Saltar para o conteúdo

Anais da Ilha Terceira/IV/I

Wikisource, a biblioteca livre

Com o novo estabelecimento da Constituição em Portugal, e com a vinda do capitão, general Francisco de Borja Garção Stockler, nasceram bem lisonjeiras esperanças de, quanto antes, se elevarem as ilhas dos Açores do abatimento e degradação em que se achavam, principalmente a sua capital, por causa dos recursos, que a muito custo ia procurar à corte do Brasil, onde pouco se curavam dos interesses destes povos; o que certamente dava larga margem ao arbítrio do governo geral e das estações subalternas.

Também se julgava que o novo general teria prestado o juramento respectivo às bases da mesma Constituição, e que por esta forma viria, ele próprio, extinguir as terríveis sementes do despotismo que nestas ilhas ainda produziam envenenados frutos, não concorrendo pouco esta ocasião para firmar, ainda melhor, a sua reputação e brilhar, com os seus abalizados conhecimentos literários, no desenvolvimento prático de um sistema tão desconhecido à nação portuguesa, e por isso carecendo de verdadeiros aplausos.

Mas quanto não perigaram semelhantes suposições! Quão errados não eram tais juízos! Inflamado Stockler em um disfarçado zelo do bem público, contra toda a expectação, só cuidou no desenvolvimento de sentimentos anticonstitucionais, motejando os procedimentos políticos do reino, e achincalhando as pessoas que lhe deram acção, explicando desta forma ainda melhor o seu intento na proibição dos passaportes com a frase — para esse país de rebeldes; negando a circulação de periódicos impressos, ainda mesmo estrangeiros, que tratassem daqueles acontecimentos; tudo isto com rigorosas visitas de polícia e escrupulosas censuras, castigos e espionagem, com que veio a introduzir a desarmonia das famílias, perturbando a paz que reinava no país; e, em vez de fomentar os projectos constitucionais, bem pelo contrário, propôs-se ostensivamente sufocá-los de todo, recorrendo à poderosa arena do terrorismo: para o que dobrou as rondas da cidade, de dia e de noite, aumentou as patrulhas, os guardas e mesmo até à porta do seu palácio fez postar artilharia[1].

Notou-se-lhe também o haver exercido as funções de desembargo do paço, nomeando as Câmaras da capitania. Suspendeu arbitrariamente o procurador do concelho da cidade de Angra por ter despontado algumas ideias liberais e porque pediu certidão dos privilégios da mesma cidade. Nomeou e deu posse ao capitão-mor, havendo um com patente régia, e que então se achava, — dizia a nova patente — naquele país revolucionário. Proibiu os recursos forenses para Lisboa, ordenando subissem à Corte do Rio de Janeiro.

Enquanto assim procedia o capitão-general na ilha Terceira, alguns patriotas, intimamente convencidos da necessidade das reforma políticas, e de que el-rei aprovaria tudo o que fosse em benefício nacional, entraram no projecto de ocorrer a tantos males com que se achava oprimida a sociedade; o que só se poderia conseguir aderindo as ilhas da capitania ao sistema de Portugal; e desde então empregaram os meios que passo a expor.

Logo que chegaram à ilha notícias do continente, no mês de Setembro de 1820, e constou da nova ordem de coisas, o desembargador Alexandre de Gamboa Loureiro, e o juiz de fora da cidade, Eugénio Dionísio Mascarenhas Grade, formaram o projecto de aclamar a Constituição nestas ilhas; mas porque tudo dependia da força militar postada no Castelo de São João Baptista, e o capitão-general era oposto, assim como o governador do mesmo castelo Caetano Paulo Xavier, foi necessário experimentar os comandantes dos dois corpos de linha, que eram o major de artilharia João José da Silva, e o major de infantaria João Pereira de Matos Rite, que ambos se anunciaram aderentes, recusando somente figurar de primeiros, por falta de confiança na tropa: e sem embargo disto tiveram a honra de guardar o segredo sobre este negócio.

Baldado este primeiro plano, recorreu-se a outro, fundado na cooperação dos oficiais subalternos; porém era este mui difícil pela falta de centro, e muito mais pela diversidade de interesses; e por isso pareceu acertado chamar o ex-capitão-general Francisco António de Araújo, que ainda conservava boa influência na tropa, a qual pela maior parte fora criada e disciplinada por ele, com a oficialidade, que todos eram criaturas suas: razão porque se julgava mesmo ser ele só capaz de entrar de viva voz nesta árdua empresa.

Todavia, sendo tal a opinião dos autores do projecto, é certo que não houve toda a cautela, e careceram da necessária crítica, para lançarem mão de um homem, que no geral da ilha era detestado e aborrecido pelos povos, como autor de grandes incómodos sofridos em tempo de seu governo, ainda que deles houvessem resultado algumas conveniências, já então esquecidas, porque o benefício em gentes populares facilmente se esquece; e a inveja não cessa de alimentar descontentamentos, como é bem ordinário entre os homens pela sua triste condição.

O interesse de tão justa causa fez, com efeito, conciliar com o ex-general estes dois magistrados, que por muito tempo andaram com ele às mãos, quando no governo, como em seu lugar deixo escrito. Prevaleceu o amor da pátria, e tudo se convenceu.

