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As Minas de Prata/II/XIV

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Vem rompendo a manhã.

As alvoradas de corneta na guarda de palácio derramam longe pelo silêncio de ermo os clangores estridentes; além responde por todos os pontos da cidade o grito vibrante do galo, saudando os primeiros albores do dia.

A essa hora matutina, rompiam as sombras pardacentas do crepúsculo, com passo ágil, Estácio e seu pajem. Iam eles já no alto de São Bento, quando o primeiro raio da manhã toucou a grimpa dos montes. O céu estava do mais puro azul, o sol, de ouro fino; o mar desdobrava-se aos pés da cidade como a túnica azul da sultana, que a despiu ao deitar-se sobre o divã de suas verdes montanhas.

Uma brisa fresca, saturada de suaves aromas, crepitava pelas palmas dos coqueiros, e coava sussurrante entre a espessa folhagem das jaqueiras em flor. De momento a momento troavam como salvas de canhão em distância, as ondas alterosas que arrebentavam nas areias ao longo da Praia da Vitória. As aves atitavam; e um pescador de Itaparica que madrugara, mandava uns ecos remotos de seu descante matutino.

Súbito atravessou esse concerto o grito vibrante da saracura que repercutiu ao longe. O mancebo não deu nenhuma atenção a esse incidente, muito natural naquelas paragens; se ele estivesse menos preocupado, havia de reparar por certo que o grito era mais forte e sustido do que a ave costuma.

Menos ainda reparou ele que o seguia um vulto cauteloso, no qual o nosso esperto Gil cuidou reconhecer a forte corporatura do magarefe Tiburcino; ainda que reparasse porém, não havia nisso motivo para desconfiança, pois o curral e açougue do conselho ficavam para aquelas bandas.

Ao confrontar com o mosteiro, avistaram adiante no caminho o burel de um beneditino, que percebendo-os, aligeirou o passo miúdo. Era decerto algum zeloso frade que ia à cura das almas para aquelas bandas, e bem pressuroso de aproveitar a sua madrugada, pois em breve desapareceu por entre as árvores, deixando livre o caminho.

À direita erguia-se o Forte de São Tiago e mais longe a Igreja da Vitória, a primeira matriz da antiga cidade que assentara Pereira Coutinho na falda sul da montanha. O povo chamava então esse lugar indistintamente ou Vila Velha, ou Povoação do Pereira, em memória do primeiro donatário.

Breve assomou por diante a graciosa Ermida de N. S. da Graça, fundada por Catarina Álvares, e por ela doada aos Beneditinos, que ali tinham seu hospício; à parte, um tanto arredadas, viam-se umas casas da morada de Diogo Álvares, o Caramuru, que aí habitara até o ano de 1557, em que falecera, deixando nobre e numerosa descendência, tronco de muitas das principais famílias da Bahia.

Estácio, revendo aqueles lugares, onde seus olhos penetravam-se das recordações estampadas na face daqueles edifícios, e seu pé revolvia no pó da terra a cinza de um passado morto, sentia que o entrava uma tristeza grande. Também ele, pobre, decaído, proscrito da sua casa, provinha da estirpe ilustre dos primeiros senhores da Bahia; seus pais tinham o sangue de Diogo Álvares, e haviam herdado dos seus muitos haveres uma parte, que sua diligência própria aumentara. Mas tudo, a fatalidade dissipara com um sopro devastador, deixando a Estácio por única herança a vergonha e miséria.

A numerosa descendência do Caramuru povoava a Bahia e o Recôncavo, onde tinham nobres casarias com muitas alfaias e trem de criados e cavalos, e engenhos famosos com grandes fábricas ou granjearias arrendados em mil arrobas de açúcar por ano. Alguns netos seus ocupavam cargos importantes na governança do Estado; e viviam todos à lei da grandeza. Entretanto no meio de tantos de seu sangue, Estácio não tinha parentes, era só e sem mais família do que a tia materna, em companhia de quem morava. Os seus nem o conheciam; uma condenação póstuma quebrara os laços que o prendiam a eles, e o tornara estranho na terra de seus pais.

Lembrou-se o mancebo de Vaz Caminha e Cristóvão.

