As Minas de Prata/I/IX

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Os prelúdios da música anunciavam que a festa ia começar. Esplêndido e magnífico era o espetáculo que apresentava o Terreiro do Colégio. A multidão, que enchia a praça, ondulava marchetando-se das cores vivas e brilhantes dos trajes e atavios.

Pelas janelas das casas pendiam vistosas colchas da Índia com franjas e lavores de preço; uma infinidade de bandeirolas, flâmulas e galhardetes esvoaçava ao sopro da brisa do mar, formando um íris móbil e volante.

A claridade do sol, batendo de chapa sobre a imensa alcatifa de sedas e veludos, fazia cintilar as facetas das pedrarias, o polimento das armas e o lustro dos arneses, cujos reflexos brilhantes esguichavam como espadanas de uma cascata de ouro.

Na sombra que projetavam os toldos de seda, outro quadro se desenhava menos vivo, porém mais delicado. Em volta das arquibancadas do circo, como colar de pérolas, ou festão de rosas, estavam as mais formosas damas da Bahia, desfolhando o sorriso na ponta do lábio travesso, vertendo cores e feitiços das faces rosadas.

Ao primeiro lanço d'olhos, o painel se mostrava confuso e enredado, como os mosaicos chineses e os arabescos mouros.

Logo após a multidão que se agitava na praça figurava um dragão de mil cores, a enroscar em anéis o dorso de escamas prateadas. Afinal quando a vista se fitava, os objetos tornavam-se distintos, as formas várias destacavam; podia-se então apreciar a disposição da cena.

O circo ainda completamente deserto abria-se no centro mesmo da praça. Corriam em volta duas teias: a primeira que servia de estacada era de gradil verde; a segunda que separava a multidão estava coberta de raso vermelho; entre ambas havia um passeio estreito, no qual já apareciam alguns cavalheiros.

Pela cinta exterior se elevavam de espaço a espaço compridas lanças com suas divisas listradas; ao longo delas estavam postados os soldados do terço da Fortaleza de Santo Antônio da Barra, com as couras amarelas e as alabardas afiadas, prontos a manter a multidão em respeito e sossego.

A meio do círculo, em face uma da outra, tinham armado duas tendas verdes, a primeira destinada para os aventureiros; assim chamavam naquele tempo os cavalheiros que tomavam parte nos vários jogos e sortes. A segunda era reservada para os mantenedores.

Fronteiro à entrada da liça e mais elevado, erguia-se um gracioso pavilhão de damasco branco dividido em três arcos: o do centro mais largo fora adereçado com finas alcatifas e lindos coxins de veludo para o governador e as famílias por ele convidadas; os das extremidades para os oficiais da Câmara e ministros de Justiça, Fazenda e Guerra.

Uma escadaria tapetada descia para um largo estrado, que ficava sobranceiro à liça; aí viam-se as três cadeiras dos juízes em torno de uma mesa coberta de veludo com a salva de prata, onde se guardavam as joias e objetos de primor, que deviam ser dados em preço de valor e galhardia aos cavalheiros que se avantajassem nos jogos.

Pela beira do estrado passeava com um ar de importância a fazer inveja ao mais pedante desembargador da casa da suplicação, nosso conhecido mestre Bartolomeu, que pelo seu porte atlético e pela entonação majestosa de sua voz, fora escolhido para desempenhar as funções de arauto. O cantor da capela tinha um aspecto soberbo sob suas vestes de cerimônia; mirava-se com ufania na cota d'armas que lhe cobria o peito, no jubão roxo com morenilhos de retrós, e no brasão que trazia do lado esquerdo.

Sobre o arco central que sustentava a cúpula do pavilhão tinham pintado as armas que Tomé de Sousa dera à cidade do Salvador quando a fundara; eram essas uma rola branca sobre campo verde, tendo no bico um ramo de oliveira com o seguinte dístico em letras de ouro: Sic illa ad arcam reversa est.

Esse emblema recordava a tradição bíblica. A rola simbolizava a mensageira de Deus que viera anunciar ao Brasil a aurora da civilização, como no começo do mundo anunciara ao gênero humano a bonança depois do dilúvio; a arca era a cidade onde num futuro bem próximo se devia salvar a colônia da invasão estrangeira.

Sob o dossel do pavilhão já se achava D. Diogo de Menezes, o qual nesse momento esquecia seu elevado cargo, para lembrar-se como cavalheiro do que devia às damas das mais nobres e ricas famílias, que por convite especial ocupavam os lugares distintos, e formavam por assim dizer a pequena corte do governador.

