Saltar para o conteúdo

As Minas de Prata/I/VII

Wikisource, a biblioteca livre


A poucos passos de casa, o advogado encontrou o desembargador Baltazar Ferraz, seu antigo companheiro de viagem, que como ele, esperara debalde pela encantada Relação, e afinal se consolara de sua inércia forense nas lidas financeiras do cargo de provedor-mor da Fazenda.

O magistrado voltava de palácio, onde deixara o governador ocupado com a leitura dos despachos reservados que vinham do reino.

— Então, doctor, não foi ainda desta vez!... Nada de Relação.

— Virá quando Deus for servido, e El-Rei o ordenar, senhor desembargador. Quais novas do reino? Boas?

— Não sei, se boas, se más; sei que são importantes. El-Rei houve por bem dividir outra vez seu Estado do Brasil em dois governos, separando as capitanias do Sul.

— El-Rei terá razão de assim proceder, Senhor Baltasar Ferraz; mas não é menos certo que pouco avança, quem não segue rumo direito. Ainda em 1577 se uniam os dois governos, e já os dividem!

— Pensais com acerto, Doutor Vaz Caminha. Porém não pensam assim os vossos amigos, que tão certo como ser hoje quinta-feira, foram os motores disso.

— Falais dos padres, senhor desembargador?

— Falo dos da Companhia de Jesus, que bem conheceis.

Ubi effectus, ibi causa. Que interesse podem ter eles na divisão?

— O de vingar-se de D. Diogo de Menezes, pela audácia de lembrar-lhes o texto das Santas Escrituras. Os filhos de Jesus costumam esquecer que seu reino non est de hoc mundo.

— Estou que vos enganais, senhor provedor.

— O tempo vos abrirá os olhos, Senhor Vaz Caminha.

— Sabe-se já quem foi o provido no governo do Sul?

— D. Francisco de Sousa há muito o estava por carta régia de 2 de janeiro passado.

— D. Francisco de Sousa!... É o que veio há anos em cata das minas de prata de Robério Dias?

— O mesmo, e desta vez traz não só o provimento de governador, como a superintendência das minas, com regalia de conceder foro de fidalgo e hábitos nas três ordens, passando por morte a sucessão a seu filho, independente da confirmação de El-Rei.

— Julgais então que os padres da Companhia para humilhar D. Diogo de Menezes obtiveram tudo isto?

— É fora de dúvida. Quem, se não eles, obteriam prerrogativas, como governador algum ainda as teve?

O licenciado abanou a cabeça.

— Afora estas, não há outras novas?

— Conta o sargento-mor que os desembargadores nomeados ficavam a partir para virem instalar nesta cidade a nova Relação; mas tantas vezes nos tem chegado a mesma notícia, que já não há crer nela.

— Chegarão quando menos os esperarem. E passageiros? Muitos?

— Algumas famílias de Ilhéus para a colonização das terras, e um padre da Companhia.

— Só um? perguntou Vaz Caminha.

— Achais que são poucos os que já existem em sua casa do Terreiro? Orçam por noventa e tantos!

— Não é isso que me causou estranheza, senhor desembargador; poucos ou muitos, nada tenho com o número; é natural que onde sobra o trabalho das reduções e apostolados, mais se empenhem as forças da Companhia. Por outro motivo pareceu-me singular a vinda do padre.

— Por que, doutor? Não andam eles sempre de arribação?

— Sim; mas não se manda um soldado para aumentar a guarnição de uma praça, senhor provedor.

— O que se manda então?

— Manda-se um bom cabo de guerra para defendêla; ou um mensageiro para levar-lhe instruções superiores.

— É possível que assim aconteça. O que for soará, respondeu o provedor despedindo-se.

O licenciado continuou seu caminho refletindo sobre a conversa que tivera com o Desembargador Baltasar Ferraz.

Não era que o seu espírito andasse ocupado com as questões da governança da terra; em sua posição modesta e com seu gênio, nunca aspirara a fazer o papel de político; e até recusara em 1562 representar a vila de Arraiolos em Cortes, desviando de si os votos do Conselho, e fazendo nomear outro procurador.

Mas os homens de inteligência, habituados ao estudo e meditação, não se podem conservar indiferentes aos fatos de importância que passam sob seus olhos: embora não lhes interessem de perto, sentem eles a necessidade de os apreciar. A inteligência é ímã também; atrai o que entra em sua atmosfera.

Estranhava que o governo espanhol em vez de conservar a unidade da administração colonial, imagem da unidade da monarquia, voltasse ao antigo sistema da divisão que pouco havia fora condenado; não acreditava que uma simples vingançazinha dos jesuítas desse causa àquela mudança repentina e impolítica.