— Oh! não! murmurou dentro a voz do coração: não devo ser ingrato a Deus! Em troca deu-me ele um pai e um irmão!...

A poética Ermida de Nossa Senhora da Graça já estava aberta; o sacristão varria o pavimento. Pelas altas ogivas mal penetravam algumas tênues réstias da suave claridade da manhã, que batendo contra a parede branca, espargia-se em borrifos de luz pelo âmbito da capela. Estácio viu um frade bento sair de uma vereda lateral e entrar na igreja. Pelo trote miúdo e o rochonchudo do corpo pareceu-lhe o mesmo que encontrara na altura do mosteiro.

— Quando avistares um cavalheiro vindo para estas bandas, avisar-me-ás, Gil.

— O mesmo a quem levei antes de ontem o cartel?

— O mesmo!

Estácio entrou na ermida e foi ajoelhar ao pé do altar. Depois da oração parou em face de uma catacumba principal construída no centro da capela. Aí recostado na espada, com a fronte acurvada ao peso das ideias que turbilhonavam no cérebro, e os olhos fixos na rubrica negra da lousa, ficou imóvel e alheio de si.

O epitáfio, que ainda hoje se lê naquela ermida, rezava assim:


Sepultura de D. Catarina Álvares, senhora desta Capitania da Bahia, a qual ela e seu marido Diogo Álvares Correia, natural de Viana, deram aos Senhores Reis de Portugal.

Fez e deu esta capela ao Patriarca São Bento.

Ano de 1582.


Lendo o epitáfio gravado na lousa, Estácio proferiu estas palavras:

— Vós, nobre e intrépida senhora, que combatíeis com brios de cavalheiro e esforço de homem ao lado do esposo, não renegais vosso sangue, como o renegam os que dele gerastes na terra. Se na mansão dos justos, que habitais, doem à vossa alma bem-aventurada o infortúnio e injustiça que tudo me roubou, fazenda e estado, família e casa, em reparação de quanto perdi, aqui vos peço, virtuosa senhora, uma só mercê: “Intercedei com a vossa divina protetora, Nossa Senhora da Graça, para que da graça sua infinita, derrame uma lágrima sobre este amor ardente que acendeu em mim o mais puro dos seus anjos na terra!...”

O mancebo tirou a espada da bainha e a colocou nua sobre a campa dos progenitores de sua família:

— Sejam pois vossas cinzas que sagrem este ferro, e o abençoem do céu vossos olhos, senhora; ele é virgem de sangue, e eu vos juro que sempre o será de sangue inocente! Nunca o empunharei senão em prol de uma causa justa!

Depois de uma pausa:

— A espada de meu pai, bem sabeis, a despedaçou a mão do algoz sobre as suas cinzas ainda quentes; nem essa herança me deixaram; até um canto deste chão, onde repousasse vosso descendente, lhe recusaram!

O pensamento do cavalheiro depois dessa invocação enleou-se nas ideias que suscitava o próximo combate. A cena que ia representar-se desenhava-se como presente a seus olhos: via D. Fernando em face dele, as espadas cintilando no ar e esgrimindo com fúria; depois o adversário prostrado a seus pés. Então punha-lhe o ferro à gorja, e arrancava-lhe a preço da vida o juramento de renunciar para sempre à mão de Inesita.

Mas se D. Fernando recusasse e preferisse a morte ao juramento, que faria ele? Cravaria o ferro no peito do rival, e estancaria dali com o sangue, o veneno do seu funesto amor pela filha de Aguilar? Deixá-lo-ia, com vida, esperando de sua gratidão o que os brios do cavalheiro recusassem à ameaça?

Estácio sabia já quanto vale a gratidão; mas também essa ideia de matar um homem, embora em combate leal, assim encarada friamente, lhe repugnava:

— Tenho eu o direito de matá-lo, a ele, instrumento apenas daqueles que não se importam de cortar-me em flor a vida?... Se morto, não se realizarem

no match

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as esperanças minhas, e D. Francisco repelir-me por indigno de sua aliança, esta morte não pesará na minha consciência como um remorso?

