havia muitos anos, semelhantes conflitos, por aviso de 3 de Julho do ano em que vamos, nomeou o novo bispo D. José Pegado visitador e reformador dos franciscanos existentes na mesma custódia.

Não podia ser pior a face dos negócios naquele tempo dentro da referida ilha, e também maior o cuidado e comprometimento do bispo, que logo dava entrada no seu bispado, feito árbitro de uma reforma entre súbditos constantemente orgulhosos, e sedentos de monstruosas temporalidades. Mas não havia remédio, e apenas investido na posse, recebeu um ofício do juiz de fora daquela ilha, Francisco Lourenço de Almeida, em 20 de Fevereiro, participando-lhe que as freiras do mosteiro de Santo André de Vila Franca de Campo, indo ele ouvir missa à sua igreja, o haviam insultado em altas vozes, chamando-lhe nomes injuriosos, assim de cima das grades do coro, como das janelas do mosteiro, fronteiras à rua: acrescendo o passarem oito destas freiras a arrombar as grades do post coro, e por uma escada de mão, saírem da clausura para a mesma igreja, no intento de passarem à rua e com efeito assim acontecera, a não lhes ser pelo sacristão fechada a porta; a cujo motim acudiram o ouvidor eclesiástico, e o mencionado juiz de fora, que de tudo era causa, por ter mandado prender o vigário do oratório do tal mosteiro.

Mandou portanto o custódio provincial devassar por dois religiosos, que foram auxiliados por uma escolta de soldados; e de todos estes procedimentos soube o novo bispo, em tanto que se resolveu, por não poder sair nesse tempo da catedral, a mandar lá o seu vigário geral, o dr. Anastácio José de Almeida, por alcunha o —— Cabo Verde— que era homem de um firme carácter, e letrado de boa reputação; a fim de devassar, e no intuito de compor as coisas com o menor estrépito de justiça que fosse possível. Todavia, depois que as freiras, cúmplices no delito, souberam estar pronunciadas na devassa, e que deviam por isso mesmo ser presas no cárcere, apelaram ante omnia para o núncio apostólico, a quem, diziam, só reconhecer por seu único e legítimo prelado, e não quiseram sujeitar-se a reclusão alguma; e como isto não bastasse, passaram logo a intentar suspeição ao vigário geral, chamando-lhe seu inimigo, parcial do juiz de fora, e do ouvidor, que a todos reputavam na mesma conta; sendo que tudo isto era sugerido pelos frades, especialmente pelo mestre frei José dos Anjos, que suposto acabava de provincial, continuava, encoberto o nome; e era um dos cúmplices na devassa, como principal autor de todas as desordens passadas, de forma que até chegara a oferecer, não pouco dinheiro, a quem conseguisse do bispo o pôr silêncio perpétuo nas devassas.

Quando foram citadas as religiosas para virem formar auto de resistência (de que declararam nenhum caso faziam) algumas delas puxaram pistolas, como completamente furiosas. No entretanto os frades estavam tão orgulhosos e insubordinados, que nenhum deles escreveu ao bispo a reconhecê-lo por seu visitador e prelado. Procedendo na devassa os dois religiosos por mandado do custódio provincial, que então era frei Vicente dos Prazeres, ficaram pronunciadas Ana Querubina, pelo tracto ilícito com o referido juiz de fora, e por lhe dar ingresso dentro da clausura, onde fora visto com ela, havendo para isso escalado o muro da clausura; e a abadessa Antónia Margarida, e outras mais constantes do — Documento LL — por alcoviteiras e sedutoras.

No interim faleceu o padre custódio frei Vicente, que era um velho bastantemente idoso, e resolvia-se o padre mais digno, dito frei José dos Anjos; na forma dos estatutos da ordem, a convocar o definitório para eleição, no espaço de 4 dias; e para isto escreveu ao vigário geral; porém este lhe fez ver a ilegalidade de um tal procedimento, porquanto, sem ordem do bispo, que era o seu prelado, e estava dentro das 30 léguas, nada podia inovar a tal respeito; além disto, fez-lhe o mesmo vigário geral várias ponderações de direito, para o convencer de que, residindo o bispo na diocese, como residia, e sendo actual visitador e reformador, que esta última qualidade lhe negava um tal definitório, pois devia ser ele mesmo quem o convocasse, e não o padre mais digno. Desta maneira sustentava o vigário geral os privilégios de seu prelado, e o frade, apesar de tudo, insistia em proceder à eleição. Insistiu finalmente o vigário geral contra aquele atentado, afirmando que o bispo não só era visitador, mas reformador autorizado na falta do geral, pelo núncio, com autoridade do papa; e com tais razões lhe argumentou, que o frade se viu obrigado a ceder da premeditada eleição tomando o sério acordo de participar ao bispo a sua desistência, tendo em resposta, a 8 de Maio, que tinha consultado o príncipe regente, e em quanto ele não resolvesse a quem competia o acto, nada se fizesse; quando porém ele padre ou o seu definitório prosseguissem em fazer a acção tendente a exercer a presidência de eleição ou qualquer outro acto de definição, ele bispo o declarava desde logo, por acéfalo, ilegítimo e de nenhum valor, antes que chegassem as decisões supremas do príncipe regente, ficando nestes termos responsáveis por todo o incidente que acontecesse.

Dizia ao ministro que o facto do arrombamento era certo e público, e estava provado; e da competência dos bispos, como expresso do Concílio Tridentino, e em diversas bulas e decisões de Roma posteriores; que ainda não tinha visto as devassas tiradas pelo vigário geral, e por isso não sabia nem podia afirmar, se os religiosos foram os que induziram as freiras, como dizia o juiz de fora; que os frades viviam em parcialidades escandalosas, como por vezes se representara; e entre eles haviam não poucas questões, assim internas como externas, com a jurisdição eclesiástica do bispado; que as esmolas feitas pelos fiéis montavam em tanto, que eles eram poderosos, e por isso orgulhosos, bulhentos, e por qualquer incidente armavam demandas, não temiam despesas, prometiam, e davam dinheiros; que na custódia havia mui pouca literatura e ciência; que os frades se muniam depois da sua vinda de provimentos para confessar e pregar; que ele chegara a absolver os primeiros dois desta falta, mas vendo que o mal e a culpa grassavam, lhes não deferira, nem procedera ainda contra os mais; que pelos factos acontecidos vira que o padre frei José dos Anjos o não reconhecia como reformador, mas como simples visitador, e nesta qualidade como um comissário do seu geral, ou do núncio que nestes reino; fazia as suas vezes: “... Se isto, Ilustríssimo e Ex.mo Sr., aconteceu no princípio, quando eu ainda não ordenei coisa alguma definitivamente, quando só apenas tomei posse dos sobreditos cargos, e mandei proceder, como bispo, e como reformador e visitador, à devassa e averiguação dos delitos, e escândalos públicos, que me foram até mesmo pelo custódio provincial defunto participados, veja V. Ex.ª para que conflitos me devo preparar! Que trabalhos, e perseguições me ameaçam, e me estão iminentes logo que eu a final, e com conhecimento de causa julgue, e queira castigar algum cúmplice das culpas referidas! Isto não é terror pânico, é receio bem fundado: em uma das cartas, que acima digo, vi escrito por um daqueles religiosos um arrazoado sobre como os visitadores comissários do Geral não podem só por si punir os padres da província. .......................................................

Tudo isto pede uma providência pronta e enérgica para que se emendem tantos desatinos: eu que vejo que a tempestade está armada, e ameaça grande estrago, suspendo, e não dou mais passo, até que o príncipe regente nosso senhor acuda com o seu alto poder a tantos males.”

Tal foi a resposta do bispo nesta melindrosa questão sobre que foi ouvido o corregedor; e ignoramos na verdade qual o resultado e só vemos pelos factos posteriores que estes frades, talvez animados pelo bom sucesso desta empresa, foram os maiores inimigos do bispo; que lhe promoveram sempre muitos desgostos directa e indirectamente, o que ele bem previu, como se manifesta da carta acima falando com o ministro de estado: e também não poupou esta ocasião para lembrar ao príncipe extinguisse o convento das freiras de Santo André, ou o entregasse à jurisdição dos prelados da diocese, como já por semelhantes motivos se haviam nos tempos antigos subtraído outros à sujeição dos regulares. Contudo não achou o príncipe resolvido tomar acerca disto a resolução requerida; ou fosse por extemporânea, ou por tocar mui de perto, e vulnerar os interesses de terceiro prejudicado.

Faleceu na vila da Praia o escrivão da Câmara António Diniz de Araújo, e sucedeu-lhe Ignácio Pamplona de Meneses, das principais famílias da mesma vila, e pessoa de merecimento, por seu bom comportamento, zelo e actividade no emprego. Serviu poucos anos, por lhe sobrevir a morte; porém nesse curto espaço fez mui importantes serviços ao município, entre os quais lembrarei a conservação, e guarda dos papéis do arquivo; o tombo dos bens do concelho por ele feito nesse tempo, (quando nos mais concelhos se inculcava a mesma necessidade) e a tradução de uma grande parte de documentos, que não só andavam dispersos e deslocados, mas até no último abandono, por sua antiguidade e letra, a que chamavam gótica, mui intricada e quase imperceptível: sendo ele o só paleógrafo que bem a entendeu, e traduziu com exactidão, como tive ocasião de observar, combinando a cópia com os originais, que se achavam marginados da sua mão e punho, quanto aos autos de aclamação que em tempo de el-rei Filipe I de Portugal se exararam ali; e ainda outros de igual importância, que todos, a não ser este zeloso patriota, ficariam em abandono sem consideração alguma, e perdidos para sempre.

Descobria-se, por este mesmo tempo, na base da rocha do mar, em frente da igreja das Quatro Ribeiras, onde está o ilhéu do Frade, uma pequena veia de águas minerais, com virtude para as moléstias cutâneas , conforme as experiências que então se fizeram; e de facto, concorrendo a elas várias pessoas enfermas que diziam achar alívio em suas moléstias, por isso lhes chamaram — Águas Santas —: e apesar de ser a descida perigosa, e o lugar de onde se extraíam mui acanhado, não deixava de sei mui frequentado, e a freguesia, em princípio desta descoberta. Levavam-se para longe às mais remotas povoações estas águas em garrafas, (como hoje se leva a da Serreta) para delas se usar e fazerem curativos. Todavia, esperando-se que o governo interferisse, mandando acautelar um tão precioso manancial, nenhuma importância lhe deu, abandonando tudo ao primitivo estado; e sobrevindo um rigorosíssimo Inverno, que excitou os mares do norte sempre tremendos naquela costa, logo obstruiu com enormes penedos a salutífera nascente, de tal sorte que muito apenas hoje se pode indicar onde existia. Tal é a sorte dos povos, quando as máquinas governativas se entorpecem!

Em 22 de Junho acordou a Câmara da cidade ficasse estabelecido em regra a benefício das muitas despesas com o encanamento das águas, que estas jamais se concedessem a pessoa alguma, sem a propina que se achou prudente, a saber: por meia palha 10$000 réis, por uma palha 20$000 réis; por meio anel 30$000 réis, e por um anel 40$000 réis. Assinaram este acórdão o juiz de fora Luiz António de Araújo e Amorim, e os vereadores — Bettencourt — Teixeira — e Lacerda . Também alcançaram provisão régia para fintar os moradores do concelho em socorro dos expostos que eram muitos.

Não ficaram baldados os passas que deu a Câmara de Angra, como acima dissemos, pedindo ao príncipe regente lhe reconduzisse no governo-geral desta capitania o conde de Almada por mais 3 anos, e assim obteve; sem embargo de que alguns procedimentos menos ajuizados o haviam comprometido, desde a vinda do juiz de fora o dr. José Pegado de Azevedo e Melo, tempo em que se estabeleceram rigorosas rondas pela cidade, e por isso lhe nasceram poderosos inimigos, indispondo-o com o corregedor Neves , e com alguns fidalgos, e nobres da governança da cidade, dos quais foi órgão principal o alferes do batalhão de linha Manuel Tomás de Bettencourt, homem decidido e resoluto, sobremaneira cioso dos seus e dos nobres privilégios alheios, e por tal bem conhecido: de forma que em seu tempo não desenvolveu menos coragem e patriotismo, do que antigamente o dr. António Garcia Sarmento contra os corregedores e autoridades, que usavam mal do poder de seus cargos em próprio favor, e de seus apaixonados: e todavia com feliz sucesso . Não comprometeremos a verdade, se dissermos que este homem até a idade de 80 anos, em que o conhecemos, ainda era tão respeitado e temido, que bem se lhe podia chamar, como chamavam àquele outro, o flagelo dos corregedores; porque este a muitos magistrados se fez parte nas residências, queixas, e outros processos, e foi ele quem, por motivos que não chegaram em todo ao nosso conhecimento, reunido com alguns descontentes, promoveu última mente a saída deste general tão cedo, como se não esperava. Já por último não lhe faltaram desgostos, e contas ao ministério, sem contudo em nada disto se alterar o sossego público, para o que muito concorreu a grande reputação e crédito do defunto seu pai, que apesar de alguma mancha imputada por seus émulos, o filho soube defender, e preservar reivindicando-os por um título não menos seguro e autêntico, que nobre e honroso, tal como agora oferecermos sob as letras — Documento MM —. O leitor ajuizará mais facilmente do merecimento do pai, e da probidade do filho.

Foi então despachado no governo-geral desta capitania o conde de S. Lourenço, José António César de Melo, que depois sucedeu na casa de seu pai com o título de — marquês de Sabugosa — e parece que nessa mesma ocasião foram também despachados o corregedor e juiz de fora da cidade acima nomeados, e o juiz de fora da vila da Praia João Manuel da Câmara Berquó, oriundo da ilha do Faial, que tomou posse do cargo em 2 de Setembro do ano em que vamos segundo a ordem dos tempos.

Achava-se na dita ilha do Faial o bispo, a título de visita, querendo assim desviar-se das grandes intrigas que andavam em Angra a respeito do general, conde de Almada, com quem ele também se achava dissidente, mas logo que soube estar outro despachado no governo das ilhas, veio para a capital, continuando a reger a diocese com actividade e zelo apostólico; porém em breve tempo se levantou contra ele uma terrível parcialidade, que pôs em acção todos os perniciosos meios de o perder. Os seus mesmos súbditos, com a maior parte dos quais ele não podia transigir, se conspiraram em o desacreditar. Não tiveram iguais émulos os seus predecessores D. frei Lourenço de Castro, e D. frei António da Ressurreição, quando tratavam de reformar abusos mio seu clero, e prover as colações das dignidades e benefícios com cura e sem cura de almas; e mesmo noutros particulares do seu comportamento social.