Entre todas, uma linda menina atraía os olhares dos cavalheiros, que em sua ardente admiração a proclamavam rainha da beleza.

Era Inesita.

O longo véu, que de manhã na missa lhe ocultava o rosto e disfarçava o talhe, desaparecera; agora o traje de gala deixava contemplar em seu brilho as graças da encantadora criação, que a natureza concebera em algum momento de enlevo e cristalizara com um beijo de mãe.

Tudo era mimoso e delicado no corpo gentil que palpitava de esperança e amor, ondulando no requebro suave, desatando nos movimentos faceiros como se a alma lhe vertesse dos lábios, para embebê-la de luz e envolvê-la toda em um só e único sorriso.

A coifa de fios de ouro, colhendo as tranças negras em volta da cabeça, ia terminar em coração na fronte pura, onde os cabelos riçados anelavam-se como espiras de um diadema, lembrando o gracioso penteado, a que uma rainha infeliz dera seu nome.

As sobrancelhas arqueavam como traços fugitivos de um pincel embebido em nanquim; e as pálpebras ligeiras, ou cerravam-se beijando as faces com os longos cílios e azulando a tez com as tênues sombras, ou deslaçavam como folhas de rosa nadando em gotas de leite.

Nesses rápidos instantes via-se a limpidez e a perfeição de seus grandes olhos; a pupila negra, engolfada no cristalino úmido e transparente, coalhava em glóbulos de luz branda e serena; o olhar não era visão, sim reflexo da irradiação íntima, doce fulgor de inocência e candidez.

Aljôfar diáfano enrubescendo aos raios do sol; alva lençaria corando ao reflexo de fitas escarlates; fino esmalte onde o branço e o carmim se cambiam; nem uma dessas imagens pode dar uma ideia da cútis mimosa, que aveludava-se aos toques da luz.

Brincava-lhe o coração nos lábios rosados, que enflorava o meigo sorriso, abrindo nas faces duas covinhas graciosas, ninhos feiticeiros, onde se incubavam desejos de amor estreme; porém às vezes uma expressão séria colhia esse deslace das feições gentis, e traçava em toda a pureza as linhas harmoniosas, que, desenhando o colo flexível, torneavam as espáduas e iam fugindo perder-se na volta de um colarinho de renda.

O corpilho de lhama de ouro, atufando-se para debuxar o relevo de dois seios de virgem, depois estreitando para moldar o talhe esbelto e senhoril, cerrava a cintura de menina, e abria as asas sobre as amplas dobras da saia de raso branco, que arfava com o influxo das formas sedutoras.

Das largas mangas de volante, apanhadas por um broche, escapavam os lindos braços cujos contornos divinos pareciam talhados no mais cândido alabastro; as mãos pequenas e melindrosas, uma machucava a cambraia rendada de um lenço de Valência, a outra brincava no regaço, alisando distraidamente os rofos do cetim.

Trazia gargantilha e pulseira de rubis; o cinto de veludo azul era broslado de ouro e cravejado de gemas preciosas; dois lindos diamantes engastados nos pingentes das arrecadas tremulavam suspensos à pontinha da orelha, como gotas de orvalho pendurando-se das pétalas de uma flor ou borbulhando nos lábios de uma concha nacarada.

Tinha a cabeça recostada no espaldo do coxim de veludo, e deixava os olhos vagarem incertos pela cena que se desdobrava em face, acompanhando o fluxo e refluxo da multidão alegre e pressurosa.

Eis que súbito rubor acende-lhe a cor mimosa das faces; e ligeiro estremecimento, de sensitiva que se arrufa, corre-lhe pelos ombros delicados.

As pálpebras cerraram; o sorriso que ia desabrochar fugiu dos lábios; a mãozinha buliçosa descaiu-lhe imóvel; a fronte inclinou timidamente; o seio ofegou, comprimido por uma sensação estranha.

Vira dois cavaleiros que atravessavam pelo fundo da praça; um deles fazendo estacar o fogoso ginete, procurava de longe com os olhos algum objeto querido; a donzela reconhecera Estácio, e foi presa do sentimento vago que se apodera da virgem na presença do homem amado.

Que sentimento é esse? Misto indefinível de pudor e vaidade, de inefáveis alegrias e misteriosos pressentimentos; vaga alternativa de receio e confiança, de inquietação e serenidade.

