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As Minas de Prata/I/VI

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O velho recolheu-se um instante.

Estácio comovido, preparava-se para escutá-lo.

— Estas famosas minas de prata do Brasil, que tanto mal têm feito, excitando a cobiça de uns e causando a desgraça de outros, fazendo que reis esqueçam seus povos e sacerdotes sua divina missão, foram achadas em 1587 por vosso avô, o Moribeca, de uma maneira que ainda hoje se ignora.

— Ah! não foi meu pai!

— Para não esquecer o lugar e direção em que demoravam, deixou no tronco das árvores em todo seu trajeto certos golpes que deviam orientá-lo em uma segunda jornada. Infelizmente não a pôde levar a cabo; enfermou quando ordenava os aprestos dela, e na hora derradeira chamou o filho e lhe comunicou sua descoberta.

Robério cuidou logo em fazer a jornada para aviventar os rumos e marcos apostos por vosso avô, antes que o tempo e os acidentes os destruíssem. Partiu quase escoteiro, seguindo as pegadas do pai e chegou ao lugar indicado.

— Quando isso? perguntou o moço.

— Em fins desse mesmo ano de 1587, ainda eu não estava no Brasil. Vosso pai, por prudência e para não dar rebate aos garimpeiros que o acompanhavam, saiu do rancho como para caçar. Seguindo as indicações, deu com a entrada da caverna; achou-se em uma longa crasta subterrânea; havia escuridão profunda; mas com pouco o luar enfiando pelas fendas da pedra, deu em cheio sobre aquelas paredes alvas e brilhantes; vosso pai admirado julgou ver um palácio encantado no qual o pórtico, a fachada, as colunas, tudo era de prata.

— E voltou carregado de riquezas?

— Não trouxe nem uma oitava de metal; seria revelar o segredo e expor as minas à ambição de todos que o acompanhavam, tanto mais quando de repente foi surpreendido pelas vozes de alguns que se aproximavam. Resistiu à tentação e voltou como fora. De volta à Bahia, caso de maravilhar, encontrou na voz do povo, e assoalhada por toda a cidade, a nova da descoberta. Disse-me Robério que atribuía esses boatos à muita cópia de prata em alfaias que vosso avô havia mercado, logo após sua chegada do sertão; e de feito, casa alguma rica da Bahia competia com a vossa, Estácio, em baixela e copa.

— Agora come-se nela em escudela de pau, e bebe-se em pichel de estanho!

— É a lei deste mundo, filho; devemos nos resignar. Vosso pai tivera o cuidado de substituir os primeiros sinais por outros de mais dura, bem como de escrever a rota da jornada de modo a poder em qualquer tempo ir com segurança e presteza às minas.

— Ah! é esse roteiro que D. Diogo de Mariz anuncia?... exclamou Estácio.

— Esperai! acudiu o licenciado interrompendo-o com brandura. Era o primeiro intento de Robério empreender por si mesmo a exploração das minas; mas os boatos que começaram de correr, como vos disse, o fizeram mudar de parecer.

— Foi então que passou às Espanhas?

— Sim; refletiu, e julgou que melhor era seguir rumo direito; embarcou-se para o reino; levava o roteiro dentro de uma bolsa de couro que nunca o deixava. Por infelicidade precedia-o a fama do que ia fazer; depois de oferecer o segredo das minas a Filipe II, que lhe prometeu de seu moto próprio o título de marquês, quando abriu a bolsa para entregar o manuscrito, não o achou; tinham-no roubado.

— Ah!... balbuciou Estácio cujos olhos brilharam de indignação.

— El-Rei, desconfiado como era, não conhecendo o caráter do homem que com ele tratava, suspeitou um embuste; voltou atrás; e proveu D. Francisco de Sousa no governo para vir ao descobrimento das minas, nomeando vosso pai simples administrador.

— Apesar de perdido o roteiro?

— Robério afirmou ao rei, que sua memória supriria o papel; e Filipe II receando que outrem lograsse o tesouro, tomou aquela resolução. Robério veio então para esta cidade esperar o governador, e aqui durante dezoito meses de estada tive eu a dita de conhecê-lo; um ano depois partia para não tornar, deixando a meu cuidado vossa mãe que vos trazia ainda no ventre.

— Terminai!... exclamou o moço.

— O resto sabeis: são as desgraças que enlutaram vosso berço, filho. Robério confiou demais da sua memória, na qual cinco anos de cuidados e tributações tinham apagado a reminiscência da primeira jornada; por fim, depois de esforços baldados, tido como falso e embusteiro, ele, a honradez em pessoa, foi preso de uma febre maligna, e finou-se no delírio que lhe mostrava ainda uma vez a visão daquela tarde, em que entrara nas minas. O Governador D. Francisco de Sousa dera conta a El-Rei do que passara, e sobre as cinzas ainda quentes de vosso pai executava-se a sentença de confiscação que vos reduziu à extrema pobreza.

O moço enxugou a lágrima que tremulou em seus olhos límpidos; e beijou com ternura e respeito filial as mãos secas do velho.

