As Minas de Prata/II/IX
Joaninha, depois de uma pausa, em que teve os olhos pregados no semblante da menina, começou assim a história dos confeitos encantados:
— “Foi um dia uma princesa, formosa como o sol, e que se chamava...”
Sorriu apontando para a donzela:
“Chamava-se Inesita; mas todos a conheciam por Flor de Beleza.
“El-Rei, seu pai, vendo que ela tinha chegado à idade de tomar esposo, e querendo com justa razão para tão gentil senhora o mais guapo cavalheiro que pelo mundo houvesse, mandou deitar bando, fazendo saber a todos os príncipes das partes d'além, que daria por prêmio de sua valentia a mão da filha àquele que sobre todos se avantajasse nos torneios que para esse fim se haviam de celebrar.
“Começou de chegar gente de todas as partes para assistir aos torneios, e os príncipes mais nobres e formosos da terra para neles pelejarem; porém de todos que já tinham chegado e dos que ainda vinham em caminho, nenhum era para se comparar com o gentil cavalheiro, que a sorte por aquele tempo, andando ele a correr mundo, levou à cidade.
“Só na véspera dos torneios aí entrou, e tão descuidado de seu coração, que ali mesmo o perdeu, ou lho arrebataram, como é mais certo, umas estrelas do céu. Foi o caso que nessa tarde subindo a princesa ao mirante, para refrescar da calma, e avistando aquele airoso mancebo que vinha ao galope de seu corcel negro, debruçou-se um instante para vê-lo; e então esses olhos assim como arrebataram o coração do cavalheiro, também foram punidos, porque trouxeram um filho, que chamam amores, e é espírito traiçoeiro, que embriaga muito.
“Assim rendidos um do outro, ficaram cuidando ambos, o cavalheiro, quem seria a tão formosa dama, encanto dos olhos e flor de graça; a princesa, se o gentil e galante cavalheiro seria algum dos príncipes que vinham disputá-la. Mas antes é de saber o nome do bravo cavalheiro. Chamava-se ele...
“Chamava-se Está...”
Aqui Joaninha interrompeu-se de repente, e voltando-se para as escravas que segredavam, fez gesto de silêncio:
— Psiu!... Assim falando não se pode contar.
— Calem-se daí! disse D. Ismênia muito interessada na história.
— Chamava-se pois Está... nislau!
O engenhoso trocadilho feito pela esperta alfeloeira foi tão habilmente executado na presteza do gesto e na acentuação da palavra, que o nome de Estácio vibrara distintamente primeiro ao ouvido, depois dentro d'alma de Inesita. Joaninha acertara no golpe; o efeito da palavra foi prodigioso. A moça estremeceu, como se despertasse; e erguendo a fronte, fitou os olhos inquietos no rosto brejeiro da alfeloeira. Esta sorriu-lhe; mas que sorrir! Misto indefinível de tantos sentimentos! Consolo e esperança, através do qual filtrava um raio de inteligente malícia. O coração da menina sentiu um bálsamo suave a embeber-se nele, ao mesmo tempo que um fluido desconhecido vazando-lhe dos olhos, comunicava com a sua a alma da rapariga.
Joaninha, sorrindo sempre, e sem tirar os olhos da donzela, prosseguiu sua história:
—“Chamava-se pois Esta...nislau, o cavalheiro que tão depressa se rendera aos encantos da princesa. Como foi dia, e a primeira claridade tingiu as nuvens do céu, ele mais que depressa revestiu as armas, e foi pôr os olhos não dormidos no mirante em que tivera a dita de ver quem por seu mal lá fora; porém a esse tempo estava a princesa toucando os lindos cabelos, para descer ao torneio. Acertou então de passar o arauto que andava pregoando o bando pela cidade, e tão de jeito, que percebendo o cavalheiro ser aquela sua dama a mesma Flor de Beleza de que aí se tratava, correu em busca de seu corcel, que deixara na pousada. Era o famoso corcel negro, mais ligeiro que o vento, mais bravo que um pelouro.