Estácio vestia saio e calças de cetim azul guarnecido de alvo torçal; as armas eram pretas com lavores dourados; o talabarte e cinto, de couro negro pespontado de branco com espiguilha de prata. Do capacete rematando em longo velilho flutuante sobre as ancas do animal, escapava-se a alva pluma que enroscando em volta do pescoço, ia beijar a face afogueada pelo sol; montava com elegância um soberbo cavalo negro, que estremecia de ardor e impaciência sob o freio coberto de espuma; na mão direita trazia a lança com manga de seda azul; na esquerda tinha passado o escudo sobre o qual via-se a letra: Amor vincit omnia.

O outro cavaleiro era Cristóvão; trajava, como seu amigo, roupas do mesmo molde e das mesmas cores. Cavalgava um ginete tordilho arreado com primor; sela coberta com teliz de veludo, e jaezes de aço tauxiado com frisos de ouro; na tarja via-se por timbre uma estrela brilhando entre nuvens em campo azul com a legenda latina: Me videt, ducit me.

Um instante Inesita, pálida e trêmula, esteve sob a influência magnética do olhar de Estácio, como sentindo aquele raio luminoso deslizar-lhe pelo rosto e abrasar-lhe as faces: até que as pálpebras ergueram-se a medo. De um volver ela viu o gesto de admiração ardente que se pintava no semblante do moço.

Ergueu a cabeça desvanecida: o sorriso de adoração, que adejava nos lábios de Estácio, acabava de refletir como um espelho sua beleza deslumbrante.

Seu olhar envolveu amorosamente as feições do moço em ondas de luz; depois fitou-se no escudo, e procurou decifrar com o coração, mais do que com o espírito, o enigma da divisa. Um quer que seja lhe dizia que ali havia uma palavra para ela; na impossibilidade de traduzir, soletrava decorando uma a uma as letras.

Nisto D. Diogo de Menezes, aproximando-se pela frente do pavilhão, tomou-lhe a vista. A menina, mau grado seu, não se pôde conter; deixou escapar um movimento de contrariedade tão vivo que fez o governador sorrir.

— Bem vejo que o sol queima a quem lhe faz sombra! disse D. Diogo motejando.

Inesita arrependeu-se da sua imprudência.

— Não é assim?

— Que sei eu! balbuciou ela confusa.

— Sabem esses lindos olhos, que me estão deitando quebranto, porque...

— Por quê?...

— Porque lhes roubei um olhar que andava enleado, Deus sabe onde.

— Oh! não! exclamou a donzela muito corada. Eu digo o que era.

— Algum guapo cavaleiro?

Estácio e Cristóvão tinham desaparecido na entrada da rua; Inesita, conseguindo encobrir sua perturbação, graças à inata dissimulação das mulheres, abanou a cabeça com um arzinho de malícia.

— Eram aquelas tenções dos escudos, que estavam me aborrecendo! disse ela meio arrufada.

— Ah! as divisas em latim!... exclamou o governador rindo.

— Não é mal feito escreverem numa língua que não se entende?

— Certo que parece falta de galanteria; mas assim usaram nossos pais.

— É que as damas então sabiam muito! replicou a moça.

— Menos que hoje, e os próprios cavaleiros mal soletravam essas palavras; isso porém não impedia que as trouxessem gravadas no coração, mais do que no escudo.

— Melhor fora que as compreendessem; o que se guarda no espírito vai-se; o que sentimos n'alma, fica para sempre.

— Oh! que as sentiam! Bebiam com o primeiro leite e só as perdiam com o último suspiro.

— Embora! Antes as queria na língua que falamos.

— Já vejo que vos enfada não poder entendê-las; não seja isso razão de quererdes mal aos nossos cavaleiros; em vindo eles vos traduzirei as letras dos seus escudos.

— Todas sem faltar uma? acudiu a menina contente.

— Desde a primeira até a última.

— Que bom é saber! disse Inesita sorrindo.

Os três juízes do campo, Álvaro de Carvalho, D. Francisco de Aguilar e Baltasar Ferraz, dirigiram-se ao governador pedindo-lhe vênia para começar a festa, e voltaram logo a ocupar seus lugares. Imediatamente tocaram de novo as charamelas e adufes, cujos sons se confundiram ao longe com o tropel dos cavalos.

Daí a instantes uma cavalgata brilhante e luzida apareceu no canto da rua, e fazendo sua entrada na liça deu volta à teia; saudou o governador e as damas com airosos meneios e giros das lanças, e foi colocar-se à direita.