Não se escondendo de murmurar abertamente contra o seu prelado, procuraram desgostá-lo notando-lhe a maneira de viver com grande luxo de sua casa, estadio, e mesa lauta, imputando-lhe até nisto uma vaidade exaltada, por exceder os mais ricos proprietários da cidade, e de toda a ilha: os quais também não tardaram a fazer causa comum com os descontentes, declarando-se adversários do mesmo bispo; e com razão, ou sem ela, imputaram-lhe graves culpas, nas manifestas vinganças e injustiças que, diziam, punha em prática no provimento dos empregos, exames dos ordinandos, principalmente frades, e noutras ocasiões, que de certo lhe não faltavam; e por cúmulo de males assacaram-lhe a lascívia, após do deboche, que também lhe atribuíram; e na noite de 25 de Junho apareceram vários pasquins afixados nas portas da Sé, nos cantos das ruas da cidade, e uma figura ludibriosa atacando o seu decoro, elevada na praça das Covas, junto do pelourinho, e tudo isto de uma forma tão atroz, que o general se agoniou muito, e se deu por ofendido, conspirando-se com as autoridades subalternas no sentido de perderem os autores daquele sacrilégio. Em consequência do que imediatamente se procedeu a rigorosa devassa, inquirindo-se testemunhas e perscrutando-se por todos os modos quais fossem os delinquentes; porém tudo foi baldado; nada se soube de certo; antes pelo contrário mais se estimularam os ânimos dos agressores, vendo que o bispo continuava no seu reparável modo de viver. Assim fui caminhando este prelado; e sabendo que vinha para o governo geral o conde de S. Lourenço, com quem ele não estava em boa inteligência, passou à ilha do Faial, onde se demorou até que, sabendo da sua ida, tornou para Angra. Aqui foi ele estabelecendo estatutos, regras, e preceitos em prol do bom regímen, disciplina eclesiástica e completa perfeição do ministério paroquial, de que é prova a sua pastoral de 4 de Setembro de 1803 — Documento NN —.

Não consideramos de menos importância a outra sua pastoral do 1.º de Outubro, enviada aos párocos com o fim de reformar os abusos por eles praticados na celebração do sacramento do matrimónio, conferindo licenças a ministros estranhos, e que se efectuassem nas ermidas ou capelas de seus distritos sem autoridade do ordinário; e assim também, dando a desobriga dos paroquianos em igrejas que não fossem do seu próprio domicílio, pelas razões alegadas no — Documento OO —.

Por estas duas pastorais se colhe o estado decadente em que laborava a diocese angrense e suas ovelhas, quando entregues ao arbítrio de muitos e notoriamente relaxados pastores.

Também entendeu com a maneira de se exararem os assentos da vida civil, que apesar das recomendações de seus predecessores, se escreviam em muitas partes destituídos das necessárias declarações: sem que se descobrisse neles mais do que confusão perturbação, e até a ignorância de quem os escrevera, sem legalidade para os fins propostos. E parece que foi este bispo que mandou se nomeassem, não só os pais dos baptizados, e dos contraentes, mas também o dos avós e testemunhas, de forma que logo à primeira vista se pudesse descobrir, e resultasse o fim proposto no conhecimento dos graus de parentesco por consanguinidade e afinidade: e que tudo isto ficasse tombado ad perpetuam rei memoriam em proveito das partes, e por ventura da sociedade, como é óbvio.

Olhando pelo distintivo de que devera usar o clero, para diferença dos seculares, compreendeu a necessidade que já noutro tempo obrigara o seu predecessor frei Valério do Sacramento, a impor-lhes o uso dos chapéus de dois ventos : e ainda que os não fez adoptar, por já não convirem à moda do tempo, fez que usassem os triangulares, dando ele mesmo o exemplo: quanto aos lenços de seda de que se serviam no pescoço, e botas, calção, sapato, meia e vestidos talares, não foi menos solicito em decretar o modo e maneira de fazer uso deles , como as circunstâncias o permitiam, e não com aquele rigor do dito bispo frei Valério.

Ano de 1805

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Como nesta mesma cidade de tempos mui antigos havia uma mulher assalariada para levar a baptizar e enterrar os expostos, acordou a Câmara em 10 de Março se dessem por este trabalho à ama da roda 4$000 reis, que assim ficava mais bem regulado este negócio correndo por sua conta. Àquela mulher davam noutros concelhos o nome de parteira (por ter obrigação de assistir aos partos onde a chamavam) e representadeira, por levar os recém-nascidos a baptizar, e dela se fazia especial menção nos respectivos termos paroquiais como se lê nos fragmentos dos livros de natalibus em diferentes paróquias, especialmente até os anos de 1600.

Exigiu o governo de Portugal, em atenção ao estado dos cofres, por causa da guerra, que os moradores desta capitania o socorressem com uma contribuição voluntária. Em consequência do que oficiou o capitão general às câmaras no dia 7 de Junho, para que todas três se ajuntassem no seu palácio, com as pessoas da nobreza, clero e povo, no dia 12, a fim de se tratar deste negócio, e assim também para outras coisas do Real Serviço. Compareceram com efeito os convocados, e trataram de um empréstimo que alguns anos depois foi pago pelos cofres da real fazenda; mas não alcancei qual fora a quantia mutuada. E porque o príncipe regente pedia esta contribuição voluntária, e não obrigava a quem a recusasse, achamos que a Câmara da cidade em 7 de Julho acordou agradecer-lhe o ter livrado os seus povos de tributos — e com tanta benignidade exigia somente as porções que comodamente fosse possível dar, para se acudir à situação em que com despesas se tinha a coroa visto. Nesta mesma carta de agradecimento ponderava também o estado em que se achava a ilha, falta de gente por causa de repetidos recrutamentos.

Mas porque o corregedor era o juiz comissário desta contribuição ordenada em carta do 6 de Abril próximo passado, propôs na Câmara em 14 de Julho, que em Angra o na ilha toda se nomeassem, por freguesias, tesoureiros parciais que respondessem pelas quantias entregues, ou em dinheiro, ou em géneros, que tudo se aceitava para o fim proposto, devendo estes tributos reverter a um tesoureiro geral, que então foi nomeado o negociante Manuel Lourenço Viana, com Luiz António da Costa para escrivão, até que entrasse tudo no cofre da junta da fazenda.

Sobre este mesmo objecto escreveu o conde ao bispo, interessando-o na parte que ele devia tomar a favor das urgências do estado, convidando o clero secular e regular a contribuir com o que pudesse. Então o bispo tomando na devida consideração este negócio, escreveu com efeito e enviou ao clero aquela célebre pastoral, que por todos é lida com gosto como uma peça de erudição neste género: e por isso a levamos sob as letras — Documento PP —.

Cumpriu-se a 16 de Julho o alvará com força de lei de 24 de Janeiro, pelo qual se aboliu o uso do papel selado, sendo esta contribuição substituída por outras menos incómodas, a saber: nos alvarás de mercê, foros, cartas, padrões, títulos, patentes, privilégios, e outros declarados no mesmo alvará — Documento QQ —.

Por ter a Câmara de Angra notícias certas da próxima chegada do novo capitão-general, o conde de S. Lourenço, reuniu-se em sessão de 19 de Agosto, determinando se afixassem editais, avisando os moradores das ruas por onde havia de passar a tomar posse: e que nas janelas de suas casas pusessem todo o melhor asseio de roupas, cortinados, etc., com pena de 4$000 réis para as despesas do concelho; e que se fizessem luminárias por 3 dias na cidade e subúrbios.

Acho porém que ele só tomou posse no dia 18 de Outubro, sem poder afiançar em que dia desembarcara: e passa por certo que o conde de Almada tinha prevenido as autoridades, e tudo o mais conducente à sua aparatosa recepção, segundo o formulário e etiquetas do costume; e dizem mais que ele se embarcara para Lisboa com sua família no próprio navio de guerra em que viera o sucessor.

Concluiremos aqui o governo do mencionado conde de Almada, com o que dele disse um contemporânea nosso patrício: “O ilustríssimo e excelentíssimo senhor D. Lourenço de Almada, 1.º conde deste título, governador o capitão general das ilhas dos Açores trouxe para este governo obrigações de seu nascimento, o exemplo de seu pai, e as suas próprias virtudes; um espírito firme e inteiro, um coração digno dele, somente desconhecido aos que o não tem experimentado. Com tantos avanços o erro não pode ser senão a obra da impostura, ou o defeito da natureza”. O que não menos exprimiu o mesmo sujeito nos seguintes versos:

Sucedeu-lhe o bom Lourenço
No governo, e nos talentos;
E ajunta à glória paterna
Os próprios merecimentos:
Vós que a ambos conhecestes,
A cada um o seu dai:
Fazei ao filho justiça
Como a fizestes ao pai.
Criado em casa de reis ,
Apurado ao seu luzeiro,
Extrema civilidade
Faz o seu louvei primeiro.
O grande e pequeno pesam
Com uma mesma balança:
Empenhos nada conseguem
A justiça tudo alcança.
O seu povo não tosquia ,
E ainda menos o esfola:
Serve de exemplo à família
E cria-se na mesma escola.
..........................................
..........................................
..........................................
..........................................

Tomou posse de provedor dos resíduos, capelas, órfãos, defuntos e ausentes o dr. José Freire Gameiro, na Câmara da cidade a 31 de Agosto, cuja posse lhe deu o juiz de fora Luiz António de Amorim; que interinamente servia este cargo, o qual desde alguns anos andava em juiz letrado, e independente, como requerera o 1.º capitão general D. Antão de Almada.

Em execução das ordens régias logo que o novo governador entrou na posse da capitania exigiu das câmaras uma relação (era marca de todos estes governos em princípio) de todos os terrenos cultos e incultos, autorizando-as a fazerem arrendamentos e aforamentos de pequenas porções, com preferência aos vizinhos; e com a expressa cláusula de devolução, quando os enfiteutas deixassem de os tapar e cultivar no espaço de um ano. Dando ele por este modo um conhecido impulso à agricultura, nem por isso deixou de experimentar, como já em prémio de tais serviços, grandes obstáculos e uma decidida oposição nos povos da freguesia de Santa Bárbara, e circunvizinhas, que à mão armada, já esquecidos daqueles meios de paz e brandura com que por vezes haviam suplicado a conservação dos baldios nas Ladeiras, ou Escampadoiro, saíram a derribar todos os tapumes que por ali se achavam, feitos com o título da competente autoridade.

Este inesperado procedimento, que inculcava os povos ainda no estado selvagem, causou ao general um vivo pesar; assim como alguns tumultos que foram aparecendo na cidade por ocasião do embarque dos cereais, mas foi disfarçando quanto pôde estas amarguras, desculpando uns e castigando a outros, com aquela brandura e comiseração, filhas de sua alma generosa e benfazeja; por esta forma passou o resto do 1.º ano de sua posse.

Mas não esqueça dizermos que ele mui bem informado não obstinadamente, e por diferentes vezes, cometeram aqueles povos à mão armada, e mesmo em pleno dia quase sempre nos dias mais solenes e festivos, como eram Páscoa da Ressurreição, dia de Pentecostes e outros : deliberou tratar este negócio, e puni-lo com toda a severidade das leis: e para isto no dia imediato aos derribamentos mandou sair do castelo destacamentos de tropa armada e municiada, e cercando a freguesia de Santa Bárbara, dela e de seus arrabaldes, compreendendo os Milagres, trouxeram presa toda a gente que encontraram de um e outro sexo e idade; em tanto que as cadeias e enxovias da cidade e mesmo as prisões cio castelo ficaram cheias desta gente; pagando assim, corno sempre acontece, o justo pelo pecador; e com efeito mais tarde saíram dali, por ficarem compreendidos nas devassas a que se procedeu logo, não só ex-officio da justiça, como a requerimento dos prejudicados, que eram muitos, entre os quais se contavam Luiz Pereira de Lacerda e José Gambier, os quais haviam feito grossos tapumes em muitos campos, e algumas casas assim no Escampadoiro como às Doze Ribeiras, e no lugar denominado — os Curralinhos — que tudo ficou assolado por terra: tendo além disto os agressores a temeridade de obrigarem o capitão e juiz da freguesia, que dizem ser um João Bernardo, para que os acompanhasse e presenciasse o atentado como se por seu mandado o executassem, e pudessem livrar-se da responsabilidade.

Em consequência da boa prova houve a necessária pronúncia; e com tudo lançando-se as partes da acção que lhes convinha, por comiseração para com os delinquentes, facilitou-se o livramento dos cabeças daquelas assoadas, responsabilizam-se eles à reparação dos damos; intervindo nisto, às ocultas os próprios magistrados e o general. Por ora deixou persuadir esta aparente reconciliarão dos povos, que a paz e o gozo dos proprietários teria uma completa duração; porém quem houve jamais que se fiasse com segurança na aura popular, sem espalhar flores ao vento, como vulgarmente se diz? Sem embargo de que para o concurso, exames e propostas dos empregos eclesiásticos, assim dignidades e conesias, como dos que tinham ou não cuidado de curar almas e anexo o ofício de pregar, se haviam decretado em diversos tempos muitos regulamentos, de tal forma que parecia nada mais se carecer, nem se poder desejar, como sucintamente havemos mostrado neste escrito; contudo veio a experiência com o tempo, que é de todos o melhor mestre, a mostrar a urgência de algumas outras medidas, e regulamentos sobre tão importante objecto, deste bispado: e foi então mister remover alguns inconvenientes que se observaram para inteiro cumprimento do alvará das faculdades de 14 de Abril de 1781, e provisão de 12 de Maio de 1797 (— Documento RR —).

Facilitou-se por consequência um melhor andamento no expediente deste negócio, em sé vaga, declarando-se na provisão de 6 de Setembro do ano em que vamos — Documento SS — não só necessária a aprovação e qualificação; mas até o merecimento literário dos opositores, com as mesmas notas de distinção que se observavam nas informações dirigidas pela Universidade de Coimbra. Ainda depois desta se expediram outras provisões tendentes à completa organização desta lei regulamentar, que teremos ocasião de mencionar cronologicamente.

Ano de 1806

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Em 16 de Março faleceu na vila da Praia desta ilha, o deão Mateus Homem Borges, que na igreja principal da mesma vila fora baptizado em 21 de Novembro de 1720: dele só consta que foi rico em bens patrimoniais herdados de seus pais, João da Silva do Canto e D. Ângela Ignácia Pereira; também era administrador do morgado instituído por seu avô o sargento-mor Mateus Homem Borges, de quem largamente adiámos no ano de 1712 e seguintes. Serviu este deão de membro do infausto governo interino por óbito do bispo D. Frei José de Ave Maria; e mais de um ano governou o bispado, por nomeação do respectivo prelado D. José Pegado de Azevedo. Intitulava-se “fidalgo capelão da casa real”, porque seus pais e avós eram, com efeito, de reconhecida nobreza e fidalgos assentes nos livros de el-rei. Não foi doutorado, como o foram muitos de seus antecessores , porém possuiu os necessários conhecimentos com que serviu na Sé os empregos mais distintos.