Araújo entrou de boamente nesta obra, enquanto uma sociedade patriótica, composta daqueles magistrados, do tenente-coronel de engenheiros José Carlos de Figueiredo, do morgado José Leite Botelho, do inspector da agricultura Tomás José da Silva, e do cirurgião Inácio Quintino de Avelar, trabalhava por si e seus agentes em firmar a opinião pública e engrossar o partido, assim na cidade como em toda a ilha[2].

Aprovou-se o plano proposto pelo desembargador Loureiro, que era conforme o de Portugal, para que ficasse Araújo incumbido de todos os actos militares, e membro da Junta Provisória, e Loureiro de todos os actos civis.

Por esta forma, conservando aparentemente o estado de cousas, não perdiam os constitucionais de vista o aumentar os recursos para o fim projectado; e Stockler os de desprezar estes seus inimigos, ao que deu princípio, enviando para o Brasil o negociante José António Ferreira Vieira, e o tenente José Carlos, para a ilha das Flores, com pretexto de serviço; e pretendia acabar com a presença de Araújo, a quem fez intimar pelo sargento mor Manoel Joaquim da Silva, para que se retirasse da cidade por ser perigoso estar nela.

Confiado Stockler nos comandantes das tropas, a quem pouco antes chamara a conselho, consultando-os sobre revolução da ilha de São Miguel, em que já se tinha aclamado a Constituição[3], tornava-se cada vez mais ardiloso, e ousado, dizendo que ele tinha caído na desgraça de abraçar o sistema adoptado em Lisboa, e por este modo se manifestava em oposição ao mesmo sistema.

Soube Araújo que no dia 2 de Abril seria preso, e, por isso, imediatamente fez saber ao desembargador Loureiro, que era forçoso efectuar-se a revolução na madrugada daquele dia, para se evitar o serem todos sacrificados ao despotismo; e assentaram nisto com o cirurgião Avelar e com o negociante Tomás José da Silva.

Era meia noite quando o desembargador Loureiro se recolhia a sua casa; achou então uma patrulha à porta, mas entretendo um diálogo premeditado com o comandante da mesma, Agapito Pamplona, foram unir-se a Araújo, e postar-se junto do Castelo de São João Baptista, onde pouco depois chegou o tenente-coronel José Carlos, acompanhado de outra patrulha, e o morgado José Leite Botelho, com outras mais pessoas; e patrulhas que andavam de ronda à cidade, comandadas por oficiais de confiança; e porque estas à meia-noite entravam no Castelo para ser rendidas; a essa mestra hora entraram os constitucionais, e o tomaram por surpresa.

Logo então Araújo prendeu no seu quartel ao governador Caetano Paulo Xavier, que lhe prometeu neutralidade sobre este negócio. Fez-se ao mesmo tempo a maior diligência para prender o comandante de infantaria, mas tinha nessa noite ficado na cidade.

Junta a tropa dos dois batalhões, e as referidas pessoas, em altas vozes aclamaram a religião católica romana, as Cortes constituintes, a Constituição, e o rei constitucional: seguindo-se imediatamente uma salva de artilharia; e em seguida oficiou-se ao bispo D. frei Manoel Nicolau, ao coronel Francisco do Canto e Castro, e ao dr. José Maria Osório, participando-lhes a nomeação deles feita para comporem a interina junta do governo supremo destas ilhas dos Açores; e assim também se oficiou ao juiz de fora — Grade — que por moléstia não compareceu, e ao tenente general Stockler, participando-lhe a sua deposição do cargo.

Todos estes ofícios foram enviados pelo tenente do milícias Mateus Homem Borges, que sendo encontrado aclamando o novo sistema, foi injuriado e ferido gravemente em uma face, por um dos ajudantes de ordens, que o mandou preso, amarrado com a sua própria banda à presença do general, onde também sofreu os maiores insultos de palavras, dizendo-lhe este que lhe não dava com a bengala para a não sujar, remetendo-o, depois disto, preso, apesar do estado deplorável em que se achava, para a enxovia.

No entretanto o estrondo da artilharia, em alta noite, pôs em sobressalto a cidade, e a ilha inteira que não esperava a revolução; e Stockler acordando achou-se desarmado, e desamparado da sua guarda. Chamou então às armas os milicianos e mandou bater às portas dos habitantes da cidade, para que o seguissem com o fim de bloquear o Castelo; porém, sendo já de dia, disparou-se uma peça de metralha, sem pontaria, o que foi bastante para se debandar a gente que o seguia desarmada, e algumas patrulhas saídas do mesmo Castelo foram perseguindo os seus partidistas até mui longe[4], indo ele acolher-se à Vila da Praia, três léguas distante da cidade, onde entrou pelas 10 horas da manhã, comovendo assaz a quantos o viam, pelo seu mau estado de saúde, e montado em uma azémola, correspondendo aos vivas que se lhe davam em tom bem humilde e melancólico, com que arrancava do povo muitas lágrimas de comiseração: porquanto o reputavam injustamente perseguido, sendo tão zeloso pelo bem da pátria, do rei, e da religião — dizia ele — quase a extinguir-se por aqueles jacobinos.

Foi aquartelar-se na casa da Alfândega, e nesse mesmo dia convocou um conselho militar, composto dos oficiais que o tinham acompanhado e do coronel de milícias Cândido de Meneses[5], no qual se decidiu unanimemente, o ser de absoluta necessidade capitular, em razão da desigualdade das forças e falta de munições, contra uma praça forte, e que aliás a resistência seria inútil e certa a efusão de sangue. Cedeu por consequência o general somente à necessidade: e de tudo se exarou o competente termo, que por todos foi assinado.