“Já tocam as alvoradas de charamelas e trombetas na entrada da carreira. Os cavalheiros estavam recolhidos às suas tendas. A gente da nobreza nos palanques, a do popular no terreiro. Chegou El-Rei, guiando pela mão a princesa sua filha. Foi um resplendor que alumiou a praça toda, quando Flor de Beleza apareceu. Parecia a rainha das fadas, se não era mais formosa. O vestido que trazia era azul e de muito primor; tinha no toucado tanta pedraria fina que cegava os olhos. A princesa cercou com os olhos a teia, e ficou triste porque não viu em nenhuma flâmula as cores do seu cavalheiro, que eram, escapou-me advertir, azul e branco.
“A um senho de El-Rei travaram-se as justas e pelejas, levando a todos de vencida um príncipe não mal parecido e afortunado de todos os bens. Mas ainda que ele era mui particular amigo e companheiro do irmão de Flor de Beleza, não tivera o dom de tocar-lhe no coração para outro reservado.”
— Qual nome tinha esse? perguntou Inesita.
— Tinha nome Fer... Não!... D. Cisnando!... D. Cisnando!
Inesita não pôde reprimir o sorriso. Agora escutava ela com sofreguidão a história dos confeitos encantados; pressentiu que sob o disfarce desse conto havia alguma coisa que lhe dizia respeito, a ela e a Estácio também; seu olhar impaciente crivava a mulatinha para apressar o desenlace. Mas esta que tinha de satisfazer a curiosidade da velha e ao mesmo tempo de adormecer a desconfiança das escravas enredeiras, com um gesto imperceptível acenou à menina que esperasse.
—Maldizia-se Flor de Beleza de sua desdita e do mau fado, que lhe pusera ante os olhos aquele gentil cavalheiro do mirante, só para seu maior mal, pois se o não vira e nesse ver não lhe fosse o coração cativo, não sentira agora tão cruel a sorte que a entregava a outro. “Mofina de mim!... Meus olhos vão ser duas fontes; minha boca uma gruta erma; meu peito uma urna de saudades”. No meio destas lástimas tão sentidas, e quando já o juiz do campo guiava o vencedor pela escadaria aos joelhos de El-Rei, de quem havia de receber o cumprimento da real promessa, a mão de Flor de Beleza...
“—Suspendei! gritam fora. E o clarim: — Tararara, tran; tararara, tran!... E o povo a correr; e as damas a se debruçarem nos camarins; e os olhos todos voltados para a entrada. Era um cavalheiro à desfilada pela praça adentro; montava corcel negro; eram negras as armas, sobre as cores azul e branco do traje. Flor de Beleza levou a mão ao coração que lhe fugia, e desmaiou de ventura; mas logo voltou a si, que esses desmaios de ventura são assim passageiros como um sopro.
“O cavalheiro estacou na entrada da carreira; e batendo com o conto da lança no chão que estremeceu, proclamou este desafio:
“— Ouvi-me todos. A mão da minha gentil princesa e senhora, celebrada por Flor de Beleza, que El-Rei, seu pai, prometeu dar ao mais valente campeão; essa mão, digo eu bem alto, não pode pertencer mais que a um só cavalheiro no mundo: aquele em quem ela pondo o seu carinho, deu forças para que a todos vencesse!
“— E esse quem seja, dizei-o! gritou D. Cisnando irado.
“— Aqui o tendes presente, para declarar em face, a quem se arroje ao contrário, que é um falso e aleivoso, indigno do nome de cavalheiro e das armas que traz!...
“— Pois digo-o eu, cavalheiro das armas pretas; que refalsado, aleivoso e cobarde, é aquele que ousa alçar os olhos onde não chega o seu ardimento.