Atendendo o prelado eclesiástico às representações que lhe dirigiram os moradores das freguesias dos Altares e de Santa Bárbara das Nove Ribeiras sobre o flagelo com que eram ameaçados pela divina justiça, anunciando-lhes um ano mui falto de víveres da primeira necessidade, por se acharem os campos de milho semeados já primeira e segunda vez, por causa do bicho que o traçava, aumentando de dia em dia este grande mal; mandou se fizessem preces públicas, e procissão nas ditas freguesias, por espaço de nove dias; e a pedido de algumas pessoas devotas, fez extensivas estas súplicas a toda a ilha, porque o mal a menos, se não em todo, era quase geral. Pelo que intimou aos párocos anunciassem ao povo — que a causa de semelhantes males eram as suas culpas, e a reincidência continuamente repetida — para que eles observassem a santa lei do Senhor, reconciliando-se com seus irmãos; evitando as mesmas culpas, jejuando com verdadeiro arrependimento, e pelo sacramento da confissão e comunhão aplacando as iras de Deus.

Anunciava-se na verdade aquele ano um dos mais escassos nos géneros frumentários, porque já nesse tempo, contavam-se 29 de Julho , se achavam as searas do trigo com gravíssimo prejuízo, procedido da irregularidade das estações, sobrevindo-lhes as geadas e a alforra, que ordinariamente nestas ilhas costumam apertar e consumir tais frutos no agro: e finalmente colheram-se de uns e outros géneros mui escassas novidades, assim nesta como nas outras ilhas deste arquipélago; acrescendo o haverem muitas moléstias febris que assolaram algumas povoações.

Não cessava o capitão-general de dar todas as providências para que se cultivassem os campos maninhos e desaproveitados, sem embargo destas desordens e assoadas, como se colhe da portaria enviada ao juiz de fora presidente da Câmara da Praia — Documento TT — e desta forma se tornava credor dos mais completos elogios, que em toda a parte, e por diversos modos se lhe faziam; e já na parte de Angra se procedia, conforme a ordem da Câmara datada a 27 de Março, à arrematação dos baldios, desatendidas as fraudulentas representações dos povos daquelas freguesias limítrofes, do que por vezes temos feito menção.

Ao mesmo tempo que a mesma Câmara empregava o produto da feira (novo subsídio no estado precário de seu cofre), na sustentação dos expostos, como consta do acórdão em data de 25 de Fevereiro; e para pagamento de tão exorbitante despesa, por esse mesmo tempo recebeu a confirmação régia do imposto dos carros, e de outros que para o mesmo fim lançara para as calçadas e encanamento das águas. Sem lhe faltar sempre em que despendesse avultadas somas, como foi por ocasião do nascimento de uma infanta, cujo nome não consta do acórdão de 19 de Agosto, a respeito da qual determinou se fizessem as necessárias demonstrações de regozijo público.

Também se fizeram neste ano as festas de S. João, com muita grandeza e pompa, em obséquio igualmente do conde, cujo comportamento, afabilidade e amor da justiça, não só os poetas elevaram em seus cânticos e harmoniosos versos, mas até os melhores oradores engrandeceram com elegantes elogios, quando se lhes proporcionou ocasião. Tal foi o que mesmo em sua presença no dia 17 de Dezembro recitou o dr. João Cabral de Melo, assistindo a nobreza da cidade, quando se celebravam os anos da rainha D. Maria I, e que me pareceu digno de ocupar um lugar distinto entre os documentos adiante juntos — Documento UU —.

Mas não só ao conde se dirigiram estes comprimentos obsequiosos, que nem só ele os merecia, também à condessa sua mulher endereçou o mesmo autor uma rica ode no dia de seus anos . Todavia o que parece mais digno de atenção sobre este objecto, é que a 29 de Agosto, reunida a nobreza e povo na Câmara da cidade, assentaram enviar ao príncipe regente um agradecimento por lhes ter mandado para os governar o dito conde, que tão bem se fora no posto, e pedir-lhe o recompensasse convenientemente, elegendo então para deputado à Corte o cavalheiro D. Ignácio de Castil Blanqui, como tudo melhor consta do — Documento VV — que se lê no livro dos acórdãos daquela data.

Foi na verdade o comportamento deste fidalgo e de sua família, assaz exemplar. Conviveu com os principais da ilha, honrando-os e convidando-os para sua casa, e desviando-lhes todas as suspeitas de parcialidade, e oposições que entre eles andavam perturbando o sossego em que deviam viver. Era inimigo do luxo e económico, ainda que jamais deixou de apresentar-se com as insígnias e vestidos próprios da sua pessoa e categoria, pois era militar de profissão. A inesperada morte de seu pai veio privar os terceirenses de gozarem por mais tempo as delícias do sossego, e brandura com que este 4.º capitão-general os governou. Parece que em seu tempo chegara para se abrigar no porto de Angra uma numerosa armada, acossada por furiosas tempestades, e que achara com efeito este general disposto a subministrar-lhe tudo quanto lhe era necessário até seguir sua derrota; mas não alcancei disto outra notícia, senão o que se colhe dos seguintes versos:

Que lusas faias, que estrangeiros pinhos,
De horrenda tempestade sacudidas,
Que nuvem borrascosa despedira
Não vem, Angra, encontrar na praia tua
Ancoragem segura, porto amigo!
Ó de riços baixeis que imensa esquadra,
Do asilo, que lhe ofertas convidada,
Vem no teu seio descansar segura!
...................................................

(Citado poema do dr. João Carlos Leitão).

Concluiu-se o ano de 1805 com uma grande falta de pão, o que obrigou a referida Câmara, em 3 de Dezembro, a representar ao general desse algumas providências, porquanto unicamente se achava algum alqueire de trigo a 700 réis, por ter sido a colheita mui escassa.

Ano de 1806

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À grande necessidade de cereais, que neste ano chegaram a vender-se por um preço nunca visto na ilha, acresceram muitas inquietações e roubos consideráveis, assim nas freguesias do campo, como na cidade, sendo roubadas algumas igrejas, tanto de seus ornamentos e alfaias importantes, como da prata, e vasos sagrados que nelas encontravam os sacrílegos salteadores.

O corregedor fez à Câmara sobre este objecto uma requisição de gente bastante para rondar a cidade ; e as ordenanças por ordem do capitão-mor andaram largo tempo detalhadas em efectivo serviço; porque continuavam as desordens e os roubos, ajuntando os malfeitores aos insultos o assassínio.

Tomou posse de corregedor da comarca no dia 9 de Maio o dr. Francisco Manuel Pais de Sande Castro, e demitiu-se do mesmo cargo o dr. José Pegado de Azevedo e Melo e na mesma ocasião houve posse o novo juiz de fora dr. Gonçalo de Magalhães Teixeira Pinto, deixando de servir Luiz António de Amorim, que mui bem se comportara.

Chegou finalmente à cidade de Angra D. Miguel António de Melo, despachado no posto de capitão general destas ilhas dos Açores, e foi o 5.º que tomou posse na forma do estilo e com a devida solenidade, no dia 10 de Maio do ano em que vamos de 1806. Em 5 de Julho escreveu à Câmara da cidade, enviando-lhe a cópia dos parágrafos da carta de lei de 20 de Agosto de 1766 sobre a criação do terreiro público, exigindo se nomeasse juiz e escrivão dele com provimentos respectivos. Liquidou-se nesta mesma Câmara o trigo da colheita próximo passada a 440 réis o alqueire.

Do governo deste capitão general achei as seguintes providências. Determinou às câmaras municipais cumprissem indefectivelmente os § 18 e 19 da carta de lei de 2 de Agosto de 1766, que dispunha — somente servissem de vereadores as pessoas mais distintas das respectivas terras, banindo das pautas os de inferior condição, que por abuso andavam introduzidos nelas; resultando desta confusão distúrbios, que traziam após de si muitas e mui perniciosas consequências: recomendando-se nos citados artigos aos corregedores tivessem muita cautela em evitar semelhantes confusões. Também na mesma lei se regulava o que se devia praticar nas eleições dos capitães-mores, sargentos-mores e capitães de infantaria das ordenanças, não se permitindo que tais eleições recaíssem fora das pessoas nobres na forma prescrita no alvará de 18 de Outubro de 1709.

Esta disposição mandou o general executar com a maior eficácia, o que em grande parte da capitania causou muitos debates, e animou gravíssimas desinteligências, descontentamentos e pleitos, a respeito dos que andavam no regimento das terras, sem que fossem da classe distinta dos nobres; tendo prevalecido o abuso no mesmo sentido em que já de seu tempo se queixava o nosso insigne poeta:

Outros também há grandes e abastados
Sem nenhum tronco ilustre donde venham;
Culpa de reis, que às vezes a privados
Dão mais que a mil, que esforço e saber tenham.

(Cântico 8.º, estrofe 4).

Também fez intimar a Câmara da cidade de Angra para que formasse tombo e registo completo dos bens do concelho, indicando-lhe o melhor método na cobrança dos seus rendimentos. Passou-se então ordem a todas as câmaras, depois da informação que deu o juiz de fora da cidade, certificando o grande desarranjo em que se achava o arquivo, onde faltava, tombo de seus bens , notícia certa e exacta dos rendimentos, e regularidade na administração de suas rendas —resultando destes abusos, dizia ele, não só escandalosa desobediência às ordens régias, mas até dano gravíssimo a todo aquele povo — (Livro do Registo da Câmara da Praia fl. 149 verso).

E porque os estrangeiros tiravam destas ilhas um grande número de mancebos para as suas navegações, armadas e pescarias, com gravíssimo prejuízo do reino de Portugal, mandou se fizesse em todos os portos de navegação um registo geral dos marinheiros dos navios de alto bordo, mercantes e barcos de pesca, com declaração de seus nomes, idades e mais circunstâncias individuais, com observância dos § 24 e 25 da referida carta régia de 2 de Agosto de 1766.

Fez outrossim executar o disposto no alvará de 24 de Fevereiro de 1764, carta de lei de 2 de Novembro de 1787, e aviso de 16 de Julho de 1801, pelos quais se regulavam os modos e circunstâncias em que se deviam guardar os privilégios dos soldados milicianos (citado Livro do Registo, fl. 15 verso) . Exigiu mapa exacto da população das ilhas, com número das pessoas de todos os sexos, existentes; idades respectivas contadas de 1 a 10 anos, e daqui à de 100 anos; quantas ligadas ao estado eclesiástico, secular o regular; quantas as pessoas solteiras, casadas, ou viúvas de cada sexo (Portaria de 15 de Julho de 1806).

Exigiu também o cumprimento do aviso de 4 de Outubro de 1798, que fora enviado circularmente, e expedido ao vice-rei dos estados do Brasil, e mais governadores dos domínios da Ásia, Africa e América, e cuja execução fora recomendada aos destas ilhas em outro de 16 de Setembro de 1799; e para exacto cumprimento da sobredita ordem, mandou que, sem perda de tempo, se lhe enviasse o balanço da receita e despesa que tivessem as câmaras desta província nos últimos 6 anos, do 1.º de Janeiro de 1800, até 31 de Dezembro de 1805; e que em Janeiro de cada um ano futuro lhe fosse enviado igual balanço. Tinha por fim o citado aviso de 4 de Outubro de 1798, remover os abusos praticados em muitas Câmaras com a distribuição de seus rendimentos: — “que elas empregassem as suas rendas em benefício público; que se premiassem aquelas que fizessem bom uso de suas rendas; se castigassem aquelas que, ou por negligência, ou por peculato, não satisfizessem ao que deviam”.

Saudável providência na verdade fora esta, se as pessoas da governança fielmente cumprissem o seu dever; e se o governo da sua parte estivesse deliberado a cumprir, e fazer executar a devida pena contra os refractários; porém tudo isto e muito mais ficou em palavras, sem que até nossos dias, com rara excepção, melhorasse.

Haviam obtido os religiosos da Terra Santa, quando governava a rainha D. Maria I, que as Câmaras do reino e seus domínios lhes pudessem fazer esmola, para sustentação, custódia e guarda dos santos lugares de Jerusalém, até a quantia de 4$000 réis cada uma, a saber: as que tivessem de rendimento 400$000 réis; e as que não tivessem mais de 100$000 réis poderiam dar 400 réis: e porque este privilégio se achava acabado, alcançaram provisão para continuarem a pedir para o mesmo fim, por mais 6 anos, assim como já lhes fora concedido no ano de 1800. Em consequência do que passaram aos Açores delegados do comissário geral; e outras vezes exerceram esta missão os religiosos franciscanos desta província, que sabiam tirar dos povos somas consideráveis, a título de esmolas, com suas pregações, confissões, indulgências, relíquias sagradas, e outras mais coisas. No ano de 1818 veio com efeito à ilha Terceira (parece que já havia missionado na do Faial, onde lhe não fora muito bem) um destes religiosos franciscanos de Lisboa, por nome frei José de S. Paulo, que por suas eloquentes missões, e muito mais por suas reconhecidas habilidades, ajuntou, ou para melhor dizermos, extorquiu dos povos grossas somas, em dinheiro e géneros, produtos da ilha; mas falecendo de repente na freguesia do Porto Judeu, de um ataque apopléctico, estando no púlpito, não se pôde liquidar o produto de seus trabalhos apostólicos, e dar-se-lhe com efeito o necessário destino, como foi público. Depois deste missionário não sabemos viesse outro algum a estas ilhas para o dito fim: e cumpre dizermos que no ano de 1806 em que vamos, andou na mesma diligência religiosa o nosso mestre frei João do Cenáculo.

Publicou-se o decreto de 18 de Outubro, pelo qual se determinou que as casas de Misericórdia do reino e seus domínios, se regulassem pelo compromisso de Lisboa, quando o não tivessem próprio, do que resultou um sumo proveito a esses estabelecimentos, não só pela remissão dos legados, que desde então se não cumpriram, quanto mais pela aceitação que geralmente se começou a fazer em todos os hospitais, indistintamente, dos enfermos de qualquer concelho, ou distrito que fossem; e dos militares da marinha e do exército, evitando-se desta forma as escandalosas exclusões praticadas em muitos deles por seus administradores, a título de economia contra o que a este respeito já fora sábia e piedosamente decretado por el-rei D. Manuel de gloriosa memória, por seu filho D. João III, pelo cardeal-rei, e ainda por el-rei Filipe o Prudente, e outros, que sempre reprovaram e detestaram o exclusivismo dos enfermos, quaisquer que eles fossem . Porém quem diria que apesar de tão sábias determinações, já mesmo em tempos constitucionais, se tem postergado a lei, feito uma odiosa exclusão, com horror e estremecimento da humanidade oprimida; e da porta do hospital da cidade de Angra foram reenviados muitos enfermos, ou por não serem do concelho, ou da ilha? E os mesmos passos seguiu a mesa da Misericórdia da Praia, a termos de baixar uma portaria do governo de S. M. estranhando este procedimento ilegal, segundo é fama, e lembrando a rigorosa observância do citado decreto de 18 de Outubro, que veio por termo a semelhantes abusos.

Por efeito de tão sábio decreto deixaram também os corregedores, e provedores dos resíduos de entrar naqueles pios estabelecimentos a tomar contas da receita e despesa e a levar-lhes os salários delas, ou voluntariamente, ou à força de mandados. Assim mesmo ainda alguns destes magistrados abusaram, entrando em algumas casas de Misericórdia a tomar contas, e a revistar livros, como foi na vila de S. Sebastião; de cujo procedimento agravou a irmandade, e obteve provimento, pelos anos de 1805, sendo provedor o padre António Coelho Souto Maior, e seu tio o padre João Crisóstomo.