Neste tempo, os que deviam compor o Governo supremo destas ilhas, acompanhados da tropa, haviam entrado na casa da Câmara, onde se achavam o juiz de fora Grade, os vereadores Francisco Moniz Barreto, Alexandre Martins Pamplona, Francisco de Meneses Lemos e Carvalho e o procurador Tomás José da Silva, em falta dos actuais, e, estando os procuradores da misteres, se agregaram ao Governo o corregedor Joaquim Bernardes Rebelo Borges e o dr. Osório, secretário com voto.

Leram-se então duas cartas, uma do bispo D. frei Manoel Nicolau de Almeida, em que se escusava, e outra do coronel José Francisco do Canto, alegando moléstia; e na presença de um numeroso concurso de povo tomou a palavra o desembargador Loureiro, orando a favor da Constituição, com muito aplauso; e em seguida se jurou esta espontaneamente[6], dando-se muitos vivas ao rei, à Constituição e à religião católica romana, reconhecendo-se o Governo, que também jurou com as formalidades do costume, exarando-se de tudo o respectivo auto (Documento A).

Concluído isto, voltou o Governo para o castelo. E logo constando que Stockler se reforçava na Vila da Praia, reunindo as milícias daquela capitania e os artilheiros da costa, em vista de atacar o Castelo de São João Baptista, providenciou-se, recolhendo-se nele, e no mesmo dia, quantidade de víveres e puseram-se em arrecadação os dinheiros públicos.

Ás 6 horas da tarde chegou à cidade o benemérito juiz de fora da Praia, Joaquim Firmino Leal Delgado, levando os artigos de capitulação e abdicação do Governo, assignada pelo ex-general Stockler, resultado do conselho a que procedera, contando entregar-se à generosidade da junta com imunidade da sua pessoa e família, e oficialidade que o seguira na retirada para aquela Vila[7]. Imediatamente se enviou o corregedor Rebelo levando-lhe a resposta, conforme se exigia nos referidos artigos.

No dia 3 de Abril continuaram, na Câmara da cidade e da vilas de São Sebastião e da Praia, a prestar-se os devidos juramentos à Constituição: e estes actos duraram até à noite; e às 11 horas do dia 4 de Abril chegou Stockler à cidade, recolhendo-se a casa do negociante João da Rocha Ribeiro, onde o foram visitar os principais da cidade, muitos soldados[8], e o mesmo Francisco António de Araújo, que parece tivera a sinceridade de falar na aceitação que tinha entre a tropa, a qual segundo ele se persuadia, queria ser por ele governada debaixo de qualquer título que ele preferisse[9], respondendo-lhe Stockler que não convinha agora tratar de assuntos políticos, com um homem que tinha cedido sim, mas que não tinha mudado de opinião, nem de sentimentos. Com esta dura e desagradável resposta despediu-se Araújo; e no entretanto Stockler, pouco tempo depois, saiu a visitar a sua família, que tinha recolhido no mosteiro da Conceição.

Apenas saiu de casa, que logo veio concorrendo de todas as ruas da cidade uma imensidade de povo miúdo, que lhe dava os maiores sinais de respeito, manifestando nos seus gestos, e lágrimas uma profunda mágoa Cada vez engrossava mais a multidão de gente de todas as idades; era mesmo difícil evitar aquele perigoso cortejo. Chamavam-lhe pai e benfeitor, apressando-se cada um, quando ele se apeava, a lhe beijar a mão e abraçá-lo. Ao sair do mosteiro ainda era mais o concurso, mais vivo o pranto, e não faltou quem logo no castelo noticiasse o quanto se passava naquela cena notável; o que foi parte para que os soldados se inflamassem no empenho de o restabelecer no governo: ao mesmo tempo que os influentes do partido contrário não perdiam ocasião de os subornar, prometendo-lhes dinheiro, e postos avançados.

Tudo isto souberam os membros do governo, tendo já por certo ia operar-se uma contra-revolução, sem embargo do que Araújo se deixou persuadir de alguns oficiais, que nada tinha a recear dos soldados, pelo muito que o respeitavam; cega credulidade! e muito mais confiando que Stockler não seria capaz de trair a sua palavra, e os artigos da capitulação por ele oferecidos, tornando-se o motor da sublevação contra o Governo por ele mesmo reconhecido.

Não faltou também quem fosse avisar mui seriamente Araújo, e outros do Governo, que havia quem tinha seduzido a tropa à rebelião; e contudo nenhum deles se retirou, nem tão pouco desampararam a causa, que os tinha obrigado a reunirem-se tão cordialmente; nem deixarem de entrar para o castelo, sabendo já que a tropa se achava corrompida. Entendendo porém lhes convinha pôr os últimos esforços para obviar à explosão, ajuntaram-se ali em conselho, assinando a ordem para o pronto embarque do ex-general Stockler[10].

Eram 10 horas da noite quando se ouviu grande motim entre os soldados, e logo muitos tiros de metralha contra e quartel em que se achavam os governadores pacificamente; e correndo estes à sala exterior, chegou o infeliz Araújo a uma das janelas, no intento de falar à tropa, ao mesmo tempo que acertando-lhe um tiro de metralha, caiu logo sem vida. Não é fácil avaliar suficientemente qual foi o estado, pois, enquanto parte dos soldados continuava a fazer um vivo fogo, que durou por espaço de uma hora, outros investiram ao quartel com baionetas e espadas desembainhadas, vociferando com palavras de vingança e de morte, contra todos quantos dentro se achavam.