O espírito do moço afundou-se na meditação dessa ideia; afinal ergueu a fronte com energia:

— Não!... não o matarei!... As vestes cândidas do santo amor nosso, Inesita, não as borrifarei de sangue, seja ele de um inimigo!... Imaculadas, como vossa alma, servirão de mortalha aos nossos corações, se Deus não permitir que nos sirvam de véus nupciais!

Depois, ofuscada a fronte como nuvem sombria, onde afuzila um raio, murmurou:

— Só o mataria, se... Mas é impossível: Inesita jurou! Dela só lhe pertencerá o despojo terrestre!...

Nesse instante o cavalheiro voltou-se, ouvindo Gil que o chamava da porta; e saiu logo. Ao mesmo tempo a cabeça do frade bento que o estava espreitando do vão de uma porta, sumiu-se dali e foi aparecer à janela da sacristia, donde podia ver o que passava no pátio da igreja. O reverendo estremeceu reconhecendo ao longe, no caminho, D. Fernando de Ataíde que apressado se encaminhava para ali, seguido por um pajem.

Também Estácio saindo fora, reconhecera seu adversário; e deixando-o que chegasse ao terreiro, foi dirigindo-se para as bandas do mar, com passos lentos e medidos de modo que visse o outro a direção que tomava e o seguisse. Conhecendo que fora compreendido, internou-se pelo arvoredo.

Havia ali um grupo de aroeiras seculares, que sobrepujavam de muito na altura o outro mato próximo, e por isso facilmente se distinguiam. À sombra das árvores frondosas, o chão era limpo e plano como o de uma sala d'armas; os troncos em conveniente distância não estorvariam os movimentos dos campeões. O cavalheiro circulou com o olhar o recinto fechado em torno pela vegetação, e tirando a espada, experimentou outra vez a flexibilidade da folha:

— Não o viste seguir-me, Gil?

— Oh! se vi! Mas ele que não aparece...

— Talvez se desviasse... Vai encaminhá-lo.

— Ei-lo!

As folhas secas rugiram; mas em vez de D. Fernando de Ataíde, foram cinco soldados da guarda do governador, tendo à sua frente o Capitão Manuel de Melo, que apareceram de repente, saindo do mato. O oficial avançou para o cavalheiro, procurando deitar-lhe a mão:

— De ordem do sr. governador vos prendo e intimo como réu de desafio!

Estácio recuou de um salto, e pondo-se em guarda exclamou:

— Quem me tocar, é homem morto!

— Toda resistência é escusada. Olhai em volta! Rendei-vos antes que ser rendido!

Volvendo o olhar, viu o moço que o capitão dizia a verdade. Atrás surgira outra linha de cinco soldados, que estendendo-se como a primeira em semicírculo, fazia completo o cerco. A resistência de feito era loucura.

— Embora! Morrerei, e comigo alguns dos que aí estão. Antes, porém, em presença de todos vós que me ouvis, soldados valentes, declaro alto e bom som, e vos rogo de repetir por cem bocas, que D. Fernando de Ataíde é três vezes infame!...

O moço encostou-se ao tronco da árvore:

— Agora, senhores, ao vosso dispor.

D. Fernando de Ataíde surgiu nesse instante, pálido de cólera; e após ele a figura encapuzada do frade bento, que procurava retê-lo pelo manto.

— Esperai um instante, senhores! Este homem acaba de insultar-me em vossa presença; ele me pertence antes que a vós!

— Este homem está preso à ordem do senhor governador e sob minha guarda. Ninguém lhe deitará a mão! acudiu o capitão.

— Eu dou-me em refém e penhor de sua pessoa. Uma hora somente, capitão!

— Impossível, Sr. D. Fernando.

— Não prezais a vossa honra, Sr. Manuel de Melo!

— Provar-vos-ei em outra ocasião; agora defendo a minha honra de soldado; cumpro as ordens.

— Neste caso, senhores, tereis de haver-vos também comigo!

D. Fernando saltando no meio do círculo, postou-se ao lado de Estácio:

— Venho ajudar-vos a salvar a vossa liberdade, para poder dizer-vos então em face que mentistes!