No meio dessas reflexões uma ideia passou-lhe de relance pelo espírito.

A lembrança da cena que há pouco tivera lugar em sua casa entre ele e Estácio; a coincidência de ser o novo Governador D. Francisco de Sousa, o mesmo que em 1591 viera com Robério Dias ao descobrimento das minas de prata; o fato da existência do roteiro que se julgava perdido; todas essas circunstâncias, apresentando-se de repente e conjuntas a um espírito sagaz e profundo como o seu, deviam impressionar.

A ambição insaciável dos reis de Espanha, os quais desde a descoberta do Novo Mundo, sugavam o sangue da América para arrancar do seio dessa terra o ouro e as pedras preciosas que a natureza aí depositara; o desejo de obter as famosas minas de prata, cuja abundância e riqueza a tradição popular havia engrandecido, explicariam perfeitamente a nova política e a nomeação de outro governador e superintendente.

Também não deixava de causar certo reparo ao nosso advogado a chegada do jesuíta, que naturalmente, como fizera sentir ao provedor, vinha incumbido de alguma missão importante; qual ela fosse, é o que ele não podia adivinhar. Isso o inquietava involuntariamente. Um quer que seja lhe fazia recear que o segredo de Estácio se achasse envolvido em todos esses acontecimentos.

— Cuidemos de sondar os ânimos! disse entre si.

Assim pensativo atravessava o doutor o Largo da Sé, quando lhe ocorreu a advertência da tia Euquéria, de que a sua provisão de vinho das Canárias já estava exausta, e pois carecia nova para o dia seguinte. Quebrou na primeira travessa em busca de uma taverna muito afreguesada, que havia ali perto, servida por um tal Brás Judengo.

A varanda da taverna ainda estava deserta e a porta cerrada; porém Vaz Caminha, como freguês antigo, penetrou no interior. Já ele vinha do fundo desenganado de encontrar viva alma com quem falasse, um murmúrio de vozes abafadas feriu-lhe o ouvido. O advogado sondou com o olhar os cantos escuros do aposento.

Viu no fundo uma fresta triangular interiormente esclarecida por uma candeia.

— Bom! pensou Vaz Caminha. Está justamente na adega.

De fato, a fresta dava para o vão subterrâneo de uma escada onde o bodegueiro havia construído a cava dos vinhos. Enfiando o olhar pela abertura, o advogado pôde ver e ouvir distintamente o que passava no interior.

Na estreita área ladrilhada, que formava o fundo da adega, estavam dois homens sentados em face de um e outro lado da quartola, cujo tampo lhes servia de mesa; outros barrilotes deitados faziam as vezes de tamboretes.

A candeia, colocada sobre um tijolo saliente da parede, projetava a luz de chapa sobre o meio perfil dos dois companheiros.

Um deles era um negro, moço e robusto, cuja tez escura refletia os raios da luz, como o lustro do jacarandá polido. Tinha a feição comprimida peculiar à sua raça: o olhar pesado e torvo; nos lábios grossos, o sorriso carnal da animalidade africana. Com os cotovelos apoiados sobre o arco da quartola acompanhava os movimentos do outro.

Era esse o taverneiro, o Brás Judengo, como o chamava o vulgo; homem de estatura meã, entre gordo e magro, de cabelo preto corrido e barba ruiva encarapinhada; espécie de ecletismo vivo no moral como no físico; alma anfíbia, habitando no vício tão bem como na virtude.

Não professava religião alguma, porém usava de todas: era ao mesmo tempo pelos padres da Companhia e pelos senhores de engenho, a favor e contra a liberdade dos índios; vivia bem com o alcaide e com os ratoneiros; acoutava negros fugidos e também os entregava aos donos quando lhe davam pingue espórtula.

Seu verdadeiro nome era Joaquim Brás; pelo menos assim foi dado o rol na Câmara, quando se tratara do assentamento dos moradores e vizinhos do Conselho. Desse nome usava ele sempre que traficava com os mercadores judeus. Neste caso pronunciava Baraz e escrevia Joakim com k em vez de q; isso dava à assinatura certo cheiro de velho testamento, bastante para conciliar a benevolência dos vendedores, e não tanto que comprometesse.

Se vivera nos tempos modernos, o Sr. Brás (Joaquim) ou Joakim Baraz faria um importante papel na política; e primaria sem dúvida entre os mestres de certa escola, que aceita todos os princípios e apoia todos os governos.

O Brás naquele momento acabava de riscar a giz sobre o chantel do barrilote diversos traços que figuravam a tosca planta do interior de um edifício.