Nesta última extremidade nenhum se considerou seguro entre a fúria da soldadesca desenfreada; ouviram-se então muitos gritos e lamentações da família daquele desgraçado, e das pessoas que com ele estavam[11], à vista de tão dolorosa cena cedeu a ferocidade dos soldados, enquanto o palpitante e ensanguentado cadáver jazia por terra, contentando-se os soldados em prender, com muitos insultos, e impropérios a quantos acharam dentro e fora da sala; conduzindo-os para o corpo da guarda, onde os deitaram expostos à morte, porque os soldados, já muito embriagados, quando por ali passavam, apontavam cosa as armas para dentro, deixando somente de as descarregar, a muitos rogos das sentinelas, e lágrimas dos presos.

Ao mesmo tempo, vários soldados desceram à casa do negociante João da Rocha Ribeiro, com a sege em que se recolhera ao Castelo o coronel Canto, para dentro dela levarem o general Stockler: e afirmou-se por verdade, que nessa ocasião a notícia da morte de Araújo fora brindada com quantidade de dinheiro, lançado das janelas abaixo[12]; assim como se notou a satisfação que em toda aquela tarde houvera na dita casa com a presença do deposto general, o que certamente inculcava futuras esperanças do seu restabelecimento. Pelo que não se demorou Stockler em se apresentar com todos os seus uniformes e insígnias, entre as vivas aclamações da tropa, marchando para o quartel do major de artilharia, onde se demorou até mui tarde, recebendo parabéns, e determinando que o bispo, o coronel Canto, e o corregedor, que estavam debaixo de prisão, fossem à sua presença; do que resultou mandá-los para suas casas; igual generosidade praticou com o desembargador Loureiro, que se tinha escondido em um subterrâneo do quartel, com o juiz de fora Grade e o quartel mestre de infantaria: e sendo levados para o corpo da guarda ali acharam o morgado José Leite, seu filho Luís Leite, Tomás José da Silva, Máximo José Pereira de Azevedo, o capitão Agapito Pamplona Rodovalho, e outros. Mais tarde se recolheu o general ao seu palácio, entre luminárias da cidade, no que muito se distinguiu o coronel agregado de milícias Jorge da Cunha.

No dia 4 de Abril mandou Stockler postar os dois batalhões de 1.ª e 2.ª linha na praça, defronte da casa da Câmara, na qual fez ajuntar a nobreza, clero e povo, e perguntou aos vogais presentes do governo constitucional: porque razão se tinham rebelado contra ele, que estava autorizado pelo legítimo e único soberano? e porque aclamaram um governo rebelde, aderindo à causa dos rebeldes de Portugal (Documento B)? Qual seria então a resposta em presença das armas, é fácil conjecturar!! Os ex-governadores fizeram a este respeito quantas declarações deles se quiseram extorquir, conformaram-se em tudo, e por tudo com a vontade do general, e saíram livremente para suas casas. Concluído o acto com muitos vivas a el-rei e ao capitão-general, entraram na Sé Catedral, assistindo a um Te-Deum, em acção de graças, por tão assinalada protecção da Justiça Divina.

Começaram desde logo em Angra as terríveis maquinações ocultas, os subornos, as promessas de mercês, e promoções militares: não faltando indignos portugueses, que por meios tão escandalosos acenderam o fogo da discórdia na sua pátria, com o fim de suplantarem a causa da liberdade, pois é certíssimo que não só tiveram em vista o ódio contra o infeliz Araújo, que, se assim fosse, com a sua morte acabariam todos os criminosos projectos; mas não foi assim: no decurso desta obra hão de aparecer os fins a que tudo se dirigia; quantos, e quais foram esses indivíduos que tão feiamente lançaram as sementes de terríveis perseguições e ultrajes contra os aderentes ao sistema constitucional, e por assim ser desacreditaram a sua pátria, dando por todos meios um irrefragável testemunho da sua incapacidade mental, por quererem obrigar os outros homens a pensarem como eles e a limitarem-se a uma acanhada esfera.

Logo o general despachou e promoveu postos de oficiais, premiando diferentes pessoas, em razão dos serviços prestados contra a Constituição, brindando também os assassinos de seu antecessor, e com sobeja mágoa vimos que os inimigos da pátria mostraram nesta ocasião aprovar tão feias e torpes acções.

Foi público naquele tempo o plano de demolir o quartel, onde se achava o Governo Provisório, para ficarem sepultados em suas ruínas todos os que dentro dele se achavam; o que não se verificou, por se não poderem carregar com balas as quatro peças, que se dispararam com metralha. No meio de tudo isto não falhavam os artifícios do general, com que sabia iludir o público, figurando a ilha em perigo, a sua pessoa pouco segura, e proclamando-se constante no sistema de humanidade, moderação, e brandura, que adoptara, desde que aparecera nesta ilha, como se jactava na sua proclamação de 9 de Abril (Documento C).

O cadáver do infeliz Araújo estendido no chão, ficou por muito tempo exposto ao roubo, irrisão, e aos insultos da tropa, até que, por ordem do governador Caetano Paulo, foi conduzido de rastos para um canto próximo ao topo da escada.