“Os cavalheiros tomaram campo; e Flor de Beleza não tinha acabado de dizer Jesus, que já D. Cisnando era atirado de cambalhotas no chão com um só bote de lança, que lhe deu o airoso cavalheiro das armas negras. Declarado este vencedor, foi ajoelhar aos pés de El-Rei; mas no momento em que já recebia o prêmio, o príncipe, que estava mortificado de ver o amigo vencido, adiantou-se para o estrado do pai:
“— Saberá Vossa Real Majestade, que tenho razões de muita gravidade a opor.
“— Diga o príncipe, que o escuta seu rei e pai.
“— É o caso, que se não há duvidar da gentileza o valentia do cavalheiro das armas negras, aqui presente, outro tanto não sucede com a nobreza de raça e nome. Pois não tendo chegado em tempo e nem dado seus apelidos, é de todos desconhecido, e assim como pode ser bem-nascido, segundo penso, pode também não estar na altura de pretender a mão de tão formosa princesa, filha do mais poderoso rei da terra.
“— Discorreis, príncipe, com muito acerto; e folgo de ver que já nessa idade sois homem de conselho.
“Voltando-se para o cavalheiro, perguntou-lhe:
“— Sois de sangue real, cavalheiro, e de que terras?
“O mancebo enfiou com a pergunta, pois sua fidalguia não passava de cavalheiro, embora seus feitos fossem de imperador. O que sabendo El-Rei, o despachou mui descortesmente, declarando-lhe que sua filha não era para ser merecida senão por quem fosse pelo menos filho e neto de rei. Retirou-se então a corte; Flor de Beleza entrou em palácio com o coração cortado; e logo subiu ao mirante, para ver o lugar onde um momento fora feliz.
“Entanto o infante, penado com a derrota do amigo, como era valente, brioso e soberbo, foi-se dali ao Cavalheiro Estanislau, e atirou-lhe um desafio, para desafronta de haver ele, simples aventureiro, alçado a vista para sua irmã Flor de Beleza. Emprazaram-se para o romper da manhã, num sítio próximo da cidade; e o cavalheiro recolheu mui contente de si, ainda que triste do sucesso, todo esperançado no bem querer da princesa, porque ele sabia que amor nada há que não vença. Abalo algum lhe dava o desafio do infante, tão certo estava de que o desarmaria sem ofensa, pois a sua gentileza nas armas era ainda para maiores coisas.”
Inesita estremecera outra vez no lance do desafio; e pálida e ansiada, ficara sem respiro, enlevada dos lábios travessos da Joaninha, que vendo este afogo, disfarçara com os balaios, empurrando-os da beira da banca onde se achavam e dizendo como se falasse com eles:
— Sentido daí, senão, senão!...
Advertida, a moça dissimulou, e Joaninha ia continuar, quando na porta fronteira da entrada ouviu-se o sonsonete pausado e pachorrento de uma voz sonora:
— Licença para o capelão da casa!
Encheu o vão da porta o toro nédio e rochonchudo de um frade, abaixo do regular. Pelo bem cevado da papada e cachaço, mais que pelo grosso burel cor de vinho, divulgava o recém-chegado a regra de sua observância; era sem dúvida a melhor amostra do frade bento, tal como o conheceram ainda nossos avós. Fisionomia beática, olhos espertos e folgazões, mansuetude do gesto, palavra insinuante, era o que logo inculcava o aspecto do religioso.
— Entre, Frei Carlos da Luz, nesta sua casa.
Depois de informar-se da saúde espiritual e corporal da dona e filha, e dar sua bênção às escravas, pajens e crias, o religioso acomodou-se numa poltrona ao lado de D. Ismênia, e enterrando o pescoço no gordo toutiço, esperou que advertissem a D. Francisco de Aguilar da sua visita. Entretanto os olhinhos cerrados com o peso das grossas pálpebras, viam pela estreita fresta quanto passava no aposento.
