As Minas de Prata/II/VI
É tempo de tornar à cidade do Salvador, onde o nosso bom e velho amigo, o Doutor Vaz Caminha, refocila ainda no modesto catre, bem que alto já vai o sol.
De instante a instante a engelhadinha da Euquéria vem pé ante pé escutar à porta da camarinha. Ouvindo o calmo resfolgo da respiração subtil, torna de manso para não perturbar o somno de passarinho do bom do amo seu.
Quem soubesse do tarde que recolhera o advogado e do resfriado que vinha com o chuvisqueiro da noite, não estranhara uma tal inversão nos seus habitos madrugadores. Desde que estava no Brasil, não passara o letrado de Arrayollos outra noite de tributações, como essa tão aziaga que lhe trouxera de janeiras, o anno da graça de 1609.
Si bem nos lembramos, ficou o doutor na casa mysteriosa, onde cortezmente o recebera a formosa dona. Esta depois que o saudou, lhe indicara uma cadeira de espaldar, que estava fronteira. Junto ao cochim havia sobre o velador de charão, obra da India, uma bolsa cheia de ouro, posta em salva de prata.
Desculpai-me o desarranjo que vos causei, meu senhor, e a mesquinhez da recompensa. Outra de mais valia vos guardarei eternamente no meu coração pela generosidade que houveste com uma desconhecida.
Ao proferir destas palavras com a voz tremula e um ligeiro accento castelhano, a dona tomára a salva do velador, e á pouco e pouco resvallando
Iluminava a fronte da bela senhora um reflexo vivo das paixões sublimes. Mas passou. Foi trêmula e receosa que ela dirigiu de novo a palavra ao advogado pensativo:
— Dizei-me pois, sr. doutor, se as leis dos homens me dão o direito de arrancar meu esposo e meu único bem aos votos que mo roubaram!... Porque senão, se justiça não há no céu que cansei de implorar, e na terra onde só tenho penado... Pois bem, eu me farei justiça por minhas mãos...
— Qual é o vosso intento, senhora?
— Meu intento... meu intento... Sei-o eu?... Reaver o que perdi... Sim; ainda que para isso seja preciso armar os maus contra os bons... profanar a casa do Senhor... Que importa!... Contanto que me restituam meu esposo... Irei de convento em convento, de portaria em portaria mendigar novas dele... Hei de encontrá-lo, e então...
— Basta, Dona Dulce! Bem vos dizia eu que vossa generosa retribuição era demasiada para o ofício do humilde letrado... Esqueci avisar-vos que fora nenhuma para o seu dever. Aqui vo-la deixo!
Vaz Caminha ergueu-se, deitando a bolsa sobre a banca:
— Em que vos ofendi eu? exclamou a dama travando-lhe das mãos.
— Vim ao vosso chamado para aconselhar-vos, não para vos dirigir no caminho do mal. Meu ministério, senhora, é da justiça e não das paixões, da lei e não da vingança!
A dama respondeu com uma nobreza repassada de profunda mágoa:
— Nunca sofrestes dores, como as que tenho aqui neste coração transido, senhor doutor; senão seríeis indulgente para estes desvarios, que me pungem mais a mim que a vós mesmo. Já vos não detenho; destes-me a última prova dos homens. Se dos nimiamente bons, como sois, recebo tão duras palavras, que esperar dos outros?...
— Senhora, mercê! Fui descortês, confesso minha culpa; não veio ela d'alma, senão da profissão que não me costumou a fazer salas. Vou satisfazer-vos no que de mim exigis.
— Ah! exclamou a dama. Falai!...
— As leis dos homens nada podem no vosso caso; mas podem tudo as leis divinas. Em Roma, aos pés de Sua Santidade, está o remédio à vossa desdita; porque lá está aquele a quem Deus disse: Quodcumque alligaveris super terram...
O advogado citava o texto, mas calou-se, advertindo que falava a uma dama. Emendou a mão:
— A quem Deus disse: “Quanto ligardes na terra, será ligado no céu; e quanto na terra solverdes, soluto estará no céu”.
Dulce ergueu as mãos súplices, exaltando ao céu sua alma arroubada num olhar de infinita gratidão. Depois esse mesmo olhar desceu a embeber-se no rosto pálido e mirrado do velho.
— Obrigada, senhor doutor! Salvastes-me de um grande pecado, dando remédio à minha dor!...
— Já não haveis mister de mim, Dona Dulce? perguntou o advogado.
— Hoje não: basta a esperança que me deixais. Outro dia próximo, terei necessidade de praticar convosco mais compridamente.
— Enviai-me aviso. Agora é tarde, dai que me recolha.
O doutor levantou-se para despedir-se:
— Antes que me retire, uma palavra.
O velho tomou galantemente a mão da dama, e conduzindo-a até o meio da sala, abaixou a voz para dizer-lhe:
— Pedistes-me um conselho, senhora; quero eu dar-vos um que não me pedistes.
— Mais por isso o agradecerei.
— Guardai melhor vosso ouro, e fiai menos de escravos. A terra esconde bem, é verdade, porém não há chave nem ferrolho que a feche, pelo que abre-se em qualquer parte.