Ali preencheu o seu brutal gosto um desumano, que lhe meteu uma bengala pela boca abaixo; e uma mulher[13], que não devia ter nome na história, além de muitas outras que dos campos concorreram a ver o morto, mas que se chamava Camila, nome aliás tão célebre na Eneida, a qual tirou, por desprezo, do pé um sapato, com que muitas vezes lhe bateu nas faces ensanguentadas. Bárbaro divertimento e feia vingança, quando esta mulher, e as outras que a aplaudiam, lhe devia muitos respeitos e favores; mas não há excesso que deixe de cometer a gente popular em semelhantes ocasiões.

Tão cruéis desprezos foram vistos e presenciados com a maior indiferença por muitas pessoas, e por algumas que bem podiam demover os seus autores, ainda somente pelo respeito da caridade[14]: porém não aconteceu assim, e o mesmo cadáver por esta forma ludibriado, ficaria insepulto por muito tempo, a não ser a caridade do ajudante de ordens Manoel José Coelho, que, à sua custa, o mandou conduzir, acompanhado unicamente pelo capelão, e sepultar na incendiada igreja do mesmo Castelo de São João Baptista; sem que Stockler se comovesse de tão lastimoso espectáculo, nem mandasse fazer algumas honras fúnebres àquele desgraçado que, além de ser seu antecessor, era brigadeiro; nem tão pouco lhe mandou formar o indispensável processo-crime, para castigar os assassinos.

Custa muito a crer tamanha crueza, porém é certo que tudo isto se passou impunemente. Foi presa toda a família do finado, excepto um menino de 12 anos, e enviadas duas filhas para o mosteiro das religiosas capuchas, ficando incomunicáveis em uma casa escura, em que se conservaram por espaço de 40 dias, sem auxílio algum[15], porque imediatamente se procedeu a sequestro nos bens do defunto seu pai.

No entretanto, todos os constitucionais, que por fortuna sobreviveram ao premeditado e sanguinário plano, foram insultados grandemente pela soldadesca, despindo a farda a muitos de seus oficiais, que feriam e espancavam, arrancando-lhes as barbas e cabelos e lançando-os por fim dentro em imundas prisões com sentinelas à vista, as quais continuamente vociferaram que os haviam de levar à baioneta.

Não tardaram, por consequência, em espalharem-se pela cidade muitos soldados, de tropel, com o fim de atacarem aquelas pessoas suspeitas de favoreceram e aprovarem a Constituição; e por esta razão não deixaram qualquer casa, asilo ou clausura que não atacassem ou invadissem, para neles procurarem os supostos delinquentes e traidores; tudo isto sem que os chefes repreendessem tão enormes e feios procedimentos, antes, pelo contrário, com o seu silêncio e o do capitão-general, se julgavam autorizados, ensinando a populaça a tomar parte com eles neste original e desconhecido divertimento.

Alguns dias durou calamidade, até que, por ordem do general, se procedeu, sem culpa formada, à prisão de cidadãos pacíficos, que ele declarou réus de estado, inconfidentes e rebeldes; e não atendendo a foros, privilégios ou graduação, os mandou fechar nas mais hediondas e estreitas prisões do calabouço, corpo da guarda e dos castelos. Ficaram uns nas cadeias da cidade, enxovias, segredos e cárceres; outros em lugares tão indignos, que decentemente se não podem nomear; acrescendo a tal as mudanças aparatosas, que muitas vezes se faziam com eles para os aterrar. Também se lançaram ferros aos pés de um tenente-coronel, por vários dias. Todos eles estavam com sentinelas à vista, e com as maiores recomendações do ajudante de ordens, Tomás Manuel Palmeirim, que era o maior valido do general.

Todos estes presos se achavam incomunicáveis privados de luz, de preparos para escrever e de quaisquer livros, recebendo sustento unicamente duas vezes no dia, e mesmo já depois de remexido e sordidamente examinado pelos soldados. Foram-lhe igualmente proibidas facas e garfos; e passou-se ordem ao corregedor para lhes mandar fechar as portas, e pregá-las, confiscando-lhes os bens. Todavia foi o corregedor entretendo esta execução, de forma que, chegando, no ínterim, novas ordens de Lisboa, ficou isto de nenhum efeito.

Fez também o general várias demissões de oficiais e de alguns militares, dispensando as necessárias formalidades; deu baixa redonda a outros; suspendeu soldos, e mandou se não pagassem os vencidos a certos indivíduos, despachando para seus postos os que tinham concorrido para o assassínio do seu antecessor. Enviou por esta ocasião às Câmaras relação dos soldados a que ele chamou beneméritos, exigindo donativos e prémios por aquele notável feito.

Porém, se este procedimento se julgou pouco decorosa, muito mais o foi o do Governo Interino, que aprovou tão injustas e arbitrárias alterações. Para nada escapar à perseguição, também se violou a segurança do correio geral, abrindo-se no seu palácio a mala e as cartas que vinham, e por muitas vezes se interceptou a correspondência dos constitucionais, fazendo-se violência ao desembargador Loureiro, a quem o general mandou prender rigorosamente até 17 de Maio, e lhe mandou fazer, com grande empenho, busca de uma carta que lhe viera do reino.

Por último, comprou o mesmo general um navio por dois contos de reis, à custa da real fazenda, para o enviar ao Rio de Janeiro, com todos os presos que fosse possível caberem nele, e para isto se chegaram a fazer, no porão, camarotes e grilhões.