A um sinal do capitão, os soldados iam precipitar-se sobre os dois campeões, quando mais um personagem entrou em cena. Era o nosso estimável amigo João Fogaça, mui digno capitão de mato:

— Alto lá, gente!... disse ele para os soldados, avançando em duas pernadas. Isso não vai assim, como cuidais. Sr. capitão, vosso servo: que estejais muito bom, é o que se quer. Que buscais aqui, homens? Arredai-vos, que não estou agora de veia para aturar-vos. Um pouco de paciência: não vos espinheis! Aqui estão dois cavalheiros decidindo um negócio de honra. Vós pretendeis que o senhor governador reclama por um; aqui entre nós, capitão, não vos parece que a justiça de Deus deve passar antes da justiça de El-Rei!... Andai; abri campo aos adversários, é o que de melhor tendes a fazer!

— Soldados, gritou o capitão, enxotai-me este malandrim!...

João Fogaça soltou então uma gargalhada estrepitosa, que reboou ao longe pelas praias, uma perfeita gargalhada homérica; e mostrou em volta ao capitão a crítica situação em que de repente se achavam os seus soldados. Por trás de cada um, ao som da risada do capitão de mato, surgira um índio que se precipitara sobre, e como uma cadeia de aço arrochara seu homem pelos peitos, tolhendo-lhe o movimento dos braços e do corpo. Pareciam estafermos atados ao poste.

— Enchei agora a boca de vossos soldados, capitão!...

— Sua Senhoria será sabedor!

— Por certo; porque eu mesmo lhe direi, quando levar-lhe presa a palácio a sua guarda, convosco em frente!

— Tomo-vos por testemunhas que cedo à força!

— E eu, ministro da religião e da paz, em nome do meu santo ministério, advirto que esta terra que pertence à N. S. da Graça, quem a ensopar de sangue...

— Calai-vos daí, reverendo! Ide à vossa missa; e vós, capitão, chegai-vos a mim para dar lugar aos campeões. Eia, senhores, em guarda!

Os dois mancebos afastaram-se tomando campo, e cruzaram o ferro; mas ainda um obstáculo surdiu, com uma nova personagem, que interrompeu a cena. O advogado Vaz Caminha, deitando alma pela boca, chegou a toda a pressa, e erguendo a bengala interpôs-se entre os dois combatentes:

— Que dunguinha é este agora? perguntou o capitão de mato rindo e adiantando-se para safar o advogado.

Mas ante o velho, Estácio abaixara a espada, curvando a fronte com pejo.

— Filho, disse o advogado, em nome de vossa mãe, que dorme aqui perto, e a quem respondo pela vossa felicidade; em nome do amor que vos tenho, e do bem que vos desejo; filho, eu vos ordeno. Entregai-me esta espada!... Rendei-a!...

— Aqui a tendes, mestre; mas eu insultei este homem; ele tem o direito de matar-me.

O velho voltou-se para D. Fernando:

— Eu vos respondo, senhor, pela sua pessoa quando o exigirdes para desafronta vossa.

Fernando ia replicar; eis que de repente surge de entre o mato o vulto do magarefe; arremete ao fidalgo, e fechando-o nos braços robustos, o arrebatou da cena, como um abutre à presa.

O primeiro sentimento causado pelo incidente foi o da surpresa; mas logo voltaram à anterior preocupação.

Vaz Caminha voltou-se para Estácio:

— A espada que me rendeste, filho, rendo-a eu àquele de quem a houveste para defesa da religião e da pátria. A El-Rei por quem a reclama a gente de seu serviço.

Vaz Caminha vendo afastar-se o mancebo de um modo tão ab-rupto, suspeitou que ele escondia-lhe algum segredo, e esquivara-se com receio de denunciar-se.

Qual era o segredo, não podia atinar de repente; porém esperava mais tarde deslindá-lo.

Para saber o projeto que Estácio formara às ocultas de Vaz Caminha, cuja oposição receava, é mister remontarmos ao dia dois de janeiro, que seguiu-se às festas do Ano-Bom.

É de lembrar o que Joaninha fizera na casa de D. Francisco e como de lá voltara sexta-feira. Logo que se pôde desvencilhar do alferes, a faceira mulatinha correu direito à Fonte do Gravatá, para onde emprazara o pajem. Meio-dia era já passado, muito havia; e ela receava que Gil, aborrecido de esperar, se fosse a casa. Mas de longe ainda avistou-o escanchado num galho de cajueiro, a balançar-se.