— Deste lado estou segura. O segredo só eu o sei.
— Cuidais isso? E se vos eu disser que o tesouro está enterrado ali, no oratório...
— Quem vo-lo revelou?... perguntou Dulce espavorida.
— E que a esta hora estão abrindo uma mina por baixo da vossa recâmera pela qual se há de escoar o vosso ouro?
— Deus meu! Como sabeis tudo isto? Quem pode ter maquinado uma maldade igual, a não ser a gente maldita, que veio ao mundo para meu mal!...
— Não paguem inocentes por pecadores. Aplicai o sentido; não ouvis um bater surdo que vem do chão?
— Sim, agora ouço! Vem dali!
— Pois são eles que cavam.
— Eles quem?
— Disse-vos quanto é preciso para que vos acauteleis. O mais, crede-me, não aproveitaria ao vosso cabedal, e menos ao vosso sossego.
Nesse momento ouviram uma serenata de alguém que parava junto à cerca; o rumor cessou; momentos depois farfalharam as folhas do arvoredo. Vaz Caminha abrindo na janela uma estreita fresta, mostrou à dama seis indivíduos que surdiam a um e um do outão da casa e sumiam-se nas trevas.
— Bem longe me supunha eu de mais esse cuidado, para o qual confesso que já não me sobram espíritos, tanto os tenho, e tão inteiramente empregados, em mais alto pensamento. Se me não valeis ainda desta vez com o vosso conselho, não sei o que vai ser de mim.
— Não é caso de esmorecer, ainda que demanda grande tino, muita prudência, e mais que tudo, segredo inviolável. Tendes pessoa de quem fieis tanto como de vós mesma?
— Ninguém tinha ontem, tal era meu desamparo, mais que um escravo fiel, o mesmo que vos guiou. Agora vos tenho a vós.
Vaz Caminha conservara-se impassível quando Dulce referiu-se ao negro, e correspondeu com uma reverência à prova de confiança da senhora.
— Enquanto ao escravo, digo-vos eu, senhora, com os meus sessenta e seis anos, que o bom tem a fidelidade do cão: descobre o dono farejando-lhe o rastro e o denuncia ladrando para festejá-lo. Enquanto a este vosso servo reverente, vos peço vênia para observar que se é nenhuma a confiança que se conta por dias e meses, o que será a que mal data de horas?
— Qual pessoa posso eu ter de mais fiança minha, do que aquela a quem se abriu esta alma cerrada ao mundo inteiro? Não fôsseis vós quem sois, Senhor Vaz Caminha, tão reputado de saber quanto de virtude, que esse título só de meu confessor ao mesmo tempo que letrado, vos faria senhor da minha fé.
— Uma coisa são infortúnios e contrariedades da vida; outra cabedais e riquezas. Se da primeira me encarreguei para vos aconselhar e dirigir, para a segunda, sinto que não sofrem as forças tamanho peso de responsabilidade.
— Cumpra-se então o último transe da minha desventura! Perdida com esse ouro e apagada a derradeira luz de esperança que ainda lampejava na escuridão de minha vida, acabará esta mísera uma vez de morrer!
— Mas por que desanimais, senhora?
— E mo perguntais? O único meio que me restava para alcançar o fim de uma vida inteira de martírio, posto em dúvida e risco! E vós mesmo, que me roubais esse conforto, não me dais remédio para o mal; ao contrário, a confiança que tinha no escravo, a dissipais; a que pus em vossa pessoa, recusais! Se essa era vossa tenção, para que avisar-me do mal... Melhor era deixar-me viver na minha antiga segurança, roubada fosse embora, do que matar-me assim lentamente neste repetido sobressalto e contínuo terror! Usastes comigo, senhor doutor, sem querer, de crueldade igual à que sofrem os condenados; prolongam-lhe com a vida a tortura. Não vos culpo, nem culpa há, senão desdita de quem em má hora nasceu para si e os seus.
O doutor ouvia com ar de bondade as palavras pungentes da moça; e tanto que acabou ela de falar, começou com um termo brando e meigo, pondo nela os olhos enternecidos.
— Razão alguma tendes, e fácil me fora provar, que por cumprir meu dever de cristão e homem discreto, não me obriguei a mais para convosco, nem a mais me obriga a lei como letrado, que me chamastes, e letrado vim. Mas que importa que não tenhais razão alguma, se toda vos quero eu dar? Ganharam-me vossos infortúnios; rendido me vedes. Uma coisa porém vos peço. Ides fiar de um estranho o segredo do grosso cabedal, capaz de excitar a cobiça, a quem não a tem; não deveis ceder ao primeiro movimento, para que não venha depressa o arrependimento; pensai até amanhã: o caso não urge tanto, que o não permita.
— Se já sois senhor desse segredo, que arrisco em adiantar o que já sabeis?
