As Minas de Prata/II/XVIII

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O aposento onde se achavam os dois personagens era uma vasta sala, sombria e triste, pelo desenho fantástico dos lambéis que forravam o alto das paredes, e as almofadas de jacarandá negro que cingiam a volta das cadeiras. Carregava esse tom severo a pouca luz que entrava pelas persianas dos balcões, a essa hora próxima da noite.

D. Fernando ergueu-se ameaçador, e caminhou para Vaz Caminha:

— Qual é vossa tenção, senhor? perguntou com a voz trêmula.

— Já que Deus pôs em minha mão esta arma terrível, usarei dela para castigar o vosso coração mau, e assegurar a felicidade de um mancebo virtuoso e bom.

— Então o que outrora vos pareceu indigno da vossa profissão, por ser mister de algoz, não vos repugna praticar agora?...

— Outrora vossa mãe vivia e éreis vós uma inocente criança; hoje a mísera senhora faleceu, e vos tornastes um mau homem, soberbo e vão. Também eu mudei; como advogado e homem de lei, recusei o mandato; como instrumento, inda que humilde, de que serviu-se a Providência para recompensar a virtude e punir o vício, não me posso eximir a um dever sagrado. Corrigirei a obra de ódio e vingança tornando-a em lição de justiça e verdade, tirando-lhe a solenidade do escândalo. Se não renunciardes para sempre à mão de D. Inês, seu pai saberá a história do vosso nascimento. Eis, senhor, a minha tenção!...

— Pois deveras pensaste, velho estulto, que eu deixaria o meu destino à tua discrição, quando te posso esmagar aqui como um verme abjeto que és?... Restituí-me já o testamento de meu pai, ou acabarás à ponta deste punhal!

— O testamento que tenho em depósito é de D. João de Ataíde, não de vosso pai!... respondeu o velho sem alterar-se.

— Não escarnecei da minha cólera, velho!

— Como posso, se dela hei dó e compaixão!

— O testamento?...

— Em vindo aqui, deixei-o lacrado dentro do meu e confiado a pessoa segura, para ser aberto quando conste o meu passamento. Portanto se quereis vê-lo, matai-me depressa!...

O moço patinhou de raiva; afinal caiu sucumbido sobre a cadeira; o punhal escapou-lhe dos frouxos dedos e rolou no tapete. Depois de uma pausa, o advogado ergueu-se:

— Agora me dirá o muito alto e poderoso Senhor D. Fernando de Ataíde, se ainda pretende oferecer a D. Inês de Aguilar, com a mão assassina que não duvidará ferir um velho inerme, o nome que traz do matador de seu pai?

— Que queres tu de mim, Satanás? Ordena, já que me tens em tuas garras!

O velho teve dó desse desespero:

— Perdoai-me, senhor, a grande dor que vos fiz passar. Deus me é testemunha, que se não fosse a vossa cruel zombaria, nunca teria a coragem de apelar para o terrível segredo, devesse eu tragar as lágrimas que a vossa recusa me arrancaria. Mas sepultemos isso no passado donde não devia surgir nunca; esquecei este mau sonho. Nada pois vos ordeno, nem tenho esse direito; sim renovo a minha súplica: renunciai ao casamento...

— Dou-vos minha palavra!...

— Deus vos recompensará deste sacrifício. Mas aquele a quem vossa palavra deve restituir a esperança perdida, não a pode ouvir de vossa boca nem da minha... Sabeis que há coisas tão melindrosas que não se transmitem sem alterar-lhes a essência. Fazei a graça completa dando-me vossa palavra escrita!

— Para que ele suspeite do mistério horrível que me fez vosso escravo?... murmurou o fidalgo amargamente.