Por fortuna houve no preparo desta embarcação mais demora da que se esperava, e por isso ficou baldado o intento do general, que não contente em causar todos estes males físicos, ainda promoveu, quanto pôde, por si e seus agentes, os maiores ódios entranháveis e execrações contra os constitucionais, infamando-os torpemente de inimigos da religião rebeldes contra o rei; apelidando-os também de jacobinos, facciosos e pedreiros livres; publicando que eles só tinham a mira nos roubos, violência, assassínios, venefícios e outras iguais atrocidades, com que inteiramente iludiu a populaça. Mas felizmente que de tudo isto se não achou provas algumas: já no sumário a que fez proceder o juiz por bem da lei, já no que tirou o corregedor interino, o juiz da Praia, Joaquim Firmino Leal Delgado (Documento D).

Tal foi o abismo horroroso em que jazeram os infelizes presos sob a guarda dos seus próprios inimigos, por mais de 40 dias, receando a cada momento serem vítimas da corrupção e turbulência dos soldados, que não cessavam de os ameaçar, mui principalmente nos dias em que apareceram defronte da cidade os brigues Tejo e Providência, que, por se supor vinham defender a Constituição, se tocou em Angra a rebate, carregando-se a artilharia, e acendendo-se morrões para lhes fazer fogo, apenas chegassem a tiro.

Raiara finalmente o fausto dia 13 de Maio, natalício de el-rei D. João VI, e nesse mesmo dia fundeou em Angra a fragata Pérola, com a notícia oficial de ter el-rei jurado a Constituição, trazendo além disto ordens ao bispo e ao general para se instalar o respectivo Governo. Usou então Stockler de tais artifícios, que induziu a tropa e populaça para não consentirem no embarque dos dois; antes sim a ficarem adidos ao governo, ele, bem entendido, com o comando das armas, que era o seu maior empenho.

Concluindo-se a aclamação da Constituição na cidade e vilas da ilha[16], não duvidou orar a favor da mesma, demonstrando as vantagens de um tal sistema; e mesmo assim só no dia 15 tomou o governo a deliberação de mandar soltar os presos[17], e então prestou-se Stockler a suplicar às Cortes perdão dos supostos crimes por eles cometidos!

Sem embargo do que, como eles se acharam inocentes, requereram seus passaportes para Lisboa, ao que se não pôde subtrair o Governo, indo imediatamente queixar-se e requerer justiça pelos vexames que se lhes tinham feito por arbítrio de Stockler, a quem se fizeram partes Maximiano José Pereira e sua irmã e Tomás José da Silva, convencendo por fim a prisão. Vingando-se Stockler em escrever, em seu nome e do filho, muitos folhetos que fez imprimir e circular, pouco desviou de sua reputação tudo quanto se lhe arguía. Entre os muitos que dele restam, é o ofício escrito ao Governo supremo do reino, onde circunstanciadamente trata da referida revolução, e contra revolução, tanto a seu salvo como se patenteia pelo documento anexo (Documento E).

No meio do estado aparentemente de sossego público, não deixavam os agentes do despotismo de espalhar rumores e tentar a destruição da nova ordem de coisas, afirmando que el-rei não tinha reconhecido a Constituição em que trabalhavam as Cortes, e que mesmo enquanto ele o não declarava, convinha existisse na Terceira o general Stockler com todos os poderes que de antes gozava; e para chegar a seus fins, espalharam que o povo pretendia restabelecê-lo no cargo: ao que ele obstou, proclamando aos soldados em 20 de Junho, fazendo-lhes ver que para evitar públicas perturbações é que consentira ficar na ilha adido ao governo, até decisão do supremo governo do reino; que não aceitaria cargo, poder ou mandado que lhe não fosse concedido pela suprema autoridade, dado que não tomava parte em tumultos populares, antes os aborrecia e detestava e que esperassem toda a ventura da constância da ordem estabelecida, e das alterações e violência tumultuária, senão males e desgraças.

O mesmo governo atestou sobre estas sinceras intenções de Stockler, mas, apesar disso, suscitaram-se por toda a ilha muitos tumultos populares, principalmente entre camponeses ignorantes, que com temerário arrojo ultrajaram os bons cidadãos que, ou juraram, ou se mostraram afectos à Constituição, proferindo contra eles insultos, ameaças e desatinos, o que obrigou o corregedor, na qualidade de intendente da polícia a tomar algumas medidas, e bem sérias, dando parte ao Governo para que recomendasse aos povos todo o sossego Também rogou ao bispo fizesse com que os párocos doutrinassem os mesmos povos a este respeito para os desabusar, mostrando-lhes os bens que poderiam esperar da Constituição: e que o mesmo Governo proclamasse com maior energia, e cominação de rigorosos castigos; o que ele prontamente efectuou, pondo à disposição do corregedor a tropa que ele lhe requisitasse, para manter o sossega público.

Serviam de membros do Governo Provisório os seguintes cidadãos: deão José Maria de Bettencourt e Lemos; João Bernardo Rebelo Borges, corregedor; e Caetano Paulo Xavier, governador do Castelo de São João Baptista; adidos ao mesmo governo eram o bispo D. frei Manoel Nicolau de Almeida, e o general Francisco de Borja Garção Stockler.