— Pronto! exclamou ele largando o giz e enchendo na mesma quartola, que lhe servia de mesa, uma caneca de vinho.

E continuou, depois de beber:

— O dinheiro está por baixo do oratório, não é?

O negro acenou com a cabeça:

— Aqui, respondeu assentando a ponta do dedo sobre um dos traços de giz.

— Então, replicou o Brás, bem vês, Lucas, que tenho razão: é melhor cavar dentro da casa. Anda mais lesto e vai-se pela certa!

— Não! disse o negro com a palavra breve e decidida. Dentro não se pode; há de ser por fora.

— Mas vem cá, filho! Devagar, que é o meio de apressar.

O bodegueiro designou a planta.

— Se o oratório está aqui, temos que para lá chegar, carece atravessar a recâmera da dona. Ora, cavar tudo isto por baixo da terra, não é cavar um queijo do Alentejo.

— Gimbo muito! Paga a pena, retorquiu o negro.

— E a dona não há de ouvir, quando estiverem a cavar por baixo da cama dela?

— É não fazer barulho.

— Custa pouco a dizer: Beba, mas não engula! O som do ferro no chão, por força que se há de ouvir, filho de São Benedito!

— Pois a querer, é assim! disse o negro, que se ergueu resolutamente e bateu com a palma da mão no barrilote. Dentro da casa ninguém entra, que não deixo eu!

— Está bem! acudiu o bodegueiro, não vai a zangar. Tudo se arranja.

O advogado apenas teve tempo de ganhar a varanda, antes que os dois interlocutores assomassem no topo da escada subterrânea.

— Ó de casa! disse Vaz Caminha batendo com a bengala no ladrilho. Não há quem acuda aos fregueses?

— Já se vai! Já se vai! gritou o Judengo, supondo que batiam à porta da rua.

— Ora sejais bem aparecido, sô taverneiro! Tarde madrugais, para que vos Deus ajude.

— O senhor licenciado!... Cá dentro?... Por onde entrou sua mercê? exclamou o taverneiro arregalando os olhos.

— Não está má! Pela porta! Queríeis que entrasse pela janela?

— Mas se a porta estava fechada!

— Tanto não estava, que por ela entrei eu!

E como o Brás embatucasse, continuou o advogado rindo maliciosamente:

— A isto chama-se no digesto, mestre Brás, provar in continenti pela vista dos olhos, aspectu.

O bodegueiro disparatou afinal:

— Já sei! Foi aquele maldito que se pôs ao fresco e deixou-me às escâncaras, em risco de me limparem a casa!... Martim! Martim! Diabrete, filhote do demo, com perdão de sua mercê, senhor licenciado! Anda por aí de bródio! Não tem que ver!... Deixa estar, cão, que eu te guardarei boa pitança.

Quando o bodegueiro acabou de vociferar e acalmou o furor que o tomara por ver a porta aberta, Vaz Caminha apreçou o vinho e continuou seu itinerário. Mal tinha ele dado uns trinta passos na rua, o negro, que o seguira de longe, entregou-lhe uma carta.

Vinha na capa o seguinte endereço:

Para o Sr. Vaz Caminha, letrado da Bahia, que mora por detrás da Sé.

— Quem te manda? perguntou o advogado reconhecendo no portador o companheiro de Brás na adega.

— O papel diz, respondeu Lucas.

O advogado rompeu o selo, augurando mal daquela estranha missiva; a carta continha estas palavras:

Pessoa que tem razão de segredo, muito deseja aconselhar-se com o senhor licenciado. Não permitindo seu sexo e posição que o procure ela, pede para vir à sua casa esta mesma noite de hoje, depois do sino de recolher. Um escravo fiel acompanhará sua mercê.

— Senhor vai? perguntou Lucas, vendo o advogado dobrar lentamente o papel.

Vaz Caminha fitou os olhos vivos na face do negro; sentiu um ligeiro estremecimento, recordando a cena misteriosa da adega; não obstante respondeu com a voz clara, ainda que um tanto baixa:

— Irei, filho, irei!

— Depois do sino?

— Onde te encontrarei?

— Na bodega, respondeu Lucas.

— Aqui serei a ponto.

Não foi sem inquietação, sem medo, digamos francamente, que Vaz Caminha se meteu naquela arriscada aventura; porém o advogado tinha, em falta da coragem física, a coragem moral dos homens de vontade firme. De mais, que interesse havia em atentar contra sua vida, que a ninguém prejudicava?

Tomando pela Rua dos Mercadores, o licenciado foi sair no Terreiro, junto ao Colégio dos Jesuítas, vasto e belo edifício que ocupava uma das faces do largo, com a frente voltada para o nascente.