Ao descobrir a mulatinha tocou a terra num pulo, e achou-se logo junto dela.

— Então, Joaninha!

— Ai, Gil!... Deixai que tome fôlego!... Não vistes em que batida vim eu!

— É que também não me tenho em mim de saber!

— Vinha com medo de já não te encontrar.

— Que dizes, rapariga?... Daqui não arredava pé sem que chegasses, inda que entrasse a noite!... Mas fala afinal!... Já deves estar descansada.

— Jesus!... Que pressa!... Queres esperar, trapalhão?

— Queres falar, dengosa?... Acaba de uma vez, senão faço-te cócegas.

— És capaz!... disse Joaninha dando para ele um passo provocador.

Gil botou-se a ela, e daí a pouco não se ouviam senão risadinhas e gritos de alegria; afinal cessou o folguedo, e o pajem ameaçou de ir-se zangado se não lhe desse Joaninha as novas para as levar a Estácio. A mulatinha respondeu que as novas eram boas, mas deviam ser levadas por ela própria ao cavalheiro.

— Pois então, um passo adiante, dobrado marcha!... gritou o pajem mandando a manobra e atirando ao ar com entusiasmo o barrete! Viva a doninha! Viva!...

— Alto lá, mestre Gil. E o prometido?

— Ai, começas com histórias! Que prometido?

— De beijares... És assim esquecido?

— Mas é que sim! Pois anda lá, acaba com isto! Onde queres que beije eu?... Se é zombaria, não arrisques!

— É sério!

— Pois dize, que já me está isso aborrecendo!

Joaninha estremeceu; o seu colo flexível chegou a inclinar docemente como a haste de uma flor para debruçar o róseo seio; uma chama sutil subiu do seu peito e envolveu o gracioso semblante. Mas como as flores, que cerram com a chuva, a florescência do seu rosto dissipou-se de repente. O tédio que se pintava no rosto petulante do pajem produzira esse efeito mágico.

— Não, Gil, depois eu te direi!... Ou talvez nunca!... murmurou a mulatinha tragando um suspiro, e caminhando rápida para a cidade.

O pajem, prevendo que seu amo estaria em casa de Mariquinhas, levou-a daquele lado. Estácio ressuscitou para o seu amor, recebendo o que lhe trouxe Joaninha. Era o listão de cetim onde a mão de Inesita tinha alinhavado em ponto de marca as letras desta única palavra: — Vivei. Beijou nessa prenda não só o objeto que tinha tocado as mãos mimosas da menina, como o símbolo de sua salvação.

— O resto, sr. cavalheiro, é triste; mas não vos devo ocultar, acudiu Joaninha.

— Não; é preciso que eu saiba tudo!

— Ela foi prometida por seu pai a D. Fernando.

— Já o sabia desde ontem.

— E vos manda dizer que a vontade do pai se cumprirá, assim como seu fado dela, que já a prometeu à terra fria!...

— Dizeis que é triste?... Maior consolo e alegria não podia mandar aquele anjo do céu às tristezas de minha alma. Deus vos pague, Joaninha, e vos dê em dobro o bem que me fizestes!...

Estácio, ficando só, entrou em si e perscrutou o íntimo de seu coração. Havia ali, desde a conversa que tivera com Vaz Caminha naquela manhã, um pensamento que minava surdamente, cevando-se nas dores e angústias de que estava ele cheio. Agora com a certeza de que Inesita o amava, quando a luz penetrara de novo nas trevas do seu espírito, aquele pensamento soturno nutrido na dor, longe de se dissipar, tornava-se mais vigoroso e obstinado, a ponto de concentrar em si toda a atenção do cavalheiro.

O moço meditou-o muito esse e os dias seguintes: afinal chegou à resolução sobre que imediatamente conversou com Cristóvão.

— Inesita me ama: bem sei que muitos obstáculos nos separam, mas conto vencê-los com tempo e ânimo. Só um me afronta agora, que é D. Fernando. É preciso afastá-lo ou destruí-lo.