Insistiu o capitão general em fazer executar as diversas leis a respeito da agricultura, em que quase exclusivamente se achava situada a felicidade dos povos; e com o mesmo intuito que já fora recomendado em aviso régio de 13 de Abril de 1805, suspendeu a feira e mercado da cidade, autorizando também a venda de todos e quaisquer géneros na praça pública, aos domingos e dias santificados; assim como a livre exportação de gados e efeitos das ilhas de baixo.

Representou-lhe a Câmara da cidade a dúvida em que se achava a respeito dos oficiais que nela deviam servir neste ano; por quanto, havendo saído na pauta José de Bettencourt, D, Ignácio de Castil Blanqui, e Luiz Pacheco de Lima, um deles se achava ausente, e outro impossibilitado por ser militar, e privilegiado, segundo o decreto de 22 de Março de 1751; e por isso não podia fazer vereação com um só vereador, e neste caso perguntava quem devia ser chamado para estas substituições; e ainda que lhes ocorria o valerem-se da provisão de 23 de Setembro de 1744, que mandava servisse, na falta de um terceiro, o vereador mais velho do ano passado; contudo ainda assim mesmo entrava em dúvida se essa provisão era privativa da acção para que fora obtida, e se não estendia ao futuro; e outrossim se movia entre eles a questão da preferência que se daria no senado aos vereadores que foram chamados nas diferentes faltas, porque alguns queriam que os chamados das pautas mais próximas tivessem preferência aos das mais remotas, ainda sendo-lhes superiores em idade: assim como também se duvidava sobre o dever ou não dever preferir o vereador proprietário da pauta, sendo menor em idade, ao que fora chamado da pauta próxima, quando acontecesse o ser maior. Estes foram os pontos sobre os quais a Câmara pedia explicação, por lhe não ser permitido proceder a eleição nova.

A tudo isto respondeu o general fundando-se na Ordenação L.º 1.º, t.º 67 § 6° e no alvará de 3 de Julho de 1615, alegado por Gabriel Pereira de Castro (por não ser a cidade de Angra cabeça de comarca do 1.º banco) decidindo no primeiro caso, que era procedente o disposto na provisão de 9 de Outubro de 1744, que já providenciara acerca do caso ocorrente, por ser princípio vulgar que onde há a mesma razão, se dá a mesma disposição de direito. — Quanto ao segundo artigo decidiu que deviam preferir os vereadores do ano passado aos dos anteriores, para substituírem os do presente impedidos, segundo as antiguidades, ou preferências de que usavam no ano em que serviam. — E quanto ao terceiro artigo finalmente decidiu, que os substitutos sempre tomavam os lugares dos substituídos, e por consequência nunca os vereadores das pautas pretéritas, chamados para substituir os da actual se deviam preferir, ainda que estes fossem mais moços na idade, assim como eram mais novos no serviço. E. sendo vista na mesa do desembargo do paço esta decisão, houve por bem louvar o seu zelo, exacção e acerto; e que em casos idênticos ficasse praticando desta forma; e mandou registar tudo no Livro do Tombo das Câmaras da capitania, onde conviesse (L.º 3.º do Registo da Câmara da Praia, fl. 65).

Andavam neste tempo administrados os bens das confradias e irmandades, por juízes, mordomos e escrivães eleitos trienalmente com assistência do provedor dos resíduos, ou seus delegados para as despesas ordinárias do culto religioso, e dos santos a que diziam relação; em tudo o mais se carecia autorização previa do juízo com audiência do fiscal, que ordinariamente era quem ditava o despacho, e dava o alamiré em sua resposta, mais das vezes ocultamente concertada com o escrivão, que era um pronto agente naquele tremendo tribunal, sempre digno de especial memória!

Tantas e tão notórias eram as violências, extorsões e traficâncias que ali andavam, já por ocasião da tomada de contas dos legados pios (e que sacrilégios na celebração das missas e ofícios!), já pelos repetidos processos e tombos que dos prédios das confradias, capelas e morgados, de anos em anos se faziam sob o especioso pretexto de conservação de tais fundos nas corporações e pessoas chamadas para os administrar; já pela maneira de fazer as eleições; e já em fim pelo arbítrio com que este juízo dispunha do resíduo da administração, que não se achava repartição alguma nestas ilhas mais respeitável, por não dizermos, mais temível, e detestada do que esta. Não se contavam de tempos os mais remotos se não vexames, e violências as mais revoltantes; nem ali havia regimento fixo de salários dos empregados de justiça; e se o havia, não se observava, e muito menos se isentava o provedor de se intrometer nas confradias que eram da inspecção do ordinário.

Servia este cargo o dr. José Freire Gameiro, e de fiscal Luiz José Coelho, escrivão António Lúcio Duarte dos Reis, que substituíra o mui celebrado José Godinho da Costa Ramalho: de forma que, notando-se há muito a continuação dos mesmos arbítrios destes empregados, identificados no mesmo sentimento. Perguntou-lhe o general (e destas questões haviam inumeráveis) em que tempo fora erecta a confradia de S. Pedro Gonçalves, e por que título se lhe levavam 4$000 réis no dia da sua festa? Se era pela nova eleição a que se procedia, ou se era por certas arrematações que nesse dia se faziam? Iguais procedimentos teve o mesmo provedor, e ainda mais escandalosos, com diversos vogais de confradias em todas as ilhas da comarca, que bem se podia dizer levava a ferro e a fogo; e principalmente contra José Machado Gato, do Porto Judeu, dando causa a que o general oficiasse ao bispo, para que mandasse avocar os livros das eleições da sua competência, e os da receita e despesa, a fim de evitar de uma vez tamanhas violências —Documento XX —-.

E por esta ocasião repreendeu a maneira de prover nas capelas das igrejas, em que o provedor referido Gameiro — praticava grandes vexames, excessos muito notáveis, pelos quais se achavam as ditas confradias, ou muito diminutas, ou exauridas de seus rendimentos.

Proibiu-lhe portanto o entender, por ora, com semelhantes estabelecimentos, e lugares pios, em quanto a esse respeito não recebesse ordem régia. Chegou este corregedor e provedor a tamanho excesso, que reteve em sua casa os papéis do cartório, e deles com suma dificuldade se davam as certidões a quem as pedia, mas quando já se haviam esgotado todos os recursos, e consumido a paciência dos requerentes em viagens e gastos de dinheiro, sendo que por cúmulo de males, ainda saíam maltratados com acções e palavras deste magistrado, e seus empregados mais próximos; contra os quais se fizeram muitas queixas, ainda hoje existentes na secretaria-geral, onde são atestadas as grandes maldades cometidas dentro e à sombra de tão aborrecido tribunal . Afirmava-se naquele tempo que este general nada fizera mais importante do que suspender as fúrias desta venenosa hidra, cuja alçada se estendia às sete ilhas deste arquipélago, para as devastar e consumir sem respeito ao mais sagrado .

No que também muito ao general coadjuvava o bispo da diocese D. frei José Pegado, por aquela boa harmonia que sempre com ele conservou ao tempo de seu governo, dando pronta execução a tudo quanto lhe foi deprecado, sendo um dos precatórios para que os párocos e mesários de confradias, sem repugnância alguma, devolvessem ao dito provedor os livros que ele devia examinar na correição. Para cumprimento das ordens régias que lhe foram transmitidas, exigiu o general, do provincial dos franciscanos, uma relação da fundação dos conventos, padroados, e aquisição de bens, dotes, número de religiosos de sua instituição, e dos actuais: e o mesmo exigiu dos priores dos outros conventos, escrevendo ao bispo para lhe dar mapa das religiosas da sua jurisdição. Foi então que melhor se conheceu, quanto embaraço causavam à população, agricultura, e ao progresso da civilização, estas corporações quase inválidas, e em tão grande número cá nas ilhas.

Recebeu outrossim, e fez executar as cartas régias de 22 de Março de 1785, e de 1787, dirigidas ao vice-rei dos estados do Brasil, com extensiva a estas mesmas ilhas, pelas ordens régias de 16 de Julho de 1801, enviadas ao seu antecessor; e a do 4 de Outubro de 1806, relativas aos regimentos de milícias, de cujos privilégios já fizemos menção.

Grassava nestas ilhas com seus mortíferos efeitos o contágio das bexigas, a cujo progresso também o governo opunha todos os meios ao seu alcance, como se disse no ano de 1802; para isto, e a requerimento de muitas pessoas, fez subir à Secretaria de Estado, em 20 de Maio, uma representação, expondo a razão por que sem perda de tempo se lhe devia enviar um cirurgião que nelas introduzisse a vacina, tão bem aceite pelas nações cultas da Europa . Foi logo este requerimento tomado na devida consideração, no em quanto o general da sua parte recomendava aos provedores das Misericórdias, e hospitais guardassem a maior cautela na entrada dos enfermos, e dava outras providências para socorrer a humanidade oprimida debaixo deste terrível flagelo.

Partiu com efeito de Lisboa, a 5 de Outubro, o bergantim Conde de Almada, trazendo a seu bordo o cirurgião Estanislau José Coelho, com o rico presente da vacina, e dois meninos da classe dos expostos, que se deviam vacinar durante a viagem; e um criado — para que a matéria da vacina chegasse em estado de produzir o necessário efeito —; a passagem e sustento do cirurgião até à ilha, assim como dos enjeitados, e do criado já vinha paga na corte, e nas ilhas onde o mesmo cirurgião se demorasse, e fosse necessário para introdução da vacina, lhe seriam pagos 1$600 réis diários em dinheiro do reino, pago mensalmente à custa das Câmaras e moradores abastados, como fora proposto pelo, mesmo general; e que se lhes daria auxílio, e pagaria o transporte para as demais ilhas desta capitania.

Segundo as ordens que trazia o cirurgião deviam os dois enjeitados ser educados nesta ilha Terceira, com o maior cuidado e empenho, ou reenviados à Misericórdia de Lisboa, de onde haviam saído. Não consta de certo em que dia chegaram cá, e só encontramos que o general, já em 20 de Maio de 1807, enviara à Câmara da Praia a cópia do aviso régio, que se acha no livro do registo fl. 170, é vai aqui por — Documento YY —, expondo-lhe o maravilhoso efeito da vacina — eficacíssimo remédio para afugentar o flagelo das bexigas, que desde o século XVI perseguia a humanidade.

Em 15 de Novembro deste ano compareceram várias pessoas da freguesia de S. Jorge das Doze Ribeiras, que foram notificadas para apresentar títulos das propriedades foreiras, ou rendeiras à Câmara da cidade de Angra, e se verem condenar na mesma vereação, se não apresentassem documentos por que legalmente se achassem desfrutando quantidade de campos, tapados a seu arbítrio no sítio da Fajã, e no lugar da Fonte Nova. E procedendo-se com efeito nesta averiguação foram condenados em 6$000 réis, cada um, Manuel Machado Fagundes, que possuía três tapadas no dito lugar da Fonte Nova, e Manuel Cota Machado uma fajã no lugar das Duas Ribeiras, e dois pomares no Biscoitinho. Da mesma forma foi condenado Mateus Machado Fagundes, e outros mais que se achavam intrusos em diversos campos do concelho. Outras vereações se fizeram em que se procedeu a iguais condenações: e preenchendo editais para as necessárias arrematações entraram estes campos no domínio da Câmara, que ainda hoje deles recebe os foros. Tais foram os meios, à primeira vista violentos, por que esta Câmara abriu caminho à cultura de seus baldios, certa de que a repugnância dos povos em os aforar, só nascia de quererem servir-se deles, e desfrutá-los à sua vontade, sem pagarem coisa alguma: mania esta, que por fatalidade muito tempo esteve em exercício, e ainda hoje dura entre as mais alongadas povoações da ilha, com gravíssimo prejuízo da sociedade, e estorvo da agricultura.

Continuava a notar-se a longevidade de muitos habitantes desta ilha, como se evidência dos assentos mortuários. Por eles vemos (por exemplo) falecerem na vila de S. Sebastião desde o ano de 1800, de 80 a 92 anos, sete indivíduos, a saber 4 do sexo masculino; e do feminino; e uma mulher com 100 anos, Eis aqui o termo que dela se fez a fl. 35, verso, do 3.º L.º mortuário: Em os 8 dias do mês de Dezembro de mil oito centos e seis faleceu Maria de Jesus viúva de António Cardoso, com idade de 100 anos, pouco mais ou menos: recebeu todos os sacramentos; foi seu corpo envolto em hábito de picote, e sepultado na Misericórdia desta vila, como pobre. Para constar lancei este termo. José Mateus Coelho de Aguiar, cura.

Ano de 1807

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Já no ano de 1804 tratámos das providências dadas pelo príncipe regente na qualidade de Grão-Mestre da Ordem de Cristo, com o fim de se evitarem alguns inconvenientes observados na prática dos concursos, exames, e propostas dos empregos eclesiásticos deste bispado, em relação ao alvará das Faculdades, concedidas aos bispos; e sendo estas confirmadas pelas últimas concedidas pela resolução de 13 de e Setembro de 1805, para os concursos, e propostas das dignidades, conesias, capelanias, vigararias e quaisquer outros benefícios, com cura, e sem cura, e mais cargos eclesiásticos, por terem sido essas faculdades delegadas a benefício das igrejas: agora pela provisão de 23 de Janeiro declarou o mesmo Grão-Mestre terminantemente qual a maneira por que havia concedido uma semelhante graça — que jamais poderia de futuro tomar outra natureza, que não fosse a de uma simples comissão, sem por isso conferir ao bispo algum direito próprio, ou mais intervenção nos provimentos dos benefícios do que por ela lhes facultava: juntando a estas outras mais cláusulas e cautelas, bem expressas na mencionada provisão — Documento ZZ — de tal forma que ficaram decididas para sempre aquelas dúvidas que o interesse pessoal, e outras circunstâncias ocorrentes poderiam suscitar contra os direitos do real padroado, em utilidade dos bispos e seus sucessores.

Ordenou o príncipe regente, por sua imediata resolução de 19 de Agosto de 1803, participada ao corregedor da ilha da Madeira em provisão da mesa do desembargo do paço de 27 do dito mês e ano, que nas portas das igrejas se não afixassem editais, que respeitassem a negócios diversos da disciplina eclesiástica; porque quanto aos que tratavam de negócios civis, somente eram lugares competentes para serem afixados as paredes externas das mesmas igrejas, com exclusão das portas que para elas dão serventia. Que o contrário acontecia nestas ilhas, por inadvertência dos magistrados. Esta ordem, sabendo o general do abuso, mandou registar nas estações competentes, enviando-a ao bispo a fim de tomar as convenientes precauções: como se tomaram pelo dr. provisor João José da Cunha Ferraz, em 19 de Agosto de 1807 em que vamos.