Conduzia-a D. Fernando de Ataíde, que vinha ataviado com aprimorado luxo; vestia saio e calças de cetim carmesim acairelado de galão de ouro; de preto, com a longa pluma, eram os pespontes e orla do cinto e talim; armas brancas, lança com manga escarlate, e no escudo a letra — Voe qui percutiant illum!

D. José de Aguilar, irmão de Inesita, era o segundo; tanto ele como os outros cavaleiros em número de vinte trajavam irmãos; e do mesmo modo que Fernando, suas cores eram preto e escarlate.

Com pouco a segunda quadrilha, conduzida por Cristóvão, e composta também de vinte cavaleiros trajando azul e branco, entre os quais distinguia-se pelo seu garbo e gentileza Estácio Correia, assomou à entrada da liça e desfilando com igual solenidade, foi postar-se à esquerda.

Então Inesita impaciente olhou travessamente para o governador.

— Quereis lembrar-me que o prometido é devido! disse D. Diogo com amabilidade. Por onde começaremos?

— Pelo céu, respondeu Inesita sorrindo. Aquela estrela?

Era um disfarce inocente para não se trair perguntando pelo que mais a interessava; era também um meio de aproximar-se de seu fim, porque Estácio estava logo depois do amigo.

D. Diogo correu os olhos pelos cavaleiros.

— É de Cristóvão de Ávila?... Tem a letra: Ela me vê e me guia...

— Ah! que linda é! exclamou Inesita lembrando-se de Elvira.

— Não é menos a do outro cavaleiro que não conheço. Sabeis quem seja?

A menina enrubesceu e só pôde fazer um gesto negativo; porque a voz prendeu-se-lhe nos lábios.

— Tem um nobre parecer, continuou o fidalgo; sua divisa é o verso de um grande poeta romano.

— Mas a primeira palavra não é latim! acudiu Inesita com vivacidade.

— Tem as mesmas letras e o mesmo sentido: diverge porém na pronúncia; diz-se, ámor.

— Ora! Nas falas portuguesas é mais doce! respondeu a menina ingenuamente.

— E também nos corações portugueses! replicou o governador galanteando.

— E a significação do verso?

— Tendes razão. Ei-la: O amor tudo vence. Que vos parece? Não é gentil, e sobretudo verdadeira?

— Quem sabe! murmurou a donzela tornando-se melancólica de repente.

— Oh! lá está D. Fernando de Ataíde que traz um moto a fazer inveja aos mais esforçados lidadores dos tempos da cavalaria: Desgraçados dos que baterem no seu escudo.

Inesita sorriu com desdém.

— Vosso irmão é que foi lacônico: Ære! Disse muito em uma palavra: seu escudo é de bronze.

Esse mote do alferes era uma travessura inocente de Fr. Carlos da Luz, confessor da casa. Na dúbia significação daquela palavra latina tinha ele reunido as duas faces mais salientes do caráter de fidalgo: aere, fortaleza de bronze; oere, cupidez de moeda.

D. Diogo continuou a traduzir as divisas mais engenhosas dos diversos cavaleiros; esse doce entretenimento distraía seu espírito das graves preocupações que lhe trouxeram os importantes despachos chegados do reino naquela manhã.

Seu orgulho sofrera com a separação do governo do Sul; mas para não dar aos inimigos e sobretudo ao partido dos jesuítas o prazer de se regozijarem com sua mortificação, o fidalgo como hábil político tinha o semblante tão prazenteiro e risonho, que não parecia o mesmo homem de aspecto frio e severo.

Inesita já não prestava atenção a D. Diogo; tendo sabido o que desejava, seus olhos foram-se presos no semblante do moço e o espírito começou a revoar como falena ou silfo em torno das palavras escritas no escudo do cavaleiro.

Tênue sombra de melancolia anuviara o rosto mimoso; a frase entusiasta que Estácio pedira ao poeta para exprimir a energia de seu amor e a nobre ambição de sua alma, lhe acordara no coração um pensamento triste, antes acalentado com os murmúrios da festa.

De repente a menina estremeceu; notara o lugar em que se achava Estácio; observou que ele tinha de bater-se com seu irmão. Embora não passasse de um jogo o combate, apertou-se-lhe o coração com essa ideia. Ver assim em luta duas afeições, e não saber qual delas preferir, era cruel: desejava que o homem a quem amava vencesse, mas não queria seu irmão vencido.