À entrada do frade, Inesita mordera os lábios de despeito, e Joaninha não se pôde conter que não lhe atirasse por detrás um momo, que fez sorrir a D. Ismênia. A dona tinha suas razões para não agasalhar muito o beneditino, que em compensação, protegido pela parte masculina da casa, ia seu caminho sem dar-se por achado. Assim mal respondeu às primeiras saudações, a dona logo voltando-se para a mulatinha, disse-lhe:
— Vai por diante, moça. Gosto da história: já li coisa parecida, que muito me deleitou.
A mulatinha não se fez rogar.
— Onde fiquei eu? perguntou Joaninha.
— No desafio do infante.
— Sim. Era para o romper da manhã, e o cavalheiro estava muito descansado de seu. Mas o Tinhoso as tece a seu jeito. Saberá agora que o infante tinha um feiticeiro...
Neste ponto a travessa mulatinha com um trejeito dos lábios e um esgar dos olhos designou o rochonchudo frade:
— Com que o infante tinha um feiticeiro que era uma bola de gordo e roncava como um porco, cujo feiticeiro corria fama ser forte nas artes da mágica preta. Foi-se a ele o infante, e pediu-lhe que arranjasse modos de sair vencedor do combate com o cavalheiro. Que havia de responder o bruxo?... “Esse cavalheiro, ilustre infante, tem em si uma grande força que o faz invencíbil, como Sansão; mas essa força não traz ele nos cabelos como o outro, senão dentro do coração. É o contentamento de sentir-se querido de Flor de Beleza.”
“Como o infante saía descoroçoado, o bruxo tornou-lhe, que não obstante pelos seus feitiços podia tirar aquele contentamento d'alma do cavalheiro, se lhe desse o infante vinho velho e boa papança. Prometeu o príncipe, e o bruxo tomando a vara de condão, gritou: — “Por artes de berliques e berloques, e por esta vara de condão, mando-te, gênio, que me obedeces, que entres no corpo do Cavalheiro Estanislau, e lhe faças ver o que a mim aprouver.” Logo sentiu-se um cheiro de enxofre, e depois uma fumaça que saía pela janela: era o gênio que se foi meter no corpo do mísero cavalheiro, o qual desde aí viveu em sonho.
“E aconteceu que nesse sonho mau ele viu um sarau, e nele Flor de Beleza mui contente e satisfeita a escutar as falas de D. Cisnando; e ouviu muitas vozes que diziam ao seu ouvido que a princesa estava de todo rendida aos afetos do príncipe, e olvidara seu cavalheiro fiel e a prenda com que o prendara.”
— Qual prenda? inquiriu D. Ismênia.
— Pois eu não disse que Flor de Beleza na justa atara seu lenço à lança do vencedor? Disse. Ora, quando o sonho passou, o cavalheiro ficou-se crente no que vira e ouvira, como se acordado estivera; e sentiu que a vida se despedia dele com tão cruel desengano.
Nesse ponto da história entrou D. Francisco de Aguilar, que acudia à visita do frade; e logo começaram ali uma prática em meia voz. Inesita pendera a fronte sobre a tela do bordado, e uma lágrima, que a seu pesar estalou dos olhos, rolou como aljôfar pelo cetim verde.
— Anda, rapariga.
— Aguardou o cavalheiro o desafio com tenção feita; e essa foi de pôr sobre o coração a prenda que lhe dera Flor de Beleza, e enfiar-se por aí na espada do infante e cair dela trespassado.
Inesita soltou um grito de horror; mas Joaninha que já contava com ele, estava preparada. De um revés da mão atirara um dos seus balaios de cima da banquinha ao chão, e tal escarcéu fez e tal rumor de susto e risada para apanhá-lo, que ninguém se apercebeu do ânsia e pavor da donzela.
— A pensar assim, foi o cavalheiro lá consigo dizendo: “Morrerei nela, dela e por ela. Nela porque esqueceu este triste; dela porque virá o golpe de quem tão conjunto lhe é; por ela, a fim de não magoá-la com a memória de sua inconstância”. E chamou seu pajem e disse-lhe: “Pajem fiel, quando me vires trespassado, levarás esta prenda a Flor de Beleza, e lhe dirás que o sangue de que vai tinto lave-o com as lágrimas que derramaria por seu irmão; pois são o resgate delas.”