Tratou-se com a maior diligência e cuidado de fazer os primeiros ensaios da inoculação da vacina em Angra, para se transmitir às outras povoações, o que efectivamente parece cumprido até o dia 13 de Fevereiro, porquanto se lê no acórdão da mesma Câmara serem as da Praia, e S. Sebastião contempladas no mencionado aviso, para ajudarem ao pagamento do professor da vacina, e dois dos expostos e por isso deverem entrar com a sua quota parte; determinando além disto se passassem editais com a substância do oficio do general sobre este importante negócio; e carta circular aos nobres, e abastados da terra a fim de se acharem na vereação que se destinasse, a declarar a qualidade da oferta, não só para o dito pagamento, como para remuneração dos dois expostos que acompanhavam o professor da mesma vacina.

Em vereação de 7 de Março calculou-se finalmente a despesa com ele em 476$000 réis, dando a vila da Praia 150$000 réis e a de S. Sebastião 50$000 réis: e que se fizesse uma derrama no concelho para se oferecerem aos dois expostos vinte moedas, e quatro para o seu transporte: o que definitivamente se resolveu, por assento no dia 14 com os nobres, e mais pessoas abastadas da governança, que a este fim autorizaram a Câmara; e desta forma se concluiu o processo da vacina tão proveitosa nas críticas circunstâncias da ilha; apesar do desprezo que mostraram em princípio muitas pessoas, por falta de experiência. Concluído tudo isto passou à ilha do Faial o dito professor Estanislau José Coelho, a praticar sobre este objecto o que lhe fora determinado.

Ocorriam tais moléstias procedentes de um defluxo quase epidémico, que o bispo de acordo com o general, assentaram (consta do referido acórdão de 7 de Março) se fariam as necessárias demonstrações de alegria pelo nascimento da infanta , filha do príncipe, mais adiante, quando os povos se achassem livres deste incómodo.

Aos ditos dois expostos — por serem portadores de tão rico presente — ofereceu o general 40$000 réis; e confiando na generosidade das pessoas abastadas um igual reconhecimento, parece que ficara iludido com a maior parte delas.

Na Câmara da Praia — se achou algum que rompeu com palavras de ingratidão — do que ele se queixou ao juiz de fora em ofício de 4 de Abril de 1808. Mas não pareça admiração que tanto custasse nesta pequena terra, quando em Portugal não poucas diligências e cuidados se empregaram para multiplicar, tamanho bem. Foi em 19 de Junho de 1813, que pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino se expediram ordens a toda a parte dos domínios portugueses, e governadores das ilhas, com recomendação aos bispos a fim de se executar pontualmente o regimento que as acompanhava. E porque estes documentos fazem honra à Academia Real das Ciências, ao governo que prontamente os mandou a seus delegados, e a todos os que tiveram o zelo e a caridade de os solicitar e cumprir, aqui os registaremos todos debaixo das letras — Documento AAA —. Oxalá que reconhecendo-se, como se reconhece ainda hoje, o saudável deste preservativo, houvesse o necessário zelo em se aproveitar, e não acontecesse o perder-se o pus vacínico, como se perde , logo que se desenvolve, por não ser transmitido convenientemente! Concluiremos com o que disse o referido L Meireles na citada Memória, queixando-se do pouco caso que destas ordens se havia feito e delas não ter notícia: — “mas como o poderia eu saber, se desde 1813 até 1828 havíamos tido 3 bispos, e 6 corregedores, que nunca comunicaram aos povos tão paternais disposições? E será muito se eu disser destes forasteiros coisas as mais amargas? E tais tem havido que muito se irritariam se por estes ofícios fossem perguntados; mas quanto se compra seriam se alguém procurasse saber deles quanto lhes havia custado o rico plató, as ricas louças, e o mais faustoso adereço da sua casa, em nada por certo comparável com a santa pobreza das alfaias de um D. Martinho, que deve ser considerado em Angra, como será eternamente em Braga D. Frei Bartolomeu dos Mártires!”.

Ainda no ano de 1808 trataremos a respeito do contágio das bexigas, e seu contraveneno. Tinham-se dado novas providências sobre a educação da mocidade, e regimento das escolas maiores e menores, em 6 de Novembro de 1772; e suposto deverem remeter-se à capital desta província, não sucedeu assim, ou não eram conhecidas cá, e muito menos observadas pelos diferentes professores, que a seu bel-prazer regiam as aulas com gravíssimo prejuízo dos alunos; constando porém o deplorável estado em que se achava este importante ramo da pública administração, determinou o general em portaria de 25 de Agosto, que os referidos professores ficassem advertidos de não darem férias senão às quintas-feiras, e dias santificados; e que as não podiam dar se não autorizados por ele, como director dos estudos, em conformidade da carta régia de 19 de Agosto de 1799; e que as Câmaras lhe informassem sobre o comportamento dos professores, para sobre este objecto se darem as providências necessárias.

Existiam nesse tempo em Angra duas cadeiras de gramática portuguesa, uma de gramática latina, e outra de latinidade; uma de filosofia racional, e outra de retórica. Em cada uma das duas vilas havia uma aula de gramática portuguesa e outra latina. Parece-nos que ainda na freguesia de Santa Barbara não existia a de ler, escrever e contar que hoje há, e não haviam com efeito outras algumas aulas com as quais se devesse entender o general dentro da ilha. A todas enviou novas instruções que lhes aproveitaram muito, por se acharem os respectivos professores em completa folga e relaxação, entregues ao seu próprio arbítrio e vontade; mas quão tarde se tem ocorrido de nosso tempo a semelhantes abusos.

Foi suspenso do posto de capitão-mor da vila da Praia, António Borges Leal Corte-Real (2.º do nome e filho daquele de que largamente havemos tratado) por insubordinado, e por tolerar os abusos e corruptelas dos capitães das ordenanças — que viviam em uma crassa ignorância, quanto ao cumprimento de seus deveres — (L.º das ordens do dia, a 6 de Julho).

Outra providência deu o general de não pequena importância, e foi o escrever ao juiz de fora da Praia, para que dali em diante não se exigisse licença dele, quando os juízes eclesiásticos quisessem recolher nas cadeias qualquer ressoa do seu foro; porquanto, por alvará de 1566, e outras ordens régias de posterior data, se concedera o privilégio especial, que não fora derrogado pelas ordenações filipinas, de serem as cadeias públicas civis destas ilhas comuns aos juízes seculares e eclesiásticos, e se servirem delas na reclusão e guarda dos presos respectivos ; providências estas que o corregedor ignorava, e por isso, achando-se de correição na dita vila, embaraçou se executassem, obstando a um tal privilégio, que trazia consigo conflitos de muita consequência entre os dois juízos.

Decorrendo já o ano de 1807, em que vamos segundo a ordem dos tempos, inesperadamente entrava pelas fronteiras de Portugal o exército francês, comandado pelo general Junot, e achando-se o reino sujeito às suas exigências, e aliança dos ingleses, viu-se obrigado o príncipe regente D. João, com a família real de Bragança, e com a septuagenária rainha sua mãe , a precipitadamente evitar o golpe que o esperava, abandonando a foz do Tejo, e como abrindo caminho a novas e duradouras infelicidades, foi estabelecer-se na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, em vez de se abrigar a qualquer ilha do Atlântico; preparando de antemão a ruína da antiga pátria na futura independência daquele estado, que desde logo se dispôs para essa dolorosa operação.

Viram-se então obrigados os portugueses residentes no continente a formar uma liga para excluir o inimigo comum, a cujo fim se procedeu a um rigoroso recrutamento: e temendo o governo existente em Lisboa que os franceses viessem atacar as ilhas dos Açores, escreveu ao capitão-general recomendando-lhe tomasse as necessárias cautelas com o fim de evitar alguma invasão; o que ele fez escrevendo em 6 de Novembro ao governador do castelo, que além dos mais preparativos, se dispusesse a defesa daquela praça, e da ilha inteira, quando as circunstâncias o exigissem.

Falando o autor da citada Corografia Açórica do estado das ilhas nesta época fatal, explica-se nestes termos. “A guerra de França, de 1807 a 1813, trouxe aos Açores grandes prejuízos; a maior parte dos seus vasos mercantes foram aprisionados, carregamentos de grande valor roubados: seus portos e ancoradouros escarnecidos e devassados por qualquer corsário francês.

O governo não deu providência alguma: as peças estavam no chão, as carretas podres; falta de pólvora e bala; tudo jazia em tal estado, que uma pequena e imbecil chalupa estrangeira, era inimigo poderoso dos abertos portos dos Açores; a vida e a honra das famílias, a propriedade doméstica, tudo estava exposto ao menor insulto do inimigo; e o governo, sendo tranquilo espectador de tal estado de coisas, parecia concorrer contente para a desgraça destes povos, mandando suas rendas públicas para a Grã-Bretanha! Aqui temos o estado das nossas ilhas dos Açores quando Portugal é invadido; nada mais diremos a tal respeito.

Continuava o general a promover, por intervenção das Câmaras, o emprazamento dos baldios; sobre o que no concelho de Angra, foram obrigados os juízes dos limites a fazer arrolamento e medição deles, como se manifesta da acórdão que se exarou na mesma Câmara a 14 de Março.

Em execução das ordens régias, de que já tratamos, relativas ao estabelecimento do terreiro público, passaram-se na referida Câmara muitas coisas antes de se proceder à nomeação do juiz, que todavia no dia 2 de Maio foi eleito em assembleia pública; e assistindo a nobreza e mais pessoas da governança da cidade, recaíram os votos em Félix António Salazar de Brito, por ser homem de consciência e nesta mesma ocasião se elegeu o respectivo escrivão. Liquidou-se o trigo no dia 9 de Setembro a 350 réis o alqueire.

A 12 de Novembro tomou posse de provedor dos resíduos e capelas o dr. José Joaquim Dantas Bacelar Barbosa, cuja posse lhe deu o actual, provedor — Gameiro — que se achava nesse dia ampliando o corpo da Câmara — e se houve por demitido: achando-se também presente nesta vereação o juiz de fora. — Tal era a solenidade praticada em semelhantes actos, de que temos feito menção, seguindo-se em tudo o antigo formulário sobre este objecto.

Passou o general ordens as mais restritas, para que não divagassem pela cidade porcos e animais imundos, que a infeccionavam, dizendo — que isto era abuso vergonhoso de tolerar-se em uma colónia tão civilizada como esta, em uma cidade da terceira ordem do reino de Portugal — (acórdão de 17 de Dezembro).

Para se executar esta prudente medida passaram-se editais, proibindo a tal divagação de animais imundos, desde o primeiro dia de Quaresma em diante; entregando este negócio ao cuidado do zelador, que nesse tempo se denominava — rendeiro do ver e peso —: e não ficamos em dúvida do quanto bem seria vigiada a cidade, entregue a este solicito Argos, cuja história merecia andar escrita em páginas douradas, pelo muito que rendiam à Câmara (e o mesmo sucedia nos outros concelhos da ilha e ilhas) o seu bem reconhecido zelo e cuidado, a par da facilidade que ante os almotacés havia, e nas mesmas Câmaras , em lhes aceitar a este e a outros acusadores, quantas coimas e denúncias lhes convinha à sua avidez insaciável! Ainda hoje, ao pronunciarmos estas palavras, estremecemos de medo e dó!

E que melhor nos podemos explicar, quando sabemos e o presenciamos por muitos anos — que estas rendas, assim consignadas à vontade dos zeladores e rendeiros, nas mãos dos povos, faziam parte de seus salários, e em algumas Câmaras, as arrematavam à carga cerrada por bagatelas, ficando eles rendeiros com avultadas somas, com que não só sustentavam suas numerosas famílias, senão ainda se entregavam à devassidão e a uma vergonhosa crápula, à custa — diziam eles — da barba longa? Muitos em todos os concelhos desta ilha conhecemos no decurso de nossa já provecta idade, que expiraram no meio da maior penúria e indigência, sobrecarregados de pragas e da execração pública, por estes feitos; mas o defeito não procedia só deles: castiguemo-los com ocultar seus nomes aos vindouros: talvez que seja uma bem entendida caridade! Instituição na verdade era essa desarrazoada e gótica, que assim como a da casa dos 24 misteres, com razão desapareceu dos nossos códigos constitucionais. Não houve um só dos muitos que até hoje se publicaram, que a não degradasse e anatematizasse, como um detestável invento próprio a nutrir vinganças, e a sustentar a ociosidade dos delinquentes acusadores: o que seja dito — in anathema oblivionis.

Ano de 1808

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Parece que houveram notícias certas de que o príncipe regente com toda a família real se transportara com efeito aos estados do Brasil; porque no acórdão da Câmara da cidade, a 16 de Janeiro, se assentou suplicar ao bispo da diocese mandasse proceder a preces — para que Deus felicitasse os soberanos naquela viagem, pondo-os a salvamento no país; livres dos inimigos comuns. —

O tombo dos bens do concelho dava muito que entender em Angra; na vereação de 9 de Março requereu o procurador que achando-se medidas as propriedades foreiras e os terrenos baldios, após vistoria a que ele assistira, entregara, havia bastante tempo, ao escrivão o mapa e mais trabalhos para a confecção do respectivo livro, e nada mais se fizera até ali; e que por ser um trabalho extraordinário que exigia confrontação de títulos, e letras antigas de difícil interpretação, era mister se nomeasse um intérprete ou paleógrafo, que neste negócio pudesse coadjuvar o escrivão. A isto deferiu a Câmara nomeando João Pedro Coelho Machado Fagundes de Melo, que na vereação de 26 compareceu, — para se fazer tombo na forma da lei de 23 de Julho de 1766 § 4, pois se lhe dera já princípio, e se não ultimara por algumas justas causas; e com a vinda da nova pauta, e novos oficiais da mesma Câmara, julgamos que então se pôs fim algum tempo depois a este decantado monumento, porque se acha escrito (e deve ser este o tomo) um livro com abreviados apontamentos das propriedades e títulos por que eram possuídas, pelo escrivão interino Vicente Pereira de Matos; mas assim este como o da Câmara da Praia que foi concluído pelo mesmo modelo, não foram ampliados competentemente, e de pouco servem, já hoje.

Em 2 de Julho fez-se um ajuntamento dos três estados do povo, com o fim de reformarem as posturas, que sobrecarregavam a classe artista e os estabelecimentos públicos em demasia; nesta vereação assistiu o juiz de fora. E liquidou-se o trigo a 390 réis o alqueire. Uma das posturas que se pretendiam revogar, e sobre que haviam muitos requerimentos, era aquela que proibia a divagação de animais imundos pela cidade, com o escândalo de que acima fizemos menção; e todavia foi relaxada, com o fundamento de que assim tinha a Câmara mais proveito, mas não diziam em que.

Transportaram-se destas ilhas para o Rio de Janeiro trinta casais com fretes pagos, à ordem do príncipe regente.