— Depois vós me servistes de pai, e quando, vai para cinco anos, minha mãe deixou-me para ir-se aonde a chamava seu esposo, fostes vós ainda que tomastes o lugar que ela ocupava neste mundo.

— Não falemos disto, disse o licenciado passando a manga pelos olhos; o passado é dos velhos, pequeno; aos mancebos deu Deus o futuro. Ele vos pertence; podeis realizar a obra de vosso pai. O papel de que fala esta carta é o roteiro de Robério; não pode ser outro.

— Assim, eu sou rico! disse o moço como acordando de um sonho.

— Rico é o menos; tendes em vossas mãos um grande poder; o ponto é saberdes usá-lo.

— Me guiareis com a vossa experiência; ensinareis a gozar da riqueza àquele a quem ensinastes a suportar a pobreza.

— Em tempo praticaremos sobre isso; hoje tendes o espírito todo empregado em folguedos e festas.

— É verdade! respondeu Estácio lembrando-se de Inesita; agora mal vos escutaria.

— Ide, ide, pequeno, onde vai o vosso pensamento; não vos demoro. Somente lembrai-vos que esta carta é mais que a vossa felicidade, é a reabilitação da memória de vosso pai.

— Não o esquecerei nunca, mestre.

— Guardai-a, e o segredo que ela encerra, como um arcano; tirai exemplo da desgraça de Robério.

— Não pode estar melhor do que em vossas mãos, respondeu o moço entregando-lhe o papel.

— Não, filho, um velho fraco e inerme, é má guarda de tesouro tamanho, a alma é impenetrável, mas o corpo facilmente se quebra. Sois moço e valente cavalheiro; a riqueza mudou-vos de repente a carreira; habituai-vos desde já a trazer a vossa fortuna, como a vossa honra, na ponta de vossa espada.

— Então vossos projetos?...

— A Providência acaba de destruí-los.

Mais estabelecidos das comoções por que tinham passado, o velho voltou ao seu almoço, e Estácio escondendo no seio o papel, dispôs-se a partir.

— Uma coisa porém me parece obscura ainda.

— Apontai-a, filho, que vo-la explicarei podendo.

— Por que esta carta que continha tão importante revelação estava ainda fechada com o fio preto que a selava? Por que nunca minha mãe falou-me dela? Quem a entregou?

— O escrito traz a data de 28 de setembro de 1604; que no mesmo dia partisse de São Sebastião, devia chegar aqui meado de outubro; vossa mãe já estava sacramentada; uma semana depois rezávamos por sua alma; a carta que lhe trouxeram ficou pois na caixinha onde guardava suas alfaias, tal como a tinham entregado. Quanto ao mensageiro, decerto algum colono que passou ao reino ou a esta capitania.

— E esse homem não devassaria o segredo? disse Estácio tomado de súbita inquietação.

— É claro que não, respondeu o licenciado com o acento da convicção.

— Como o afirmais?

— Se ele soubesse o conteúdo da carta, não a entregaria, e por si, ou por terceiro, se apresentaria a D. Diogo de Mariz para receber o papel.

— Tendes razão. E estais informado da pessoa que é esse D. Diogo?

— É o provedor-mor da Fazenda de São Sebastião; bom português, fidalgo às direitas, descendente da casa dos Marizes, uma das melhores do tempo do Senhor D. Afonso Henriques, que Deus tem. É filho de D. Antônio de Mariz, que prestou grandes serviços no governo do Sr. D. Antônio Salema, e há anos correu ter perecido às mãos do gentio aimoré.

— Julgais então que durante os quatro anos que passaram, ele tenha fielmente guardado o roteiro?

— Não conheceis um português, Estácio! Com esta sede de ouro que traz ao Brasil tantos aventureiros, os costumes dos nossos maiores se perderam; mas entre estes ainda há cavalheiros que sabem o que devem à sua honra e aos seus brios. D. Diogo de Mariz é um dos poucos dessa raça que lá se vai com o seu tempo; o roteiro, se o não roubaram, ainda está em seu poder e intato.

— Quando assentais que deva partir? perguntou o moço com certa vivacidade.

— Devagar, filho; depois trataremos disso. Festina lente.

A citação latina anunciou ao moço que Vaz Caminha ia apresentar-se sob um aspecto que já conhecemos.

Com efeito havia naquela exótica figura três homens diversos.

Um era o homem de sentimento e efusão, que só a Estácio se revelava nos momentos de intimidade: uma bela alma fechada num corpo grotesco; uma pérola fina escondida em casca rude e grosseira.

O outro era o homem do foro, o advogado seco e dogmático, inflexível no raciocínio, recheado de textos romanos, armado com o ergo formidável que acentuava as conclusões de sua lógica de aço; a necessidade de ganhar os meios de subsistência tinha criado essa personalidade, que sendo a menos verdadeira, era a que a todos se manifestava.