“Durante que estas coisas passavam, Flor de Beleza, triste sim, mas não suspeita dos perigos que ameaçavam seu gentil cavalheiro, bordava no seu mirante uns lavores mui lindos, que eram um primor de agulha. Quis então sua estrela que aparecesse à porta do palácio uma velha, mui velhinha, com um balaio como este, cheio de confeitos para vender, pedindo que a levassem à presença de Flor de Beleza. Mas era a velha tão horrenda, que não lhe consentiriam, mesmo quando o recato da princesa permitisse ver gente estranha. O mais que fizeram foi levar o balaio dos confeitos à princesa, a ver se agradavam a seu real prazer.
“E sucedeu um caso pelo qual logo se viu que eram encantados os confeitos e foi que o pajem que os levava, de caminho, querendo meter o gadanho para filar alguns, achou-os em brasa; e gritou por tal forma que ali acudiu El-Rei, a rainha e todos os grandes do palácio. Informado o caso, riram do pajem, porque não havia brasas, senão confeitos muito claros na cestinha; porém maior foi o pasmo quando sentiram também chamuscada a ponta dos dedos, assim como quiseram tocar-lhes. Só Flor de Beleza achou-os frios e tão apetitosos, que o mesmo era tocá-los que sentir-lhes o sabor.
“Aí foi o encanto e a maravilha; porque mal que os confeitos se derreteram na linda boca da princesa, logo pelo efeito da cor, seus olhos tornaram-se tão claros que viram além o cavalheiro lastimando-se, e leram o que ele tinha n'alma. Caminhando até a janela, como se chegasse perto dele, soltou mui de mansinho estas falas: “Esposo meu, vivei e nesta fé que ora vos juro, que se vossa não for, de mais ninguém”. E pela virtude da doçura grande dos confeitos estas vozes derramaram-se por aí a fora nos ares como uns favos de mel, e foram cair no coração do cavalheiro.
“Assim foi quebrado o encanto do bruxo; porque restituído o cavalheiro ao contentamento de ser querido por Flor de Beleza, e à sua valentia, soube tão bem defender sua vida sem ofensa do infante, que ganhou-lhe a generosidade. E El-Rei a quem foi levado o caso, conhecendo quanto sua filha amava o esforçado cavalheiro e quanta razão tinha para isso, o agasalhou muito na sua corte e com o tempo deu-lhe a mão de Flor de Beleza. Houve grandes festas, e um banquete como nunca se viu. E assim acabou a história, e manda El-Rei, nosso senhor, que me compre a dona os confeitos encantados.”
— Dá cá o balaio! disse a dona acenando a Joaninha que lho pusesse ao colo. Quando tornares, hás de contar-me outra bonita como esta. Ouves, moça?
— Dona, sim.
Se a história agradara a D. Ismênia, a Inesita a pusera numa terrível perplexidade. Compreendera perfeitamente o engenhoso disfarce com que a mulatinha lhe dera conta do que era passado e do que podia suceder a Estácio, se o não salvasse ela com uma palavra semelhante à que proferira da janela Flor de Beleza. Tinha a morte n'alma; e por mais esforços que fizesse não acabaria consigo de resolver-se. O amor de uma parte, o respeito filial da outra, sem contar o recato e a timidez, partiam sua vontade.
E o tempo corria; Joaninha debruçada sobre a banquinha esperava debalde uma palavra.
Inesita ia talvez proferi-la, quando seu irmão entrou e veio justamente sentar-se ao lado dela. A menina fez-se lívida, e presa de terror se concentrou tão completamente no bordado, que parecia debuxada com ele. O alferes encontrando ali, com mostras de tanta entrada na casa e família, a mulatinha, rugara o espesso sobrolho. D. José não era esperto; mas em extremo desconfiado. Ora, uma das coisas que mais o apoquentara na véspera, descobrindo os amores de Estácio com Inesita, era o modo por que nascera esse afeto e crescera. Notara entre ambos os amantes uma certa inteligência, e incapaz de compreender, como de sentir, a sublime delicadeza de um amor puro e elevado, entendera que por força houvera entre eles falas ou recados; isto o admirava, pela educação que recebera sua irmã. Achando ali a mulatinha, logo uma suspeita o assaltou, que fosse ela a mensageira dos ocultos amores; e pôs-se alerta.