— Se eu quisesse que Estácio Correia concebesse a mais leve suspeita a esse respeito, não carecia de pedir a vossa palavra, bastava que lhe assegurasse sob minha fé, que pelos motivos de mim conhecidos e que em tempo revelaria, vossa aliança com a casa de Aguilar era impossível. Não me conheceis, Senhor D. Fernando; este homem que vistes há pouco implacável para arrancar-vos a felicidade de seu filho, leva daqui uma dor acerba, a de ter perturbado a calma de vosso espírito; ele não quererá agravar o mal sem necessidade.

D. Fernando serenado por essa palavra insinuante e suasiva, que o penetrava como bálsamo espargido nas chagas vivas, sentou-se à banca e escreveu:


“Por minha honra neste mundo...”


— Posso eu escrever ainda esta palavra? perguntou ao advogado com um sorriso acerbo.

— Escrevei-a sem hesitar; sois apenas desgraçado. Perante Deus só há uma qualidade de honra, é a virtude.


“Por minha honra neste mundo e minha salvação no outro, juro que em caso algum me desposarei com a Senhora D. Inês de Aguilar, filha de D. Francisco de Aguilar; e se por desgraça e vileza

minha o fizesse, o que espero em Deus que não, dou à pessoa, em cujo poder esta minha declaração se ache, o direito de com ela açoitar-me as faces, e proclamar-me o infame dos infames.”


Depois de escrito, entregou ao advogado o papel.

— Acho-o por demais severo!...

— Punge-me a consciência do passado, doutor. Essa lepra nada há já que a possa arrancar d'alma em que vai lastrando!...

— Mísero senhor!... exclamou Vaz Caminha enxugando duas lágrimas.

D. Fernando carecia da solidão.

— Que mais desejais de mim? perguntou o moço.

— Ainda tenho dois pedidos que fazer-vos. É o primeiro, que não comuniqueis a vossa resolução a D. Francisco, senão quando vos eu advertir!...

— Oh! não! Deixai romper de uma vez esses laços!...

— É impossível, Senhor D. Fernando. Sem essa cláusula a vossa desistência fora inútil.

— Compreendo agora, suspirou o mancebo com azedume; é preciso que eu fique guardando o lugar até que chegue a vez do mais ditoso!...

— E pesa-vos concorrer para a felicidade de dois entes dignos dela?... Estou que não; deveis essa reparação à memória de vossa boa mãe!...

— Qual é o outro pedido vosso?...

— Esse quase o dispensava, pois creio que o objeto dele já está em vosso pensamento. Heis de proteger a pobre criatura enjeitada...

— Sabeis onde ela existe e qual seja? perguntou o fidalgo estremecendo.

— Nada sei de positivo; mas o Senhor D. João de Ataíde tinha suspeitas, que não chegou a tirar a limpo. Conheceis uma rapariga que vive de ser alfeloeira?...

— Mora para as bandas de São Francisco?

— Justo! gente da rua a chama a Enjeitada da Parteira!...

— A Joaninha?...

— Se as conjeturas de D. João de Ataíde não erraram, deve de ser ela.

O moço escondeu o rosto nas mãos, para ocultar à luz do dia o rubor da vergonha e humilhação.

E agora sabe-se a razão por que no dia seguinte jogava D. Fernando na taberna do Brás um jogo do inferno.

Vaz Caminha deixou-o afinal e foi-se em direção da casa de Estácio.

O velho caminhava ligeiro como quem ia leve de cuidados; mas eram ao contrário os impetuosos pensamentos a encapelarem no cérebro, que o impeliam com tamanha força para o alvo. Dando trégua à tristeza que lhe deixara a cena passada em casa de Ataíde para entregar-se exclusivamente à tarefa que tomara a si de assegurar a felicidade do seu filho adotivo, o doutor ruminava ainda uma vez o plano concertado em sua mente.