Oficiou o general às Câmaras em 21 de Abril, enviando-lhes a cópia do alvará datado no 1.º do dito mês, pelo qual se concedia a criação de fábricas e manufacturas nos domínios ultramarinos; e assim também outro alvará para se criar no Rio de Janeiro um tribunal em que se decidissem os negócios da competência das mesas do desembargo do paço e da consciência, e do conselho ultramarino; tudo por aviso de 28 de Maio.

No 1.º de Maio deste ano de 1808, que foi domingo, a horas do meio dia, começou a tremer toda a ilha de S. Jorge com bastante violência, e além do Norte Grande, freguesia de Santo António, rebentou o fogo com estrépito horrendo, levantando ao ar pedras de enorme grandeza .

Correu lava ardente por mais de três moios de campo, que deixou revirado e feito um vivo rochedo onde era mar; sepultou a igreja e povoação da Urzelina pela maior parte, com mortandade de muita gente. Saíram então os povos da ilha com procissões de preces e orações a Deus, levando também a coroa do Divino Espírito Santo; e contou-se por milagre visível, que uma pequena casa com seu reduto, onde estava o vinho do bodo que ali se costumava dar em dia de Pentecostes, ficara ilesa, correndo a lava ao redor, e saltando além da ribeira que lhe estava próxima; e que um religioso franciscano presbítero, por apelido — o Malagueta — homem de vida ajustada, fora com o guardião e mais padres seculares e do seu convento levando a coroa do império da vila das Velas, e com tamanha fé o praticaram lançando ao mesmo tempo as varas no chão, onde vinha lentamente chegando o fogo, que logo foi visto recuar, indo precipitar-se no mar vizinho: — sed fides pene auctores.

Este fenómeno foi visto e sentido na ilha Terceira, na qual ocasionou graves incómodos, por causa da cinza que por muitos dias nela caiu; e se achava a cada passo, e empancada sobre as plantas dos jardins e dos campos mais remotos, assim como sobre as hortaliças que serviam ao uso das famílias, as quais endureciam com esta espécie de salitre, porém de um cheiro mui desagradável. Todavia não causou alforra nos trigos, por não estarem ainda espigados, o que talvez acontecera se o estivessem.

Ainda que a colheita dos cereais não foi escassa no presente ano liquidou-se o trigo, no dia 9 de Setembro, a 28$800 réis por moio: e por muito maior preço se vendeu nos mercados públicos.

Ia-se também propagando na ilha a inoculação da vacina; porém, ocorrendo outras moléstias ao tempo em que os meninos eram vacinados, houve neles uma grande mortandade; o que fez espalhar a fama de que esse remédio se convertia em veneno, e apareceram então muitas queixas ao general, pedindo-lhe algumas pessoas o serem isentas de apresentarem seus filhos; o que melhor se lê em um requerimento registado na Câmara da Praia, sobre cuja pretensão houve este despacho: “O juiz por bem da lei da vila da Praia, ficando na inteligência de que aos suplicantes repreendi severamente pelo atentado de atribuírem à inoculação da vacina efeitos que nunca dela podem proceder; mas sim de outras causas diversíssimas, que nem remotamente procedem da dita inoculação, beneficentíssima a utilidade da qual se acha reconhecida, e propagando-se com muito desvelo por todas as nações cultas: dê com tudo as providências para que os inoculados recebam em tudo o bom tratamento na Santa Casa da Misericórdia da sobredita vila, e faça nela, e na Câmara registar esta petição, e despacho, remetendo-a depois com verbas do registo para a secretaria do governo. Outrossim contribuam todas as pessoas encarregadas de propagarem a dita inoculação, e do tratamento dos inoculados, para que no povo se não espalhem opiniões erradas, e nocivas ao bem comum, e que mais é, impedientes das paternais providências do príncipe regente nosso senhor, dadas para que a dita inoculação nunca cesse. Angra, 31 de Maio de 1808.”

Mas não obstante este cuidado e recomendação tão positiva, perdeu-se a vacina que tanto utilizara na ilha do Faial, e que o general ainda lembrou à Misericórdia de Angra em portaria de 7 de Agosto de 1809.

Participou às câmaras em 11 de Setembro do ano em vamos de 1808 — que a divina providência se dignara quebrar os grilhões de seus servos; e dar-lhes fortaleza e constância para debelarem, como fizeram, as tropas francesas, que lhes tinham injustamente lançado — que assim lho fizera saber o governador da ilha de S. Miguel, informando-o por carta de 6 daquele mês; e que o mesmo lhe noticiara a 10, pelas 11 horas da noite, o comandante da fragata de guerra inglesa — Eurydice — certificando-o de que no dia 30 do mês próximo pretérito, foram expulsos os franceses de toda a extensão do reino de Portugal e Algarves, consumando a restauração gloriosa e independência destes reinas para o príncipe regente, ajudando as tropas e esquadra inglesa esta empresa memorável; — e que nestas faustíssimas circunstâncias era da obrigação dos terceirenses darem graças ao Omnipotente por tão grande benefício.

E porque eram necessárias providências para que os negócios administrativos destas ilhas corressem com regularidade, recomendou que todas as sentenças e mais papéis que de Lisboa viessem chegando em nome do imperador dos franceses, ou por conhecido influxo de seus generais, ou alterados além das pias intenções do regente, não fossem a tendidas no foro; que se contivessem as sentenças expedidas em conformidade dos formulários, e praxes que sempre estiveram em uso nestes reinos; que as apelações civis podiam ser levadas, ou para Lisboa, ou para o Rio de Janeiro; que os despachos de graça, que eram do ordinário expediente do desembargo do paço, consciência e ordens e de outros tribunais de Lisboa se cumprissem, como se cumpriam, até o dia 8 de Novembro próximo pretérito. Porquanto desde o ano de 1534, em que na nova cidade de Angra fora elevada a Sé catedral a igreja matriz do Santíssimo Salvador , não constava por monumento algum, nem ainda por tradição, que dia fosse sagrada sendo tantos os bispos que precederam, e não poucos revestidos do verdadeiro zelo apostólico; resolveu-se o actual bispo D. José Pegado de Azevedo a efectuar este soleníssimo acto religioso; e de facto no dia 16 de Outubro do ano que tratamos, procedeu à sagração da mesma igreja catedral, em presença de muito povo que havia concorrido a ela, e das dignidades, capitulares e mais clerezia; praticando neste acto todas as cerimónias do ritual romano, e tudo o mais que se lê no termo exarado a fl. 34 do L.º do registo do cabido, e que levamos sob as letras — Documento BBB —: declarando-se por ele o futuro aniversário desta dedicação, e as indulgências concedidas aos fiéis, que à santa Sé concorressem em tal dia.

O leitor combinará, lendo a sagração da matriz da vila da Praia pelo bispo D. Duarte no ano de 1517, e ainda mesmo o auto exarado a 6 de Março de 1666, quando se lançava a primeira pedra nos alicerces da igreja de S. Francisco da referida cidade, qual a diferença do aparato com que se fizeram estas solenidades: e talvez não se limitará a sua curiosidade, a esta só observação; concluindo do laconismo com que foi redigido o termo desta última sagração, ser ou não ser compatível com as luzes do século, o mais que nos mencionados dois autos se incluiu, para infundir por ventura um maior respeito no acto, e aumentar a crença religiosa. De tudo isto, com a devida veneração e respeito, lhe deixamos a escolha, e o livre arbítrio.

Ano de 1809

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De tempos mui antigos servia de mordomo do hospital dos lázaros na vila da Praia, (que o de Angra havia desaparecido muito antes) um cidadão abastado e zeloso, que o provedor dos resíduos nomeava, e lhe tomava contas da sua gerência. Porém achando-se já decaído este costume, por se não oferecerem pessoas a este fim, e o juiz não proceder como devia à nomeação; ajuntaram-se vinte cidadãos dos mais distintos e qualificados da vila, seculares e eclesiásticos, e dirigindo ao provedor José Joaquim Dantas Bacelar um requerimento, ofereceram-se nele a servir gratuitamente, cada um seu ano, aquele cargo de mordomo do hospital; o que lhe foi deferido, louvando o provedor ao mesmo tempo o bom zelo e devoção daqueles cidadãos beneméritos. Acha-se hoje este piedoso estabelecimento administrado pela junta de paróquia, e nas respectivas casas ao saínte da vila habitam os enfermos.

Nunca os seus rendimentos excederam de sete moios de trigo, e pequenos foros a dinheiro; sobre a sua fundação e regulamento pode ver-se o que deixamos escrito no primeiro volume desta obra, ano de 1565. Por este mesmo tempo deixou de servir o cargo de provedor dos resíduos o dito Bacelar, e cuido que por suspensão, passando a servir cumulativamente, como por muitas vezes acontecera, o corregedor actual Francisco Manuel Pais de Sande e Castro. Muito mal se houvera o Bacelar procedendo com ambição (seria defeito do emprego, notado já em alguns dos seus antecessores), contra os administradores dos bens das igrejas, morgados e capelas, cometendo violências e escândalos. Parece que foi tido e reputado quase um perseguidor, que de antemão preparava a justa aniquilação daquele tribunal odiado e aborrecido. Deram-se também contra este magistrado diferentes contas, e proveram-se alguns agravos: e não era ele o único a quem se imputavam as culpas, o escrivão e o fiscal, achavam-se de perfeita combinação ao desejado fim do costumado — Fiat justitia — com que se atavam ali e desatavam os intricados labirintos do nó górdio!

Julgamos que neste magistrado se extinguiu o cargo, ao menos não achamos registo algum de outro. Que tanto se enganou o primeiro capitão general D. Antão de Almada, em pedir fosse esta uma vara independente, e mais um membro para a junta criminal ; sem prever que ele poderia ter ocasião de julgar de si próprio, e de castigar esses actos com que a opinião pública o condenava, e aos seus empregados quase todos!

Aconteceu neste ano aquele estrondoso caso do egresso e rapto de cinco religiosas do convento da Glória na ilha do Faial, por sugestões de certos ingleses que em navios mercantes foram àquele porto; levando quatro delas a seu bordo, e deixando uma, que por ter quebrado uma perna, dizem, fora achada em estado deplorável, e por caridade acompanhada mesmo alta noite, assim pelo comandante militar da ilha, como pelos confessores do próprio convento, onde ficou reclusa na cela enquanto viveu. Porém as outras infelizes levadas a diversos portos lá foram deixadas nos braços do desamparo, e vítimas da última miséria. Pelas devassas a que logo se procedeu, entendeu-se que haviam cúmplices, mas assim estes como os raptores, não deixaram de encontrar protecção nos países que adoptaram como pátria, em que vivessem subtraídos ao justo castigo que mereceram.

Pôs-se em prática nestas ilhas o alvará de 27 de Junho do ano próximo pretérito de 1808, pelo qual se estabeleceu a décima dos prédios rústicos e urbanos: e sem embargo de ter sido abolido no ano de 1804 o uso do papel selado, em atenção ao gravame que sofriam os povos neste imposto, que era de 20 réis por folha; neste mesmo ano se tornou a estabelecer, de Setembro em diante, com selo de 80 réis; achamos contudo, em documentos desse tempo, que já em Janeiro de 1810 dele se não fazia uso, e apareceu no ano de 1811 outro papel com a marca ou selo de 20 réis por meia folha, o que não durou senão alguns meses: houve então um largo espaço de anos em que apesar das urgências do estado se desobrigaram os povos de semelhante tributo, que já hoje, pela sua larga duração, nos parece difícil de se extinguir. Acabamos este artigo sem vontade de nos demorarmos mais sobre um tal assunto que nos levaria muito tempo, e pode ser, incomodas reflexões.

Soube a Câmara da cidade por ofício do general em 11 de Maio, que o príncipe regente lhe escrevera a 6 de Janeiro comunicando-lhe a feliz restauração de seus domínios, livres da tirânica ocupação que deles fizeram as tropas francesas na Europa; exigindo se festejasse tão fausto acontecimento com a conveniente pompa, e não obstante haver o mesmo general já comunicado aquela notícia, ordenava novamente se dessem as necessárias acções de graças. Sobre isto mesmo escreveu ao bispo, o qual mandou cantar, com a maior grandeza, um solene Te Deum na sé catedral, pelas 11 horas do dia 13, aniversário natalício do príncipe, o que se efectuou com suma alegria por tão plausível acontecimento. O mesmo acto se praticou nas duas vilas, conforme o edital do corregedor, contendo a cópia da provisão real datada a 27 de Junho, com a cópia do decreto pelo qual se fazia público — haver o imperador dos franceses invadido os estados de Portugal de uma maneira a mais aleivosa, e contra os tratados subsistentes entre as duas coroas, principiando assim, sem a maior provocação, as suas hostilidades e declaração de guerra contra a coroa portuguesa, declarando que por mar e por terra se lhes fazem hostilidades, — Documento CC — Continuaram a receber-se notícias satisfatórias a este respeito; e finalmente em 27 de Junho, tornou o general a participar às Câmaras e ao bispo, a vontade que tinha de se darem mais acções de graças no dia 2 de Julho, em razão das vitórias que ultimamente obtiveram os exércitos aliados contra os franceses ; e o muito que lhe aprazia celebrarem-se os festejos públicos, que vários cidadãos, e nobres da cidade ofereciam apresentar na praça pública, em demonstração de tamanha vitória. Figurava de principal o generoso fidalgo D. Ignácio de Castil. Houveram com efeito as festas da praça com diversas danças e cavalhadas, corridas de touros, e outros mais divertimentos, na forma do antigo compromisso desta cidade: de modo que jamais se conta haver concorrido tanta gente, e com tanta satisfação e gosto como nesta ocasião concorreram até os vizinhos das mais ilhas.

Não foram menos concorridas as demonstrações religiosas em acção de graças, que na Sé, colegiadas, e mosteiros de um e outro sexo se fizeram nesta ocasião. O governo recebeu ultimamente, por intervenção do general, todos os sinais de respeito e adesão dos povos, e das pessoas de maior conceito e letras deste arquipélago, especialmente da sua capital a Terceira, que enquanto, pela forma dita, fazia nos templos do Deus vivo ressoar hinos do louvor e gratidão; por entre vivas e aclamações, arcos triunfais, e nuvens de flores, na praça pública da cidade entoava ao príncipe regente este expressivo soneto:

Soneto
Não emparelha com João Trajano
O seu nome os maiores nomes cobre:
Púrpura não honrou Alma tão nobre,
Nem melhor coração o corpo humano:

Pai de vossos vassalos, não sob’rano,
Vós vedes de igual olho o rico, e o pobre:
Ninguém que a vossos pés se incline, e dobre,
Deixa de levantar-se alegre, e ufano

Produza a fama desses reis a lista,
Que no escuro do tempo se não somem
Pelo triste esplendor d’uma conquista

Ombreareis com quantos reis se assomem,
E se alguma diferença ali for vista
É porque sendo rei pareceis homem.