Joaninha também de seu lado vendo entrar o alferes, embaçou temendo nada mais conseguir, não tanto por ela, como pelo estado em que ficara a donzela; mas a mulatinha era fértil em recursos, e de uma tenacidade invencível. Seu amor-próprio ali estava empenhado:
— Bem-vindo é o senhor alferes, para mercar um dos meus lindos abanos?... Qual será?...
— Nenhum, respondeu o moço rispidamente. Quando quiser vento, montarei meu cavalo e irei até a Barra, onde o há de sobra. Não careço desse sestro de namorados.
— Ui, gente!... Se fosse algum velho judeu que mercasse os meus abanilhos, aposto que o senhor alferes não enjeitaria, mas como é a pobre da mulatinha que a ninguém tem por si, nem parentes amparados, nem filha formosa!...
— Que dizes tu, alfeloeira? perguntou o alferes voltando-se.
— Nada, senão que inda agorinha, em passando Rua da Palma abaixo para vir aqui, uma doninha mui graciosa que estava à rótula com os olhos no caminho, mercou-me um dos meus abanos.
— Na Rua da Palma?... perguntou o alferes que enrubesceu repuxando os bigodes.
— E mais ela não tinha sestro de namorada. Certo é que muitos não têm o sestro, que lhes têm as manhas; e pelo jeito de umas perguntinhas que eu cá sei...
A mulatinha apontoou esta reticência com um sorriso dos mais brejeiros. O alferes lançou à direita e à esquerda um olhar para ver se alguém o observava; em seguida fez à alfeloeira um gesto que ela traduziu como um emprazamento para continuação da conversa fora da casa, e simulou não compreender.
— Então o senhor alferes não me compra mesmo um abanilho?... Tão lindos que são!
— Para mimo de alguma dama, não digo que não! Mostrai-os cá.
— Nenhum como este, fiai de mim; já pelo bem tecido, já pelo bem combinado dos matizes. Olhe a doninha; não lhe parece muito lindo?
Inesita volveu o olhar, que logo retirou para absorver-se toda no trabalho.
— Pensais então que seja este o que mais agrade a uma dama de bom-gosto?
— Por sem dúvida! Demais este abanilho tem uma virtude!... Um encantamento, o qual é, quando seu dono dele abanar-se nas horas de maior calma, como as três, logo faz aparecer diante dos olhos a pessoa que tiver no pensamento. Veja a doninha como é feiticeiro!...
O alferes sorriu. Inesita estremecera, e a fronte vibrando pareceu acenar uma negativa enérgica. Joaninha mordeu os beiços, resolvida de uma vez a acabar com essa timidez. O ensejo não tardou.
— Tudo acreditara eu de um abano, acudira o alferes chasqueando; menos que servisse de chamar a gente.
— Mas se é sua virtude mágica essa!...
— Embora, a mágica não anda tão avessa do que é, pois sempre ouvi, que para o dinheiro dão as fadas uma bolsa encantada, para a comida uma toalha de mesa, e assim o mais.
— Ora!... fez a mulatinha com um muxoxo. Nas mãos de quem sabe, tudo serve não só para o que é feito, mas para o que se deseja.
A voz de Joaninha tomou um tom vibrante:
— A prata foi feita para gastar-se, e tantos que a aferrolham. O agrado mandou Deus que fosse dado de coração, e não falta quem o merque. E para não ir mais longe, essa espada que aí tendes à cinta, senhor alferes, é ferro de talhar, o que não vos impedirá de amanhã, quem sabe, coser a estocadas o peito de vosso inimigo!... Também aquela agulha, que ali tem a doninha, é ferro de bordar, e quem quisesse escreveria com ela. Mas tudo isto é nada, pois com esta palha que aqui vedes, querendo eu, vos farei uma bilha como a que levou Raquel à fonte onde a encontrou Jacó!