Ainda o trágico acontecimento de se incendiar o laboratório da pólvora, no dia 7 de Maio de 1821, veio ajuntar um novo motivo de murmuração e ódio entranhável contra alguns dos presos de estado, por se lhes imputar falsamente, como se entende visivelmente do dito das testemunhas na devassa, o terem nele parte, com desejo de vingança.

Por efeito daquela terrível explosão desapareceram cinco soldados que nele estavam trabalhando, levando para muito longe os corpos despedaçados, cabeças, pernas, e braços. Nunca se soube a causa deste desastre; mas supõe-se que fora a fricção do calcar das velas de composição, como já por vezes se tem experimentado; o incêndio da vela, se assim foi, comunicou-se a toda a pólvora que ali se achava, e não era pouca, pois tinha-se recolhido a da Vila da Praia no mês de Abril.

Notas

[editar]
  1. Todos estes excessos foram praticados em Angra, e deles compôs um folheto o ex-juiz de fora, desembargador Alexandre de Gamboa Loureiro, intitulado Notícia Resumida dos Acontecimentos da Ilha Terceira na Instalação do seu Governo Constitucional — cujo folheto Stockler pretendeu desmentir com todas as flores da retórica e artifícios da sua pena; mas em vão, porque os factos publicavam sobejamente a verdade que ele queria desfigurar. Deste impresso me servi naquelas coisas que não estavam ao meu alcance.
  2. Todos estes indivíduos, excepto José Leite Botelho, eram naturais de Lisboa, a maior parte deportados na Amazona, e por isso não gozavam o necessário conceito na opinião publica, a termos de figurarem em um tão importante revolução. A falsa presunção que de si tiveram, concorreu em grande parte a destruir a empresa meditada.
  3. Sabendo Stockler que na ilha de São Miguel fora aclamada a Constituição, proclamou aos seus povos em 17 de Março de 1821, fazendo também publicar e registar nas câmaras da Terceira a mesmo proclamação, na qual, entre outras coisas dizia: Renunciai ó habitantes de São Miguel, renunciai a louca ideia de adoptar uma Constituição que ainda não existe, e que ainda não sabeis se será própria para fazer a vossa felicidade, ou a vossa desgraça; e que pela mesma razão ignorais se será aceite ou rejeitada pelo vosso Soberano, e mesmo se será consentida e respeitada pelas grandes potências europeias.
  4. Estas patrulhas atiravam para o ar, segundo as ordens que tinham, e por isso não feriram pessoa alguma. Stockler, no seu ofício ao Conde dos Arcos, ostenta uma resistência que certamente não fez; e diz que contando com o regimento de milícias da Praia, por se lhe ter ido oferecer o coronel Cândido de Meneses, e com o parque de artilharia ligeira, composto de 5 bocas de fogo, com as suas competentes munições, o mandara logo pôr em ordem de marcha, assinando-lhe para ponto de reunião a freguesia da Ribeirinha. Que no portão de São Bento se lhe vieram unir alguns soldados milicianos, artilheiros, e ordenanças, além de pessoas da nobreza e diversos oficiais: que assim julgava a propósito entrar na cidade, ainda que não tinha outras munições, excepto três cartuchos nas cartucheiras de poucos soldados e 20 tiros de metralha para duas peças de artilharia. Que assim mandara tocar caixas e ao som de gritos — Viva el-rei — e que o governo legítimo por ele estabelecido carecera naturalmente o número de gente do seu partido, e fora tomar posto no Alto das Covas, onde desenrolara bandeiras ao alcance não só da artilharia, mas da vista ordinária dos homens, para que facilmente do Castelo se avaliasse o número e até se conhecesse os próprios indivíduos, em vista de convencer os moradores do interior do Castelo, e soldados pusilânimes, que a nobreza, clero e povo estavam animados dos mais puros sentimentos de fidelidade, e que os rebeldes eram um pequeno bando de facciosos que o haviam enganado, e que em fim pretendia convencê-los. E, contudo, Stockler nada efectuou. Mandou-lhes cortar as águas, postou guardas avançados em todas as ruas por onde pudesse entrar qualquer socorro, e tudo foi inútil. Nem ele disparou as duas peças de metralha que diz fora para enxotar os soldados, antes é verdade que se retirou à Praia, sem poder firmar-se em parte alguma, cheio de medo e perseguido de remorsos.
  5. Diz Stockler no citado ofício ao conde dos Arcos: Expus-lhes as vantagens que me parecia ter o nosso partido sobre os rebeldes; a inépcia militar do chefe da rebelião; o ódio universal do povo que ele havia merecido, e a amizade, confiança, e respeito que a maior parte da nobreza, clero e povo me mostrava, e de que acabava de dar-me o mais autêntico testemunho. Esforcei-me por fazer-lhes compreender a glória que lhe resultaria de cooperar comigo eficazmente na defesa da causa de Sua Majestade; o expus-lhes quanto pude diante dos olhos, a perspectiva das honras e mercês que em consequência obteriam. Passei ainda, antes de ouvi-los, a indicar-lhes a ordem de marcha, e de ataque, que projectava; e a probabilidade de que em consequência o chefe dos rebeldes, e seus principais agentes, se vissem abandonados pela tropa. Tudo foi baldado: não pude abater em seus corações o fogo que ardia no meu, e de que nos de alguns ainda pressentia algum resto. Impugnaram-me com mui decidida firmeza, e sustentaram a opinião de que não