— Eu não hesitaria! disse Cristóvão.

— Essa ideia acudiu-me há dias conversando com meu padrinho e mestre; a certeza de que Inesita me amava a corroborou, contudo não quis levá-lo a efeito sem a ponderar muito. Agora que tenho o vosso aviso, é tempo de obrar.

— Ainda não. Esse casamento não urge; e seria para mim grande pesar não assistir-vos nessa ocasião. Esperai que me possa erguer desta cama malfadada!

— Também a mim, deveis pensar, de quanto conforto e segurança não seria sentir-vos a meu lado em tal circunstância. Mas o negócio urge mais do que supondes; qualquer dia posso ser obrigado a sair da Bahia por motivo que a seu tempo vos direi. Se não quiser que me surpreenda a necessidade!...

— É ela tão forte, essa necessidade de sairdes da Bahia, que a não possais adiar por dois dias?

— Tão imperiosa, que não declinaria dela nem uma hora; menos um dia.

— Já não vos oponho nada; mas fica-me um grande pesar.

— Não menos a mim; crede-me, Cristóvão.

Escreveu então Estácio o cartel de desafio, que nesse mesmo dia recebeu Fernando, sem saber de onde lhe vinha. Gil, incumbido da entrega, o introduzira sorrateiramente na cinta do fidalgo, quando esse montava a cavalo para ir a Nazaré ver Inesita.

O moço esperou tranquilo e resignado a manhã do desafio. Sabia que D. Fernando era homem de brios, e havia de responder dignamente ao repto que lhe era feito. Quanto ao resultado do combate, aguardava-o de ânimo sereno. Se morresse, cumprido estava o seu destino na terra; deixaria o mundo, santificado pelo amor de Inesita, e iria esperar a esposa no céu. Mas ele tinha plena confiança em sua espada e fé robusta no juízo de Deus, para o qual apelara da iniquidade dos homens. Contava infalível a vitória.

Nenhuma ideia fúnebre veio pois associar-se aos seus pensamentos nas horas que precederam o momento decisivo. Ao contrário, com a certeza de que esse primeiro e cruel transe do seu amor ia ter breve uma solução, seus espíritos serenaram, e uma doce esperança perfumou a melancólica expressão de seu semblante. Como sucede às almas de rija têmpera, Estácio sabia esperar.

No dia de Reis, ao deixar Vaz Caminha, o mancebo dirigiu-se para as bandas da Sé. Na Rua dos Mercadores, quase à esquina, havia uma loja de armeiro, mister de primeira necessidade em qualquer povoado ou vila, quanto mais na cidade capital do Estado do Brasil.

Um homem de forte musculatura, com avental de couro e manopla de camurça, estava ocupado em limpar e polir uma couraça.

— Mantenha-vos Deus, mestre Aleixo Garro!

— Para vos servir, senhor estudante.

— Trouxeram-vos ontem por tarde uma porção d'armas?

— Vinha de vossa parte?... Quatro partasanas, duas couras, um arnês completo, e mais umas pontas de lança...

— Creio que sim.

— Quereis então que vos corrija e guarneça tudo?

— Não, mestre, falta-me moeda para vos pagar! Se mandei-vos essa ferragem velha que lá andava por casa rolando do tempo de meu falecido avô, foi para vos propor um escambo!

— Que haveis de querer em troca?

— A vossa melhor espada, em primeiro lugar.

— Vede, se vos praz, ali daquela banda, na última fileira... Achareis coisa de vosso gosto!

Estácio examinou a linha de armas suspensas à parede, e depois de breve hesitação fixou como entendido a sua escolha.

— Esta me serviria! disse vergando a lâmina bem temperada de uma excelente espada.

— Andai lá! Não sois peco!... Vosso parente, o alcaide-mor, ficou enamorado dela.

— E por que não a feirou ele?

— Ai, Deus! Se D. Álvaro fosse a arrecadar todas as raparigas de que se enamorou em moço e todas as espadas de que se enamora em velho, não tinha nem câmera, nem sala d'armas, que lhe bastasse.

— Nem bolsa, que é o principal! acudiu o estudante sorrindo.

— Então vai a espada. Que mais há de ser?

— Queria... Nem eu mesmo sei!