O engenho com que a mulatinha meneou o seu jogo era coisa de embasbacar o mais mitrado jesuíta. Depois de algumas palavras alusivas ao amor de Inesita, ela atirou à menina certeiro bote, ameaçando-a com a morte do amante pelo irmão; logo sob o atordoamento dessa ideia, espertou-lhe no espírito embotado pelo desânimo um meio de fazer chegar a Estácio a palavra salvadora; finalmente para evitar que a atenção do alferes se demorasse naquela lembrança da agulha, lançou-lhe o nome, cujo ela sabia ser o efeito mágico.
Nesse instante Fr. Carlos da Luz, deixando a prática de D. Francisco, achegou-se ao alferes e disse-lhe à puridade:
— Gente de terreiro, amigo D. José, nunca se deve deixar que penetre tão dentro das casas de bem!
O alferes fez um sinal de aquiescência, e cedendo ao mesmo tempo a outro pensamento oculto, disse para a mulatinha:
— Bem, alfeloeira; segui vosso caminho; à porta recebereis a paga de vosso abanilho. Mandar-vo-la-ei pelo pajem.
— Senhor, sim!
Então Joaninha, fingindo que arranjava os balaios para sair, começou com D. Ismênia uma tal e tão longa ladainha, que foi um Deus nos acuda. A língua da alfeloeira movia-se com rapidez igual à de suas mãos sutis; ela se erguia e ajoelhava outra vez; cobria e descobria os balaios; parecia realmente mordida de uma tarântula. Nunca se viu uma garrulice semelhante!
Inesita bordava agora com sofreguidão. Seu irmão se erguera, e esperando a saída de Joaninha, abaixara os olhos para o tear:
— Esta é a faixa que me destinais de mimo, D. Inesita? Que lhe pondes aí?
Foi lívida como um lençol e com a voz sumida que a menina respondeu:
— Bordo a tenção!...
— Qual ela é?...
Interveio Joaninha que estava alerta:
— Tendes já o vosso abanilho, senhor alferes? Mas não! Vos enganastes; outro é! Há de estar aqui entre estes.
Assim falando, a mulatinha fez um estenderete de abanos sobre o tear de Inesita; insinuou-se ligeiramente entre a menina e o irmão; e deu de rosto a este que se fosse. Como hesitasse ele, se sairia, a alfeloeira debruçou-se no tear e recolheu de novo os seus abanos, não sem primeiro os passar de uma a outra banda, de modo a cobrir inteiramente o bordado.
Inesita a olhava estática.
Enfim depois de muita mesura, Joaninha saiu; e no corredor escondeu ao seio o escudo de seda verde que Inesita bordava. Com pouco veio o alferes à porta.
— Tende-vos aí um instante, enquanto levo à vossa irmã sua agulha que veio na minha toalha!...
— Deixai que lha darei.
— Deveras! para que digam que me seguistes!
— És fina, alfeloeira!
— Mais sois vós, senhor alferes. Aposto que passaríeis pelo fundo desta agulha! Que o digam as seteiras da Rua da Palma!
— Rapariga, olha esta língua!
Joaninha voltou à casa de jantar, em tão boa hora que D. Francisco conversava com sua mulher e o frade. A pretexto de restituir à moça a agulha, ela pôde segredar-lhe:
— Não lhe mandais nada mais?...
— Estou prometida, por meu pai a D. Fernando, por meu fado à terra fria. Dizei-lhe isto, e acrescentai que lhe rogo viva por mim, já que Deus não quer que o seja para mim.
Murmurou estas palavras com os olhos rasos de pranto. Joaninha sumiu-se temendo que o percebessem.