No meio do Terreiro via-se armada em vasto círculo uma paliçada, que abria para o lado do convento e rematava nos cantos com palanques alcatifados de rases e lambéis de cores vivas. Nas ruas próximas e no largo havia profusão de folhas aromáticas que serviam de tapete; as escadas e os estrados porém estavam cobertos de lindos panos de Flandres com vistosas ramagens.

Muitos oficiais mecânicos, carpinteiros e capelistas, trabalhavam ainda nos preparativos dos festejos da tarde; os primeiros erguiam as colunas e arcos que tinham de servir aos diversos jogos; os segundos pregavam as telas, e armavam sobre os assentos preparados para as damas os ligeiros toldos de tafetá, que deviam resguardar os formosos rostos dos raios do sol.

O licenciado deu uma vista indiferente àqueles trabalhos, e atravessando o Terreiro, entrou a larga portaria do convento, aberta pelo Irmão Bernardo, que se desfez em mesuras ao visitante.

Servus servorum!

— De Deus, de quem todos o somos, Irmão Bernardo. Como vai o vosso achaque?

— Sempre na mesma, senhor licenciado! Um cansaço... Ah!... que nem posso com este corpo.

O achaque do irmão porteiro era a preguiça, que ele diagnosticara — afrontação.

No rés do chão do edifício ficavam, de um lado as vastas salas do refeitório e a rouparia, do outro o pátio, nome que davam os jesuítas às aulas de latim e mais estudos menores; no fundo viam-se por entre as grades das janelas o horto e a grande cerca do convento, a qual ia ter ao mar.

Enquanto Vaz Caminha subia os primeiros degraus da escada de pedra, que conduzia aos aposentos superiores, assomou no topo a figura de um frade já quebrado pelos anos, o qual tendo visto pela janela entrar o advogado, fora cortesmente ao seu encontro.

Ave, doctor, semper amabilis! disse o jesuíta com a expressão da mais viva cordialidade.

Gratia vobis, pater provincialis, respondeu o legista com igual expressão.

E acabando de subir, apertou a mão que lhe estendia o Provincial Fernão Cardim.

— É de mister que Deus mande um dia de ano-bom, para que os seus servos possam ter-vos nesta sua casa.

— Tão poucas não são as festas do ano, padre provincial; e elas não passam sem me ver sentado à mesa deste convento, onde a vossa amizade me acolhe com verdadeiras mostras de bondade.

— Não é razão, carissime doctor, para nos privar de vossa companhia nos dias não santificados; se eu fora vosso confessor, vos daria essa penitência por algum pecadozinho que deveis ter cometido na mocidade.

— Não era preciso ir tão longe; hoje mesmo, padre provincial. Sou homem, e o salmista o disse: Homo, natus de muliere, repletur multis miseriis...

— Livre-nos Deus de ofender vossa modéstia. Mas passando a assunto profano, vindes disposto a jogar nossa partida do costume?

— Decerto, e por sinal que me deveis uma desforra da última vez. Preparastes um lance que me desorientou bastante.

— É verdade! respondeu o provincial, esfregando as mãos com visível satisfação. Avancei um peão defendido por um castelo; xaqueei o rei, e antes que pudésseis defender-vos, dei-vos o mate com o delfim!... Belo lance!... Tinha-o estudado.

— Também eu havia preparado um, mas tínheis o jogo tão cerrado, que me desfizestes todas as combinações.

— Deveras!... Não me havíeis dito tal.

— Pensais que fica-se de ânimo sereno, quando se perde uma partida de honra? Porque, se vos lembrais, era um desafio!...

— Lembro-me! Lembro-me!... exclamou o frade não cabendo em si de contente; fazei por tomar hoje a desforra.

— Neste propósito venho eu; e já vos advirto que custareis a levá-la!

— Melhor! Gosto da vitória disputada.

— A propósito, sabeis novas do reino? A Relação virá? perguntou o licenciado com um ar de perfeita ingenuidade.

— Breve deve estar por aí; já El-Rei tinha provido os desembargadores, respondeu o provincial não podendo esconder um sorriso. Quanto às novas, de grande monta são para este estado.

O jesuíta repetiu então o que Baltasar Ferraz já havia contado ao licenciado, sem contudo fazer nenhuma observação sobre as causas que tinham motivado a resolução de Filipe III.

— Quem não há de receber isso de rosto alegre sei eu, disse Vaz Caminha.

— O Senhor D. Diogo de Menezes!... Não se pode queixar senão de si!

— Ele mesmo o procurou com suas mãos!... E o novo governador veio na fragata? perguntou o advogado.