— Um estoque à francesa!...

— Não!... Uma cinta ou coisa igual para ter unido ao corpo certo objeto que por nada se queria perder!

— Entendo!... Prenda de alguma dama! Bem se vê parente de quem sois.

Estácio corou.

— Acertastes!... É uma prenda querida.

— De qual volume?

— Volume... de minha mão!

O armeiro fincou o queixo no punho e passou lentamente os olhos pela sua loja.

— Já sei!... Tenho ali coisa que não está longe do vosso desejo.

Tirou duma prateleira uma camisa de malha finíssima, forrada de tafetá.

— Vede cá!... Entre o trançado e a seda, fica-vos uma larga bolsa, onde podeis trazer mesmo unidinho ao peito, a vossa prenda; e com mais uma vantagem que a trareis defendida de ferro e tudo!... Essa malha trançada não há punhal buído, nem água, que a atravesse!...

Estácio examinou a camisa que de primeira vista logo lhe agradou:

— Serve mui bem para o fim que é.

— Nada mais?

— Nada!

— Bem; pela espada e a camisa de malha, vos recebo a ferragem, voltando-me vós meia dobla!...

— Já não vos feiro coisa alguma. Se comecei por dizer-vos que não tenho moeda!

— Ora! Está para ver que o senhor alcaide-mor, nem mesmo vosso padrinho, o advogado, vos neguem essa migalha!

— Não negam, não, que lhes não peço eu!

— Pois levai o mercado; pagareis depois!

— Isso não!

— Temeis o ditado — fiado, raivado?

— Só compram assim, os que não pagam, e os que...

— Pois não se dirá que no primeiro negócio fiqueis descontente de mim.

Estácio vestiu a camisa de malha e sob ela colocou a carta de D. Diogo de Mariz, depois cingindo a espada, saudou o armeiro, e encaminhou-se à casa de Álvaro de Carvalho. O valente soldado o recebeu com ruidosa efusão.

— Vinde! Vinde!... que vos estale esses ossos, rapaz! gritou ele apertando a mão ao mancebo. Isso já é destra de cavalheiro!... Pena é que a queiram fazer gadanho de frade!

— Juro-vos que tal não será, Senhor Álvaro!

— Assim espero em Deus!... Mas tenho meus medos que vos não enfeitice o ardiloso do vosso padrinho, o velho garnacha!

— Deixai-o em paz por quem sois!

— É o vosso alfenim!... Não lhe toquem! Admira que vos deixasse ele vir aqui!...

— Não vos apraz já ver-me!...

— Valha-me o diabo com seiscentas bombas, rapaz! Queixo-me eu, mas é de não virdes sempre!

— Virei agora mais vezes, se dais licença!

— Vinde quando vos aprouver; contanto que não vos ouça eu falar em alfarrábios nem sotainas. Aqui em casa de soldado, só se pratica de armas e combates, de justas e torneios.

— Lembrais-me, Senhor Álvaro, que justamente esta manhã merquei uma espada, e queria prová-la com quem é mestre do ofício.

— Pronto, rapaz! Isso é falar!... Dai cá a tal espada, que lhe tome o jeito.

O velho soldado empunhou a espada, brandindo-a com a facilidade e primor de mestre em esgrima.

— Conheço! Boa lâmina! exclamou ele. Vem das forjas de Aleixo Garro!

— E é ferro desta terra!

Fincando no chão a ponta da espada vergou-a por diversas vezes experimentando a elasticidade da folha:

— Tendes espada, rapaz. Seguro-vos eu! Vamos ver como a manejais!

O alcaide saltou no meio da sala com sua impetuosidade costumada, e desembainhando arremeteu sobre o estudante. Estácio sustentou o assalto com a perícia e o sangue-frio que seu mestre já lhe conhecia; a espada correspondeu ao conceito de ambos; ela tinha a flexibilidade da cobra, e umas vibrações magnéticas que imprimiam ao punho do cavalheiro a eletricidade de sua têmpera.

Depois de rijo esgrimir, o alcaide parou alagado em suores; Estácio estava calmo e sereno como se tivesse manejado em vez de espada uma faceira chibata de galã.

— Bom ferro e melhor punho!...