Desde que perdeu a esperança da soltura do moço, o advogado resolvera partir para São Sebastião e na qualidade de mandatário do filho de Robério Dias, receber de D. Diogo de Mariz o roteiro das minas de prata. Essa resolução ainda mais se firmara em seu ânimo, quando soubera da súbita partida do P. Gusmão de Molina, a qual viera como asselar as suspeitas, comunicadas na véspera a Estácio. Não podia o advogado porém cometer a empresa da viagem sem levar procuração do afilhado, e deixar-lhe a esperança que o fortificasse para resistir à prisão. Na incerteza do casamento de Inesita, temia o velho pela vida do mancebo.

O mais difícil para a execução desse plano era pôrse em comunicação com Estácio. Sabia Vaz Caminha que ele estava no Castelo de Santo Alberto e incomunicável, pois lho dissera o governador; mas o meio de chegar ao cavalheiro através dos grossos muros de cantaria batidos pelas ondas e das espessas abóbadas guardadas dia e noite pelos mosqueteiros, era o que não sabia o velho.

— Deus ajudará!... dizia ele consigo. Tenho por onde começar, já não é pouco!...

O astuto velho assentara que o primeiro passo a dar era saber ao certo o cárcere onde tinham metido o moço, e sua posição no castelo. Ele partia desse axioma de geometria que não se pode tirar uma linha sem conhecer os dois pontos extremos. Era pois à solução desse problema da situação de Estácio que descia o advogado aos saltinhos a ladeira na direção da Ribeira, em busca da casa de D. Mência.

Os solavancos que lhe fazia dar o íngreme e ab-rupto da ladeira resistindo ao seu passo leve demais, o levavam tão desconcertado pela montanha abaixo, que ia-lhe sucedendo um desastre. Foi de peitos contra a testa de uma pessoinha que vinha subindo à corrida cega. Felizmente quitou-se do perigo pelo susto; caiu sentado, com o causador do acidente embrulhado ao colo. Abaixando os olhos para ver aquele improvisado nenê, deu o advogado com o rosto brejeiro e petulante de Gil.

— Oh! oh!... maganão!... disse o advogado rindo e beliscando a orelha ao pajem. Andas à tuna!...

O menino já estava de pé, sacudindo a terra da garnacha do advogado.

— Sua mercê me escuse!... A pressa com que vinha!... murmurou o pajem sofreando o riso.

— Vieste muito a propósito: pois que ia mesmo à tua procura para me levares aonde mora um tal Esteves, pescador.

— Ui!... Que quer dele o senhor licenciado?...

— Naturalmente encomendar-lhe peixe. Para que serve um pescador?... Vamos; segue adiante.

Gil não gostou dessa incumbência, e sem o respeito que tinha ao mestre e padrinho de seu querido amo, ali plantaria o velho a olhar para o tempo, e sumir-se-ia num pestanejar. Foi pois resmungando lá consigo e de muito mau modo que obedeceu à ordem, e desceu a ladeira.

O Esteves morava num casebre fora de portas à beira da praia que se estendia para a barra, mas a pequena distância dos antigos muros da cidade. Para lá ir atravessou Gil a colina onde está hoje situado o passeio público. Ao chegar à aba da colina, avistaram o pescador que arrastava em seco a canoa cheia de peixe.

— Lá o tendes, senhor licenciado. Não vedes que puxa a canoa?...

— Sim; vejo, aquele rapagão forte!...

— Boa estopa de gente, como dizem os companheiros dele!...

— Pois vai-te, que já não careço de ti. A esta hora estarão chamando por teu nome.

— Quem me chamaria, lá não está!... disse o pajem suspirando.

— Embora, vai sempre!... disse o advogado dando-lhe um piparote no nariz.

Gil não se moveu; mas vendo que o advogado se voltara para olhá-lo, tomou seu partido, e disparou à carreira para a cidade. Vaz Caminha então endireitou para o canoeiro, que lhe ficava ainda a tiro de berço.

— Sois vós o Esteves, pescador?

— Para vos servir, senhor meu!...

— Não me conheceis?... Eu sou o padrinho de Estácio!...