tínhamos partido com os rebeldes; que a possibilidade de êxito feliz da nossa parte era nenhuma: que Sua Majestade nunca aprovaria o derramamento de a sangue dos seus vassalos, uns contra os outros; e que assim não restava outro recurso senão o de meios conciliatórios, sendo, com a possível dignidade, evitados os horrores de uma guerra civil. Então reconheci que todas as minhas instâncias eram inúteis; e me persuadi que as minhas ordens em outro qualquer sentido seriam desobedecidas. Aceitaram os rebeldes a cessação de hostilidades que lhes propus, com a condição de ser respeitado em meu decoro pessoal e de minha família, e de permitir-se o meu trânsito para o Brasil, ou para Lisboa, segundo melhor me conviesse, e não servindo de impedimento a nenhuma das pessoas que me haviam acompanhado, para a continuação de seus empregos, postos ou ofícios, o haverem seguido o meu partido. Aceitaram os rebeldes a cessão de hostilidades que lhes propus com a condição de ser respeitado em meu decoro pessoal, e de minha família, e de permitir-se-me o meu trânsito para o Brasil ou para Lisboa, segundo melhor me conviesse, e não servindo de impedimento a nenhuma das pessoas que me haviam acompanhado, para a continuação de seus empregos, postos ou ofícios, o haverem seguido o meu partido.
  6. Com pequena dúvida suscitada na ocasião de assinar-se o auto.
  7. Continua Stockler o seu oficio ao conde dos Arcos, aos termos seguintes: Debaixo destas condições, aceites por escrito, como V. Ex.ª verá do documento n.º 3, mais especificamente explicadas pelo dr. Corregedor então membro da Junta revolucionária, que pessoalmente me enviaram com a sua resposta, despedi as tropas, e as ordenanças, e me dirigi para a cidade acompanhado por todo o meu estado-maior, e por alguns outros oficiais, e pessoas da nobreza, que não duvidaram constituir parte da minha comitiva. A cidade de Angra estava sepultada na mais profunda tristeza, os moradores correram às portas e às janelas para ver-me; as lágrimas lhe corriam em fio, e lamentações dolorosas soavam de todos os lados. Este espectáculo comoveu-me profundamente; mas foi ao mesmo tempo para mim uma demonstração clara da boa disposição do espírito público para uma enérgica reacção. Tais eram os sentimentos que em seu peito nutria Stockler, e as horríveis ideias duma reacção ocupavam a sua mente e o coração, assim o mostrou neste ofício, que sem dúvida não esperava visse a luz do dia, razão porque fez mutilar o livro do registo destes ofícios como lhe foi arguido.
  8. Jactou-se Stockler no citado ofício, que lhe afirmavam os soldados soar continuamente o seu nome nos quartéis, como seu único general, autorizado por el-rei.
  9. Citado oficio ao conde dos Arcos.
  10. Teve a ardileza, por lhe não chamar outra coisa, de asseverar no citado ofício que Araújo assustado fizera congregar aceleradamente os membros da Junta Provisória para decretarem a sua imediata prisão e extermínio, e que se formava o criminoso projecto de o mandar assassinar no caminho do seu quartel para bordo: ordens, punhais — diz ele — tudo estava pronto; mas divulgando-se a voz de que eu ia ser deportado, e mandando-se acender os lampiões, que deviam alumiar a minha condução, ou antes o meu enterro: os soldados animados por um sargento, e pelo cabo dos tambores da artilharia, que lhes gritavam que não havia um só Instante a perder, que aliás ficavam sem o seu legítimo general; correram acelerados às armas, e puxando uma peça de artilharia, carregada de metralha, para defronte da casa onde de se achava a junta congregada, fizeram cair sobre ela um chuveiro de balas, e estilhaços, dos quais felizmente só um acertou...
  11. Famílias que se achavam de visita.
  12. Tal era a influência de Stockler, e o ódio contra o finado Araújo, que sabendo-se na ilha houve muita satisfação pela sua morte, e na Praia, no convento dos franciscanos, onde eu me achei, fez-se um Te-Deum em acção de graças pelo triunfo de Stockler, e morte do infeliz Araújo! Se assim procedia a gente mais ilustrada de uma Vila, que faria a da mais insignificante aldeia?
  13. Esta mulher era natural de Vale de Linhares e casada na Vila de São Sebastião com um lavrador chamado António Martins Toste, homem honrado. Passou ao Brasil onde morreu tão mal como havia vivido: — Talis vita, finis ita.
  14. É supérfluo mostrar qual o respeito que em todas as nações civilizadas, e ainda entre os gentios, se tributa aos mortes.
  15. A animosidade de Stockler chegou a inculcar-se com perfeita caridade, oferecendo à filha de Araújo uma mesada de 12$000 reis mensais, que foi desprezada com a devida indignação.
  16. Fez-se esta aclamação no dia 15 de Maio e, — diz o autor da Notícia dos Acontecimentos da Ilha Terceira, a página 18, — esta sua astúcia teve o premeditado efeito de ficarem adidos ao governo, Stockler com o comando das armas, que é o essencial por faltar quem tivesse ânimo de sustentar livremente a autoridade da Constituição, que foi friamente reconhecida e aclamada.
  17. Dava-lhes por homenagem a cidade e as ilhas, dizia o edital, na esperança de que ninguém se animaria a maltrata-los por acções nem palavras, antes os considerassem dignos de viverem tranquilos no seio das suas famílias e pátria.