— Não; mas já deve estar em Pernambuco, de onde seguirá direito para o Rio de Janeiro.

— Então ninguém de vulto chegou?

— De vulto, não; chegou-nos um irmão que vem fazer residência nesta casa por ordem do Geral.

— Bem-vindo seja, que nesta terra de gentio nunca serão demais os missionários de Cristo. Pena é que fosse um somente, acrescentou o licenciado.

— Com o tempo virão outros, doutor, respondeu o provincial risonho. Mas entrai, entrai!...

Esta conversa tivera lugar no topo da escada, onde os dois velhos amigos se haviam encontrado.

Ao convite do jesuíta, Vaz Caminha o seguiu pelo corredor que dividia os dormitórios, e entraram ambos na biblioteca.

Esta parte do convento, uma das mais importantes depois da secretaria, estava colocada ao lado do sul; era uma vasta sala, com janelas rasgadas, das quais se gozava de uma vista admirável sobre o mar. Grandes estantes de livros cobriam as paredes de alto a baixo; no fundo pendia um grande retrato a óleo de Santo Inácio de Loiola, o fundador da Companhia; o artista espanhol que desenhara esse quadro tinha reproduzido com fino colorido a expressão sublime do soldado de Navarra, coberto com a roupeta do monge.

Ao longo da sala estava uma mesa comprida, carregada de instrumentos astronômicos e matemáticos, de tinteiros, livros e papéis; aí, sentados, diversos religiosos aproveitavam a manhã para realizarem os trabalhos de paciência e estudo, que são o mais precioso legado deixado por essa Ordem à civilização moderna.

Muitos copiavam manuscritos de história; outros traduziam em guarani as orações cristãs para uso dos indígenas; estes se entregavam a estudos de botânica e classificavam uma planta brasileira ainda desconhecida; aqueles tiravam a limpo suas observações astronômicas; alguns escreviam crônicas das religiões, ou cartas sobre o estado das reduções.

Quem visse esses homens, assim ocupados em marcarem com o selo de sua inteligência todos os conhecimentos, em ligar seu nome, não já à religião, mas à história, à geografia, à política, à filosofia e até às artes, não se admiraria que, unidos pelo mesmo pensamento e dirigidos por uma só vontade, houvessem criado a Ordem poderosa que, espalhando-se pelo mundo, dominou os tronos, curvou os reis, e lutou com os governos das nações mais fortes.

Um frade, que nesse momento entrou na sala, avistando o advogado, encaminhou-se logo a ele para o saudar. Vaz Caminha respondeu à cortesia com sinais de respeito e acatamento que não tivera, mesmo falando ao provincial.

Quem era pois esse jesuíta, e que elevado grau ocupava na Companhia?

Era o P. Inácio de Louriçal, um simples professo, de todo alheio aos negócios secretos, a que nenhuma importância ligava; e por isso o menos qualificado do grau. Mas bastava olhar aquele meigo semblante de velho, coroado de nívea auréola de cãs, para ver ali estampado o evangelho da bondade.

Quando passavam os outros professos, cujo voto pesava nos negócios da Companhia, a gente melhor desbarretava-se; para o P. Inácio ninguém se arredava, pois quase o não percebiam; mas o povo, que via esgueirar-se furtivamente o modesto frade encolhido na roupeta, murmurava baixinho: Santo homem!...

Vaz Caminha respeitava-o como a um príncipe da Igreja; e sempre que o via, beijava-lhe mau grado a manga do hábito, que o frade esforçava por esquivar.

— Então, doutor, o nosso estudante trocou hoje os estudos pelas gritas e torneios?...

— Bom é, P. Inácio, que conheça o mundo para saber o que abandona... Bem entendido... Se tal for seu gosto e vontade!

— Sem dúvida!... Pois o contrário seria fazer de um bom mancebo um mau padre. Não lhe parece, padre provincial?

Um sorriso fugiu pelos lábios finos de Fernão Cardim:

— Demos hoje sueto aos negócios em atenção ao dia que é.

A sineta tocou chamando a comunidade à refeição.

Era a ponto de meio-dia.

Quando Fernão Cardim e o licenciado iam descer a escada, o irmão despenseiro chegou-se a eles e dirigiu-se ao superior com o costumado respeito.

— O P. Gusmão de Molina pede a Vossa Reverendíssima, que o dispense por hoje de comparecer ao refeitório.

— O dia da chegada é sempre concedido ao repouso; dizei ao nosso irmão que se restabeleça das fadigas da travessia; melhor cumprirá depois os deveres do nosso Instituto.

Com pouco, a comunidade, rodeando a longa mesa de jantar, murmurava a prece do ritual.