(Do mesmo dr. João Cabral de Melo)

Não obstante as satisfatórias notícias do estado das coisas na Europa, onde os exércitos aliados haviam triunfado das armas francesas em diferentes combates, em consequência do que se haviam feito em Angra acções de graças, e festas profanas com aparato extraordinário e esplendor majestoso; não deixava a igreja de sentir e chorar os incómodos do seu chefe, e cabeça visível o papa Pio VII; e Portugal a ausência do príncipe regente, e da sua augusta família; e por isso o bispo desta diocese dirigiu aos seus súbditos e a todos os diocesanos aquela sua eloquente pastoral (datada em Angra a 5 de Agosto, da qual oferecemos a cópia sob as letras — Documento DDD —.

Propôs o juiz de fora da Praia, João Manuel da Câmara Berquó, ao general a extinção do alguns escrivães do seu auditório, pelo grande número que deles havia; eram então sete; mas ele respondeu-lhe que se não achava autorizado pata tanto, e só podia anexar alguns ofícios, para serem servidos por uma só pessoa, em conformidade do decreto de 29 de Fevereiro de 1668: todavia, em resultado das informações do corregedor sobre este objecto, fixou-lhe o número, e dos mais empregados de justiça, ficando subsistindo três escrivães do judicial e notas, e almotaçaria, um dos órfãos, um da Câmara e o das armas; um alcaide, um porteiro, e um carcereiro sob proposta da Câmara: assim como um curador geral, e todos eles, excepto o último, por concurso. A mesma reforma se passou na cidade e vila de S. Sebastião, que também se achavam sobrecarregadas de muitos destes empregados, e com fracos meios de subsistência.

Tão grande era o estrago que nos currais de gado de toda a espécie, principalmente no ovelhum, faziam os cães daninhos e sorrateiros, que o general deu ao corregedor intendente da polícia, as mais terminantes ordens para serem mortos; e os de fila não andarem sem açaimo, por ser geralmente proibido, da mesma forma que o fora em tempo do seu predecessor Diniz Gregório de Melo. A este fim se passou edital em 5 de Setembro, em que se explicava o corregedor — que não fora bastante aquela proibição para que muitos cidadãos preferindo seu bem ao do público se abstivessem de os criar — animais por uma parte tão desnecessários, e por outra tão nocivos, pois não havendo na ilha feras, como nos outros países, se faziam desnecessários aos criadores de gados os cães ferozes para a sua guarda: assim como eram inúteis quaisquer outros de que podia haver receios.— Pelo que tratou-se da tremenda execução, por haverem sobre este objecto muitos requerimentos e queixas: impôs-se a pena de 1$000 réis, metade para os expostos e a outra para o matador; e no espaço de 15 dias não se viam mais do que medas de cadáveres destes animais pelos arrabaldes e praias do mar das vilas e cidade: era uma compaixão observar o como os rendeiros do ver, chamando-se à autoria, pareciam querer acabar com todas as raças, que na ilha haviam: uns por justa causa, outros pelo interesse que se lhes podia seguir de se não matarem estes ou aqueles cães, de pessoas conhecidas, amigos e parentes, que lhes podiam untar as mãos para escorregar o laço...

Obteve José Joaquim Lobato, (um dos validos do príncipe regente e seu agraciado com a rica capela de Vasco Coelho Lourenço, no Cabo da Praia , e outras mercês assaz rendosas) por alvará de 10 de Outubro se lhe pagassem as suas ordinárias pelos concelhos do reino e ilhas adjacentes, como escrivão da Câmara Real, e secretario da mesa do desembargo do paço; com observância do alvará de 4 de Fevereiro de 1757, § 13; e por isto o corregedor deprecou as câmaras da comarca exigindo a sua pronta execução.

Por se achar ausente no Brasil o príncipe regente D. João, haviam os governadores do reino concedido indulto, por decreto de 7 de Outubro de 1807, aos réus que se achassem presos por crimes não exceptuados no citado decreto, nas cadeias dos distritos das relações de Lisboa e Porto; requerendo então os presos da ilha de S. Jorge, o corregedor os mandou soltar. Não sucedeu assim na ilha do Faial; e constando ao general este procedimento injurioso, que poderia ter seguimentos desastrosos, oficiou aos juízes de Angra e da Praia, fazendo-lhes saber a verdadeira inteligência do mencionado decreto, em execução das leis do reino, usadas em semelhantes casos, e instruções deixadas pelo mesmo príncipe em 26 de Novembro de 1807 aos governadores, recomendando-lhes expressamente — a boa e pronta administração da justiça; e que conservassem em rigorosa observância as leis da monarquia; que as consultas dos tribunais se resolvessem sempre pelas leis e costumes do reino; e se distribuíssem os prémios e castigos segundo os merecimentos de cada um —; e que assim por tais se não podiam reputar aqueles actos de clemência, que todavia importavam sempre alguma providência extraordinária, que sem especial mercê régia se não entendia nunca concedida —; e que, a não ser assim, executavam os governadores poderes majestáticos da primeira ordem; — e, finalmente, que nulo parecia ter sido na sua origem, e o devia ser nos seus efeitos o sobredito decreto; pelo que se observasse nestas ilhas o decreto de 10 de Maio de 1808, instruções, nas quais mesmo se não podia entender o perdão concedido às relações do reino, que eram diferentes (aviso da secretaria geral, em 13 de Julho).

Já em outra parte havemos dito, que o ofício de escrivão da Câmara da cidade de Angra andava de propriedade, arrendado a serventuários que mal cumpriam suas obrigações; e dele só pareciam querer tirar os seus interesses; e achámos que à vereação de 22 de Novembro do ano em que vamos, fora chamado Alexandre Sebastião Borges, para dizer se queria servir este ofício ou nomear sujeito conveniente, sem prejuízo da agraciada, D. Maria Luís da Costa Falcão, por óbito e José Pedro da Costa Fagundes, e por alvará de 21 de Agosto de 1792; mas o convocado, dito Alexandre Sebastião, ou por incapacidade ou por andar na Corte do Rio de Janeiro, entretido com certos requerimentos, talvez para nova e bem merecida graça , não compareceu, ficando então nomeado Tomás José Fróis, escrivão da correição, que nesse tempo julgaram com suficiente capacidade para servir aquele mui importante ofício.

Ano de 1810

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Determinou o bispo lhe fossem enviados para a ilha de S. Miguel, onde se achava de visita, os livros e papéis constantes do — Documento EEE — que todos se achavam no arquivo do cabido. Por esta forma continuou este prelado a defraudar o importante cartório que, segundo os inventários que nele se encontram, já está bastante prejudicado, faltando nele muitos alvarás, provisões e monumentos que no ano de 1636 se inventariaram.

Porque pelo porto da vila da Praia se evadiam sem passaporte e muitas pessoas, levando cargas e efeitos sem licença, passou o general uma ordem, a 18 de Maio, recomendando que para se evitarem estes factos escandalosos e contrários à boa ordem e polícia, e ao mesmo passo lesivos à real fazenda, todos os barcos e mais embarcações fossem despachar à cidade, para depois dela seguirem viagem em direitura aos portos onde se destinassem; e para execução de tudo isto deu as instruções aos oficiais da alfândega, cabos de guerra, justiça e oficiais da fazenda.

Igual disposição fez extensiva a todos os distritos, quanto às pessoas que neles desembarcassem de bordo de quaisquer navios, trazendo alguns efeitos ou não: mandando-as igualmente presas, até que o chefe da polícia autuasse e procedesse nos termos da lei. Deu causa a este procedimento o abuso praticado no lugar do Porto Judeu, onde o capitão de ordenanças se dizia autorizado pelo capitão-mor José Teodósio de Bettencourt, que assim consentia em muitos contrabandos; mas cuidando-se de investigar a verdade não existia semelhante autorização; era abuso.

Escreveu outrossim o general ao Secretário de Estado, solicitando as necessárias declarações a respeito da sujeição em que se deviam considerar as ilhas dos Açores aos tribunais de Portugal por não ter ainda recebido instruções algumas a este respeito. E com efeito, pouco tempo depois, recebeu o aviso de 12 de Julho, significando-lhe que nenhuma alteração se dera ultimamente às disposições mencionadas no mesmo aviso, que ele solicitara, relativas aos recursos do foro, que foram diferentemente reguladas pelos alvarás de 6 de Maio daquele mesmo ano de 1810; — e que portanto, à excepção dos negócios forenses, que deviam finalmente ser desembargados na casa da suplicação de Lisboa, todos os mais pertenciam aos novos tribunais do Rio de Janeiro.

Em 5 de Junho, estando a Câmara da cidade em sessão com assistência do corregedor — Sande — se houve o juiz de fora, Gonçalo Magalhães Teixeira Pinto, por demitido do cargo, conferindo a posse ao novo juiz António da Silva Teles, que ali apresentou o seu diploma.

Representou o general a necessidade de se criar uma junta criminal; em consequência do que se expediu o aviso de 18 de Novembro, participando-lhe esta deliberação tomada a 15; e para que os povos soubessem melhor onde deviam dirigir os seus requerimentos, comunicou-se ao corregedor esta mesma deliberação — Documento FFF —-.

Pouco depois chegou o alvará nomeando presidente da junta o capitão-general, e na sua falta o bispo, e por seu impedimento o governador das armas. Vinham nele nomeados adjuntos os bacharéis que na ilha houvessem, em lugares de letras; e na sua falta os das ilhas mais próximas.

Houve notícia certa de que estava despachado novo capitão general Aires Pinto de Sousa, porquanto a Câmara da cidade em sessão de 7 de Setembro, com o juiz de fora, trataram da sua recepção e posse, que foi no dia 9. E achamos com efeito que a 15 de Dezembro se exarou um acórdão nos termos seguintes: “Nesta vereação se apresentou um requerimento da nobreza, clero e povo desta cidade, que pede a este senado represente a S. A. R. o seu agradecimento, e reconhecimento da alta mercê que lhe fez, em mandar-lhe por governador e capitão-general o ilustríssimo e excelentíssimo Sr. Aires Pinto de Sousa, e pedir-lhe a conservação do mesmo ilustríssimo e excelentíssimo general no governo destas ilhas, pois nele confiam ter um protector forte nas calamidades presentes. O qual requerimento mandaram que se registasse; e que procederiam à representação Sendo o mesmo original requerimento conservado no arquivo desta Câmara”. Era este acórdão assinado pelo juiz de fora — Teles — e vereadores — Bettencourt, Teixeira e Coelho de Melo.

Por este mesmo tempo apresentou Luiz José Coelho, administrador das imposições, as suas contas, com saldo de réis 845$995 em favor do concelho.

Deixou com efeito o governo-geral destas ilhas D. Miguel António de Melo, que depois foi conde da Murça, de cujos actos havemos tratado largamente; mas para darmos ao leitor uma mais ampla ideia do que ele foi no governo transcreveremos aqui, tudo quanto a seu respeito deixou o padre Jerónimo Emiliano de Andrade nos seus — Apontamentos Póstumos: — “Foi D. Miguel António de Melo cultivado pelos estudos, enriquecido de uma memória prodigiosa, dotado de um espírito demasiadamente vivo, volúvel, e de um génio algumas vezes forte e impetuoso, fez-se estranho em seu governo aos angrenses, costumados à brandura, e pacificação de seus antecessores. Contudo apesar do o génio forte e impetuoso de governador, mostrado nalgumas ocasiões de enfado, nunca foi cruel, antes mui popular, e social. Ainda novo gostava da música, e dos prazeres. Promoveu algumas festas solenes na igreja das religiosas de S. Gonçalo, aonde havia as melhores cantoras da ilha, e em seu palácio se tratou com muita grandeza e profusão. Completo o seu governo ainda se demorou na ilha alguns anos, como particular, depois da vinda do sucessor, até se acabar a guerra da invasão dos franceses em Portugal”. Infelizmente esquecido de que o homem não deve viver onde não é o que já foi, como preceituava o experimentado Cícero; naquele estado de uma vida privada decaiu muito de seu crédito e estima, sofrendo alguns desgostos; pois bastará dizer que o seu sucessor nenhum caso dele fez.

Suscitou-se uma renhida pendência entre o cabido, e o vigário geral Frutuoso José Ribeiro, governador eclesiástico desta ilha na ausência do bispo; porquanto, sendo este requerido da parte do capitão general e presidente da junta da fazenda, para decidir se estava legalmente erecto o altar existente na capela e casas da mesma junta, em tempo da sé vaga, com a invocação de Nossa Senhora da Guia; e se nele se podia licitamente celebrar missa; repugnou o cabido satisfazer à exigência, subtraindo-se à obediência do bispo e do seu delegado, que não queriam reconhecer por tal, quando muito bem sabia o deão que o bispo fora requerido para resolver uma dúvida em que se dava o perigo de errar. E sabendo o mesmo cabido que o vigário geral ficara por ausência do bispo no governo eclesiástico espiritual, apesar de o ter reconhecido, queria sustentar que para cada um dos negócios de que fora encarregado era necessário apresentar a comissão especial para isso dada.

Este procedimento inesperado obrigou o bispo a escrever ao cabido em 29 de Julho, certificando-o de que a sua intenção fora mui diversa, do que talvez poderia considerar-se; e de que o governador eclesiástico se achava legitimamente autorizado, e não excedera a comissão encarregada; e obrigando-o por fim a que desse resposta e informação exacta sobre o negócio, diz assim: “Muito nos magoa que apenas nos separamos da sua companhia (do cabido) e que não estando ainda enxutas as lágrimas que derramámos, quando o nosso ministério, e a necessidade nos arrancou dessa nossa residência; principiasse logo uma disputa, e uma altercação tão desagradável, que poderia ter consequências muito graves, e que não é senão o fruto da discórdia, e da pouca união. Talvez procedesse isto especialmente dos nossos maus exemplos; mas decerto afirmámos a V. S. que nada mais temos procurado manter entre todos, e muito especialmente entre os membros do nosso reverendo cabido do que a paz, a caridade, e a boa harmonia. Se ao menos fossem ocultos, e por isso desconhecidos os motivos que obrigaram a fazer pelo sobredito reverendo nosso governador os mencionados ofícios, segundo a comissão especial que para isso lhe demos, ainda poderia esta questão relevar-se; mas não sendo ocultos, antes pelo contrário, quando não públicos e notórios, ao menos participados e comunicados a alguém: confessamos ingenuamente, que não podemos atinar, qual é a causa, que deu origem a rixa tão odiosa”.

Todavia ainda que por ora se conseguiu a tranquilidade entre o cabido e o vigário geral, não tardou a desenvolver-se uma maior tempestade entro o deão presidente do cabido, e o dito vigário geral; do que se resultaram maiores e mais prejudiciais efeitos, como em tempo mostraremos.

Em 11 de Setembro oficiou o novo capitão-general Aires Pinto de Sousa ao corregedor Francisco Manuel Pais de Sande, para que lhe enviasse uma relação de todos os presos que se achavam nas cadeias do distrito, e que lhe transmitisse um mapa igual de 6 em 6 meses. Disse-se-lhe também, que, em observância da provisão de 15 de Maio de 1574, se não escolhessem para os postos de capitão-mor, e mais oficiais subalternos, sujeitos empregados nos ofícios da justiça; e que nas eleições somente fossem admitidos não havendo outras pessoas que servissem; e que o mesmo se entendesse e iniciasse quando subissem as propostas de semelhantes oficiais.