O terceiro homem, que havia dentro daquela organização raquítica, era o homem de talento, o autor ainda desconhecido de uma obra concebida e realizada durante muitos anos de trabalho e longas noites de insônia. Espírito vivendo no futuro, alimentado pelo fogo íntimo que queima lentamente, absorvido na gestação de um pensamento grande, ninguém o compreendia; a ninguém se revelava nessa última fase de sua vida. Era um mistério entre ele, a candeia que o alumiava e Deus que o encorajava.

Os três elementos dessa organização tinham constituído uma vida à parte; cada uma das fases da tríplice existência tinha seu órgão diverso e sua esfera distinta.

No primeiro homem funcionava o coração; no segundo a vontade; no terceiro a inteligência.

Pai espiritual e amigo pela necessidade de amar; advogado pela obrigação de se alimentar e socorrer sua irmã; autor pela febre d’alma que excita o espírito a criar alguma coisa, e deixar durante a rápida passagem neste mundo seu nome impresso e seu pensamento materializado em algum objeto.

Ora, Estácio amava seu mestre; mas respeitando o advogado, sentia uma certa dissonância entre seu caráter leal e a lógica forense que arma-se muitas vezes do sofisma para escurecer a verdade; por isso apenas Vaz Caminha anunciou com o primeiro texto latino que o jurisconsulto ia aparecer, o mancebo apertando-lhe a mão, partiu.

Ia seu caminho bem preocupado com os pensamentos que lhe suscitara a revelação de seu padrinho, e por isso não ouvia que o chamavam.

— Psiu!... Psiu!... Senhor cavalheiro!

Brásia corria após ele e o alcançou.

— Fazei a mercê de esperar, meu rico senhor!

— Que desejais, mulher?

— Certa dama que vos viu na missa está tão rendida de vosso gentil parecer, que ansiosamente deseja falar-vos um instante que seja.

Estácio ficou surpreso e passado; não era mancebo de aventuras; nunca as tivera, nem mesmo as sonhara. Ficou pois a olhar mui sério, para a aia, sem lhe ocorrer alguma resposta.

— Que lhe hei de eu levar à formosa dama, meu rico senhor?

— Dir-lhe-eis que este seu servo não merece seu agrado, e nem já se pertence, pois rendeu-se cativo de outros encantos, tornou Estácio gravemente.

A Brásia titubeou; mas logo espevitada acudiu:

— Mas, gentil namorado, não me entendestes ou eu não me expliquei assaz... Não sou correio de Cupido, que bem diversa é a incumbência que trago!... A dama, sabendo da vossa bizarria, quer valer-se dela, para seu amparo!

— Ah! então carece ela de mim?

— Pois que tão apressada me mandou...

— Onde a posso eu encontrar?

— Esta mesma noite de hoje, ao escurecer. Ficai parado no adro de Santa Luzia, olhando fito para as bandas do mar.

— Esta noite não poderei, pois devo estar no torneio.

— É verdade, mas em acabando ele?

— Lá estarei, se for por instantes, pois devo voltar para o sarau.

— Pois sim, disse a Brásia esgueirando-se.

Entretanto o legista terminava tranquilamente seu almoço, e se dispunha a sair de novo, quando o vultozinho da tia Euquéria assomou à porta.

— O pequeno já se foi, senhor licenciado? perguntou ela.

— Agora mesmo saiu; ainda não dobrou o canto. Por quê?

— É pena que se fosse; podia dar-me uma demão para cortar lá no horto um cachinho de bananas que estão a cair de maduras! Faz gosto ver!

— Pois Euquéria, disse Vaz com ar severo, é essa incumbência que quereis dar a um moço cavalheiro?

— Ai!... tal não me lembrou, Senhor Vaz; mas não leveis a mal, que me arrependo, e dos arrependidos é o reino do céu. Como ele foi quase criado aqui...

— Contudo já é um homem...

— Um rapaz, resmungou a velha; para homem ainda lhe falta muito. Porém as frutinhas? Ficam perdidas? Mete dó! Já estão sorvando!

— Não vos amofineis, Euquéria, há de se arranjar.

— Como, é que eu não sei, porque o cacho não é lá muito baixo, e nem vós mesmo, senhor licenciado, com serdes de boa altura, podeis deitar-lhe a mão.

Com efeito Vaz Caminha tinha mais meia polegada que a sua caseira.

— Talvez por aí venha logo mestre Bartolomeu, disse Vaz Caminha.

— Esse sim! Era um achado! Mas virá ele?

— É natural.

— Pois vou preparar meu tabuleiro para pô-las à seca. Não gostastes dessas passas que vos servi na colação?

— Não desgostei, não; estavam tenras.

— Sabem, assim assim, com os nossos figos de Arraiolos, não é verdade, Senhor Vaz? Se nós os tivéssemos cá? Que de anos não lhes tomo o gosto! Fazem bem pela Páscoa...

E a velhinha começou de fazer a conta.

O licenciado deixou-a nessa profunda elucubração; tomando o barrete e sua cana de Bengala, ganhou a rua e seguiu para as bandas do Colégio dos Jesuítas.