— Julgais que possa fiar de ambos a minha sorte?

— Bofé! Que melhor guarda?

— Mas uma dúvida tenho eu desde que me cingistes uma espada, e agora a sinto crescer!... A espada na mão do cavalheiro é sua guarda e defesa legítima, sem dúvida; mas pode servir para conquistar o que os homens ou a sorte lhe negam?

— Para tudo o que é justo! Bem sabeis: a justiça tem na destra um gládio!

— Falo-vos nisso porque outro dia ouvi discursarem acerca vários cavalheiros... Sustentava um que o cavalheiro bem querido de uma dama podia disputá-la a qualquer que ousasse pretendê-la!

— Por certo!... E o cavalheiro que o não fizesse seria um cobarde!

— Ainda mesmo que fosse necessário matar o seu rival?

— Morra embora, se é preciso.

Estácio sentiu-se aliviado como de um peso; pouco depois, alegre e ligeiro, despediu-se do alcaide, e foi ter com Ávila a quem levava um grande contentamento. Realmente o moço, ainda inquieto sobre Elvira, apesar dos repetidos e sempre baldados esforços de João Fogaça durante cinco dias, recebeu como uma bênção do céu as novas que lhe trazia o amigo e mais a joia da moça.

Toda a tarde gastaram em devaneios amorosos, até à noite, quando apareceu o capitão de mato:

— Tive hoje novas de vossa pessoa, foi dizendo para Estácio.

— O mesmo prazer não tive eu!...

— Vistes na igreja uma cadeirinha fechada, e a seguistes até a casa!

— Já ele me contou! acudiu Cristóvão.

— Como o soubestes?...

— Vi com os meus olhos! respondeu o capitão de mato.

— É possível!

— E não foi só isto, quando falastes aos acostados no cabo da ponte, a moça que ia dentro soltou um gritozinho de beija-flor!

— Isto não me tínheis dito, Estácio?

— Se o não escutei, nem podia...

— Pois ouvi com os meus ouvidos; e mais a voz zangada da velha beata que ralhava com a filha!...

— Onde estáveis então que vos não percebi!

— Adivinhai!...

— Ah! lembro-me agora, exclamou Estácio; vi vossos olhos pestanejando entre a copa de uma jaqueira, se não me engano; e vosso ouvido debaixo dos aguapés na beira do fosso!...

— Acertastes! Mas bom foi saber, para esfregá-los com uma coça que os ensine a esconderem-se melhor.

— De quem falais, João, que vos não entendo? interrompeu Cristóvão.

— De meus caboclos!

— Sois injusto com eles, Senhor João Fogaça; pois dou-vos minha palavra, que sem a nossa conversa, nunca tomaria por corpo de homem o vulto de serpente que resvalava pelo lodo, e o vulto de coruja que dormia no alto da árvore!

— Por vosso respeito, passo-lhes esta!... Mas de vossa parte, que descobristes tão agradável que assim pôs ledo e prazenteiro o semblante de Cristóvão?...

O amante de Elvira referiu o que lhe havia contado Estácio e acabou mostrando-lhe a joia.

Era tarde da noite quando os dois amigos apartaram-se. Cristóvão cingiu Estácio ao coração, e o teve ali por muito tempo; depois vencendo a emoção, murmurou-lhe ao ouvido:

— Deus seja convosco, irmão; como será este coração que bate a compasso do vosso.

— Contava com ambos, e sei que me não hão de desamparar no momento.

Ao retirar-se Estácio, o amigo disse a João Fogaça:

— Estácio tem um desafio amanhã, entre o romper da aurora e o meio-dia, na Graça. Quero que lá estejais, já que não o posso eu, para o acompanhar. Não vos mostreis, pois ele deseja o maior segredo, mas vigiai como por mim o faríeis. Não sei o que receio; sinto uma tristeza imensa de lá não estar.

— Estareis, Cristóvão, na minha pessoa. Dormi descansado até amanhã sol fora. Careceis de repouso.

Eis o que passara até o alvorecer do dia 7 de janeiro, em que Estácio cingindo a virgem espada que comprara na véspera, e acompanhado de seu pajem, partira para o lugar do desafio.