No dia 26 de Setembro fundeou no porto da cidade a fragata — Amazona — trazendo a seu bordo muitas pessoas que de Portugal vinham degradadas para estas ilhas, por motivos políticos em que fora vítima, e por isso intitulado — mártir da pátria —, Gomes Freire de Andrade. — Encontramos na secretaria-geral a cópia do ofício enviado a Mateus Pereira de Campos, chefe de esquadra da armada real e comandante da dita fragata, nos termos que dele se depreendem, — Documento GG. —.

Para resolver se deviam ser recebidos ou não estes presos de estado, alegava o general a falta de segurança das cadeias e mais prisões, ou para melhor dizermos, por não querer recebê-los, em razão de certas indisposições que tinha com alguns deles, convocou um conselho de ministros territoriais; e, apesar dos bons desejos que mostrou para inutilizar a maior parte dos votos, não conseguiu o seu fim; mas representou ao governo sobre os poucos cómodos das ilhas, e dos conventos para onde vinham remetidos os regulares: — que estes homens, dizia, são uma peste, são uma lepra, que assim reputava a nossa legislação tais criminosos!

Nesta mesma linguagem escreveu ao bispo com o intuito de o captar, expondo-lhe o embaraço em que estava, e dizendo-lhe que para os presos já desembarcados não achava a necessária segurança nestas ilhas dentro nas cadeias, conventos e aljubes: e quando ele voltava da ilha de S. Miguel afirmava-lhe: “Achará V. Ex.ª povoado o castelo, convento, aljube, e cadeia de portugueses desgraçados, e suspeitos: — “recebi os miseráveis nacionais, poupei-me a receber os estrangeiros vassalos de potências inimigas, porque entendi devera prevenir o dano...”.

Até chegou este general ao excesso de meter o bispo em desconfiança de poderem ser sustentados aqui estes presos, por causa da escassez da colheita do ano, e falta de gados para o consumo alimentício; tal era a paixão que lhe não deixava conhecer, que para sustento de tão poucos homens punha em dúvida a produção de um país, sempre tão abundante, que já sustentara milhares de pessoas, por mui limitada e escassa que fosse a colheita; quanto mais que o ano, suposto ser mesquinho de frutos, não era de penúria. Contavam-se entre os presos, como de maior importância, os regulares D. André, cónego regrante, D. Francisco da Soledade, o van Zeller, pregador régio, o dr. Ferrão, Portelli, o diácono Manuel Ferreira Gordo, o dr. Simas, o desembargador Vicente Ferreira Cardoso, o Maldonado, o prior da igreja dos Anjos, e o cirurgião Avelar.

Não pudemos alcançar relação exacta dos outros presos, que alguns deles foram deportados para as ilhas de oeste; e nelas se conservaram até voltarem à pátria; não se podendo negar que alguns destes presos foram mui úteis nos conhecimentos literários de que eram dotados; ainda que outros não calaram seus vícios e fraquezas, com que contaminaram a sociedade: sendo notados, especialmente pelas ideias democráticas, que apesar de serem a causa de seus trabalhos, emitiam engenhosa e habilmente, quando se lhes proporcionava ocasião. Justo me parece mencionar aqui o bom conceito que sempre mereceram o van Zeller e D. Francisco da Soledade, ensinando as artes de sua profissão, e anunciando nos púlpitos as verdades evangélicas , enquanto os doutores Lopes e Simas e o desembargador Vicente se não davam menos a conhecer nos tribunais da justiça pelos seus talentos, e saber no direito pátrio.

Neste e nos anos imediatos tiveram lugar no convento de Nossa Senhora da Guia, na forma do sempre louvável antigo costume, as conclusões e exercícios dos franciscanos, em que alguns destes deportados ali foram argumentar, tornando aqueles actos mais aparatosos, e ensinando um mais grave método no sustentar o dom da palestra; também por isso mesmo houve muito maior concurso da cidade a estes actos, que em todos os tempos formaram cá na ilha o gosto dos homens ilustrados.

Tinham lugar alguns anos estes exercícios parlamentares pelas novenas de Nossa Senhora da Conceição: e indo a eles argumentar o padre Joaquim José da Cruz, beneficiado na vila de S. Sebastião, ao sair para a sacristia caiu de um ataque apopléctico, de que poucas horas depois faleceu em 21 de Dezembro. Era natural de Lisboa, e veio à ilha familiar do bispo com o seu secretário José António Rufino, homem assaz hábil e compositor de música; porém o Cruz excedia-o assim por sua agradável presença, e conhecimento das belas letras, como pelo dom da oratória sagrada em que a todos se avantajava, assim pela clareza das ideias, escolha de palavras, como pela delicadeza da exposição: havia servido de reitor na sé, e de vice-vigário na freguesia de Santa Catarina do Cabo da Praia. Os poucos bens que possuía, entraram na arrecadação dos defuntos e ausentes, e não sabemos que lhe aparecesse herdeiro, e mesmo se chegariam para os credores.

Mas voltando ainda à má vontade com que eram recebidos os — da Amazona — que assim tratavam os deportados, não se pode explicar o mau comportamento e o proceder dos subalternos do general, e daqueles sob cuja guarda foram dados em prisão; o que deu lugar a falar-se contra eles em público sem peso nem medida, desacreditando-os com todas as palavras odiosas, como assassinos da mãe pátria, com o opróbrio de — jacobinos, e pedreiros livres — apelidos, que, ressoando nesta ilha pela primeira vez entre os povos, foram pelo decurso do tempo empregados como uma venenosa seta contra o crédito de muitos homens de bem, amantes da religião, do rei, e das leis do estado, como por decurso destes Anais teremos de ver.

Continuava a reparação das igrejas paroquiais arruinadas pelos terramotos de 24 de Junho de 1800, e de 26 de Janeiro de 1801, a saber a matriz de S. Sebastião, a paroquial de Santa Bárbara da Fonte Bastardo, Santa Catarina do Cabo da Praia, a de Nossa Senhora da Pena das Fontinhas, e a de S. Miguel das Lajes: e começou a reparação da matriz de Santa Cruz na vila da Praia. Em todas estas igrejas se despenderam mais ou menos quantias para reparo das capelas-mores e torres dos sinos, a que é obrigado o grão-mestre da Ordem de Cristo, como seu padroeiro. O mais que se careceu concertar nelas, foi por concorrência dos fregueses respectivos, e à custa das confradias . Na reparação da dita matriz da Praia, que durou 4 anos, gastaram-se com a obra de pedreiro réis 1:227$000, sendo arrematante em 30 de Julho de 1808 a Romualdo José, oficial deste ofício, que a fez por conta da real fazenda. A obra de carpinteiro, ferreiro, e pintor custou réis 700$000, sendo a primeira feita por Estanislau Caetano, e terceira pelo mestre Alexandre, todos moradores na cidade; mas porque se notaram algumas faltas Essentials, emendas nas obras, e acrescentamentos veio a concluir-se tudo com gasto de réis 5:000$000.

A obra foi toda nova, imitando o gosto gótico da principal peça; somente se não mexeu nas portadas colaterais, e do frontispício que são de jaspe, conforme antigas tradições oferta de el-rei D. Manuel, e segundo me parece, de el-rei D. Sebastião, em cujo tempo foi acrescentada a igreja toda: sendo levada a torre dos sinos aos alicerces, fez o vigário António Joaquim Fagundes meter no ângulo que olha para o meia dia uma redoma de vidro, contendo um pergaminho escrito com esta legenda: “Ano a nativitate Domini nostri Jesu Christi M.D. CCIX pridie idus januari, ego Antonius Joachim Fagundes hujus eclesiiae Matricis a Sancta Cruce da vila da Praia, vicarius proprius, et foraneus vicarius hujus districti, hunc primum ejus lapidem, in reediticatione ejusdemet eclesiae, jam pridem in ruinis, a terramotu M. D. CXIV constitutae, et denuo labefactatae a terramotibus VI Kalendis julii M. D. CCC incussis, et VII Kalendas februarii sequentis anni, gessi, Príncipe regente Portugaliae Joane VI, antistite hujus diecesis Josefus Pegado de Azevedo”.

Nesta obra empregou o sobredito vigário e ouvidor todo o seu zelo, e o valimento de seu irmão o distinto mestre frei Tomás do Rosário , e por isso a deixou excelentemente reedificada, a termos de ficar um dos melhores e mais asseados templos dos Açores. Mais tarde veio a efectuar-se a reparação das outras igrejas, por falta de meios pecuniários, que saíam das diferentes repartições, onde se careciam agentes iguais àquele religioso.

Em tempo deste provincial, frei Tomás do Rosário, aconteceu na ilha do Faial o rapto da religiosa Delfina Clara, do convento de S. João, sobre o que o general, sendo-lhe constante por ofício do mesmo provincial, respondeu o seguinte: “A carta de V. R. de 15 de Junho do corrente ano, com a infausta notícia do rapto de uma religiosa do mosteiro de S. João da Vila da Horta, remeti por cópia ao enviado de S. A. R. na corte de Londres; para nela ao ministro da dita corte pedir satisfação do dito crime, e escandaloso facto. Também da mesma carta, e da ao dito enviado, eu pelo dito motivo, e da devassa que tirou o juiz pela ordenação da ilha do Faial, remeto cópia ao Sr. conde das Galveias, para ser o sucesso presente ao príncipe regente nosso senhor, e S. A. R. dar as providências que for servido”. — Deus guarde a V. R. Angra 9 de Julho de 1810. D. Miguel António de Melo.

Da mesma forma rescreveu ao governador do Faial, que em 28 de Maio lhe dera conta do tal acontecimento, ali proximamente passado, recomendando-lhe, e mandando dizer ao juiz ordinário, que, concluída a devassa, remetesse os autos originais ao desembargo de paço do Rio de Janeiro, pronunciados os réus do delito, ficando presos os que o pudessem ser; deixando três traslados dos mesmos autos, um no cartório do escrivão respectivo, e dois para lhe remeter com a possível brevidade. Ordenava-lhe mandasse prender na cadeia da vila a um clérigo minorista, chamado Tomás José de Bettencourt, filho de António Silveira Bettencourt; e na primeira ocasião o enviasse para esta capital; porquanto sabia que ele era um vadio, que na ilha tinha feito muitos distúrbios, e devendo ser preso, o não fora ainda, por achar protectores: indirectamente se queixava de outras pessoas, que auxiliaram o referido facto.

Todavia, parece que o príncipe regente pedira satisfação ao governo inglês, o qual exautorara o comandante do navio de guerra, ou porque ele era o delinquente, ou porque consentira a freira a bordo; e por fim, dizem, que o raptor se vira obrigado a casar com ela. Eis aqui o comportamento com que se iam habilitando algumas relaxadas, para noutros mosteiros representarem um semelhante papel; nem custa a entender, que a impunidade da primeira criminosa empresa, no ano de 1809, desse agora ânimo para outro tanto, ou mais, se pudesse acontecer.

Suscitavam-se incessantemente dúvidas e controvérsias entre as dignidades e vogais da mesa capitular, por ausência do bispo, chegando a pontos mui graves com escândalo público; muito mais quando, devendo estes maiores funcionários dar o bom exemplo da modéstia, subordinação, e mais virtudes inerentes ao seu estado, tudo faziam pelo contrário, armando-se de temporalidades ditadas pela ambição e orgulho: o que deu lugar a proporem-se algumas dúvidas ao bispo, o qual em sua carta pastoral de 3 de Dezembro do ano em que vamos, depois de exortar o cabido aos seus religiosos deveres e bom exemplo, deliberou a maneira de ocorrer a essas dúvidas, cujo conhecimento lhe pertencia em último recurso. E não nos pareceu ocioso reproduzir o — Documento HHH — pelo qual se formará uma melhor ideia do estado das questões que então se ventilavam na mesa capitular, e providências sobre elas dadas.

Mas o que por fim veio agravar ao último limito a enfermidade moral em que laborava este corpo colectivo, foi a desinteligência com que se haviam, e rivalizava o vigário geral, Frutuoso José Ribeiro, e o deão José Maria de Bettencourt. Parece que não contenderam, segundo a fábula, com mais ardor a mosca e a formiga, disputando nobreza e primazias, do que estes dois poderosos: o primeiro, como se inculcava pelo seu ter, riqueza, e pelo cargo que servia; e o segundo pela sua fidalguia, elegância e emprego na catedral . É verdade que se ambos doutores, não decidirei, se ambos prudentes e modestos; porém o que se alcança é que tiveram larga e menos cautelosa disputa sobre o dever ou não tocar-se o sino de vésperas, imediatamente a uma grande festividade: e qual deles podia nesse caso mandar validamente. Sabe-se todavia, que nesta renhida contenda se não escolheram palavras, que não escaparam antigos defeitos de sangue, e coisas da vida privada de cada um: em tanto que, como neste assalto moral se não escolheram árbitros, e contendiam dois poderosos, veio a força de Ajax a suplantar o merecimento de Ulisses, porque o vigário geral, senhor da vara, mandou prender o deão, entregando-o a um meirinho, que não teve escrúpulos de atravessar a cidade com ele a seu lado até o enclausurar no convento dos Capuchos, onde o deixou; e sem embargo de que este preso requereu a homenagem devida à sua pessoa e qualidade, não foi atendido este e pela sua gravidade pareceu cá na ilha um fenómeno espantoso entre a classe nobre, e muito mais entre os eclesiásticos. Passaram-se então muitas coisas, requerimentos, protestos e agravos, que é fácil colher do — Documento III —, porque houve o príncipe regente por mal feita semelhante prisão, estranhando severamente o rigor com que fora praticada. Vindo por fim o suposto réu a ser absolvido (como se conta) e condenado o vigário geral em perdas e danos, dias de pessoa e injúria, cujos prejuízos não quis haver a parte agressora, por generosidade.

Desta forma acabaram as grandes e escandalosas lutas de que se arrogavam estes dois eclesiásticos e que por muito tempo deram um triste espectáculo à ilha inteira e a toda a diocese, a qual devera esperar um melhor exemplo.

Constando em Angra, a 22 de Dezembro, achar-se despachado para outro posto honroso o capitão general Aires Pinto de Sousa, que muito por vontade solicitava a sua remoção, representou a Câmara ao príncipe regente o reconduzisse no mesmo posto, por se achar servindo com geral satisfação dos povos desta província em razão de suas virtudes e letras: e assim lhes foi deferido.

Parece que neste ano de 1810, teve lugar em Angra o facto desse marinheiro inglês que deitou ao mar, em certa noite, uma nossa sentinela que estava no cais e o impedia de passar para cima; e desse oficial de marinha que teve, não o valor mas a indiscrição e brutalidade, de subir pela muralha do castelo de S. João Baptista a tomar uma satisfação com a guarda, por esta ter, por engano, respondido com menos um tiro à salva da sua fragata. E qual seria o fim de um português que fizesse qualquer dessas coisas em Inglaterra? Deixamos de o dizer pela vergonha de não termos feito outro tanto.