— Sei parte dele, é certo; sei que vosso ouro foi enterrado no oratório; que esse oratório ali está, ao lado de vossa câmera. Mas o lugar do pavimento, a profundidade, isso ignoro, e quisera ignorar sempre. E quem vos diz que eu, que vim dar-vos aviso, não estou aqui fazendo as minhas partes, e vou colher as maduras, pelas verdes que lancei? Quem vos diz que aqueles que vistes não sejam meus sócios; ou que tendo aventado parte do seu projeto, eu trate de arrancar por vossas mãos o ouro das garras deles, para a minha bolsa?
Havia na fisionomia do velho advogado tal jeito de astúcia e manha, ao proferir destas frases, que Dulce não pôde deixar de estremecer; mas sua alma serenou logo.
— Diz-me o meu coração, que de vossa pessoa só conforto e alegria me há de vir. Ao toque das almas nobres como as vossas, o ouro é metal de vil quilate.
— Enfim, pensareis, senhora, e do resultado me dareis conta quando nos virmos, amanhã, sobre noite. Já sei o caminho; virei só, e portanto mais acompanhado do segredo e recato que é preciso.
— Mas eles? Me deixais assim em seu poder?
— Nada tendes que recear por enquanto; não vos deis por apercebida, nem mesmo quando estiverdes só. Dizem que as paredes têm ouvidos; têm olhos também. É preciso que eles continuem a cavar a mina, pensando que o ouro está no mesmo lugar; nesse tempo transportareis a outra parte, de maior segredo, o vosso tesouro.
— Não fora melhor fazê-los prender logo de uma vez? Se a justiça de El-Rei não serve para proteger uma pobre mulher, para que serve ela então?
— A justiça de El-Rei serve para punir os que infringem a lei; mas por isso cada um não está desobrigado de velar no seu interesse. O segredo do vosso ouro está descoberto; quem e quantos o conhecem a esta hora, não há saber. Falais em prender os malfeitores; basta que um escape, ou mesmo comunique com outros da prisão, para transmitir o projeto e pôr-vos em contínuo desassossego. Melhor é desnorteá-los. Ou pensem que mudastes o lugar, ou que outros mais felizes lograram o tesouro, podereis ficar tranquila; e então será tempo de fazer a prisão.
— E não se podia prender antes e mudar o lugar? Daria no mesmo, e me tiraria mais depressa do meu desassossego.
— Parece-vos, mas não é o mesmo. Agora, seguros do seu segredo, eles têm a atenção toda empregada na mina; já contam com o ouro; e só tratam de esconder-se. Presos alguns porém, os que ficassem, se poriam à espreita; e quem sabe se não penetrariam outra vez o segredo, como penetraram da primeira.
— Vejo que a vossa prudência tudo previne, e devo estar tranquila pondo-me sob sua guarda.
— Sob a guarda do Senhor vos deixo eu.
Dulce bateu as palmas, Lucas apareceu.
— Acompanha a casa o senhor doutor: e olha que nada lhe aconteça. À sua caseira entregarás essa bolsa.
Vaz Caminha partiu.
Deixemos que vá ruminando pelo caminho adiante as suas cogitações, para explicar uma coisa que era para notar: o ter ele ocultado de D. Dulce o modo por que chegara ao conhecimento da trama contra ela urdida, e sobretudo calado o nome do negro Lucas, em quem aliás a dona depositava muita confiança.
O doutor tivera para isso boas razões. Ele sabia o que são mulheres, e não conhecia D. Dulce; sem lhe fazer injúria, receou dela o comprometesse revelando o como surpreendera a conversa de Lucas com o Brás na adega da taberna, e excitando contra ele a vingança de qualquer dos dois. Ora, a prudência era a prenda mais cultivada do licenciado. Quanto ao negro, foi por compaixão para a dama, que assentou de calar-se. Imaginou qual suplício não seria dessa pobre senhora, ali naquela casa, vendo-se entregue a um escravo capaz de tudo para evitar o castigo severo de sua falta.
Preferiu advertir indiretamente a dama como o fez, a denunciar positivamente a traição. Demais ele conhecia a força que tem no ânimo um sentimento ali enraizado: se o abalam fortemente, verga talvez, mas reage com força dobrada. Acusar o negro que Dulce tinha em conta de fiel, fora plantar no seu espírito a dúvida sobre a verdade da trama, e provocar talvez uma desconfiança contra ele, Vaz Caminha, que a queria salvar.
O doutor chegou enfim a casa, resfriado do sereno. Euquéria estava no seu quinto ou sexto rosário, sem contar os fragmentos do terço, da magnífica e da ladainha, e as repetidas invocações que ela ia entremeando. Na sua imaginação exaltada pelo medo das abentesmas já supunha o seu querido amo morto e bem morto. Quando bateram, e ela ouviu a voz do advogado, supôs que era a sua alma que a vinha buscar para o outro mundo.
Afinal Vaz Caminha falou-lhe de um modo que nada tinha de sobrenatural; muito humano ao contrário:
— Apressai, Euquéria, que já não posso comigo de cansaço!
Recolhido ao leito, onde o aqueceu o copo da sossega, o velho refocilou afinal o fatigado corpo. Eram 7 horas da manhã, quando espertou de todo repousado e na melhor disposição de espírito.
Só mais tarde chegou Estácio.