— Ai, senhor! Que novas me dais do pobre moço?... Pois é certo que o prenderam?...

— Certíssimo! Mas isso que vos aflige tanto, é porque o estimais?...

— A igual de pai ou irmão, ou de um com outro!...

— Por bem dele, seríeis capaz de arriscar a vossa vida?

— Mas sem dúvida! Não fazia senão o que ele já fez por mim!...

— Quando isso?...

— Uma tarde que andávamos no mar, veio uma chalupa que nos pôs a canoa em frangalhos e atirou-nos de catrâmbias pelos ares. A terra nos ficava três tantos como daqui à Vitória. Pois o moço não empurrou para mim o uru que ele tinha agarrado, e começou a nadar valente atrás da chalupa?...

— Ah! ocultou-me essa circunstância!... murmurou o advogado enternecido.

Voltando-se para o mar onde se erguia o castelo, mandou seu pensamento beijar a fronte do mancebo por aquele ato de abnegação, como pela modéstia e nobreza com que o calara, narrando a história de seus amores.

— Felizmente também salvou-se por um milagre!... acrescentou o pescador.

— Pois, Esteves, careço de saber hoje mesmo com segurança em qual dos cárceres do castelo puseram Estácio, e se é possível fazer chegar-lhe às mãos um papel! Lembrei-me de vós para isso, por saber quanto lhe sois dedicado!...

— Fazei de mim, senhor meu, como for de vosso contento e agrado, desde que é para bem dele!

— Despejai a vossa canoa, enquanto vos eu explico!...

Uma vozinha flautada soou pela nuca do advogado.

— Se é para saber onde está o cavalheiro, não é preciso!...

— Olé! o Gil?... Onde estavas, rapaz?

— Ah! brejeiro, que me lograste!... disse o advogado reconhecendo o pajem. Mas que dizes tu?... Sabes onde está ele?...

— Não soubera! acudiu Gil vaidoso. Se eu não descansei enquanto não consegui. Em antes de ontem quando o prenderam, vim seguindo para ver onde o levavam. Do mar ele me mostrou o castelo; e então corri de um fôlego só de lá aqui; saltei na canoa de Esteves, que andava apregoando seu peixe por essas ruas, e toca a remar. Ele está ali dentro, disse eu fazendo as minhas contas, e há de me ouvir e dar algum sinal. Pus-me a cantar umas trovas que ele me ensinou, rodeando por bem perto do castelo, como quem não queria a coisa, mas com o olho vivo e o sentido alerta!... Vai senão quando eu bispo uma coisa, assim a modo de farinha, caindo na canoa; olho para cima: eram uns torrões de caliça que atiravam de dentro por uma fresta estreitinha que não é capaz de caber esta mão fechada!... Então eu vi que era ali que ele estava!...

— Só por isso?... perguntou o advogado abanando a cabeça.

— Não vê que eu havia de deixar as coisas em dúvida; para me certificar bem, calei a boca, não cantei mais; as bolinhas também pararam. Torno eu a cantar por baixo da fresta, e não só a caliça a cair, mas um assobio que não me engana, ainda que quase se não ouvia pelo marulho forte!...

— Agora sim! Mas, pirralho, se tu soubeste isto há dois dias, por que não me foste logo dizer?...

O pajem fitou no velho um olhar petulante:

— Pois se Sua Mercê foi causa de o meterem lá dentro!... Fui dizer a quem o quis livrar da guarda lá na Graça, e o há de livrar da prisão.

— Quem é esse?...

— O maior amigo dele, o Sr. Cristóvão, que foi quem mandou o Capitão de Mato João Fogaça, homem cá do meu peito, esse tal!... Capaz de ir no inferno buscar o Tinhoso pelas orelhas!...

— Pois agora trabalharemos todos juntos esse impossível a ver se o conseguimos.

— Agora mesmo quando topei com o sr. licenciado ia eu para lá, porque o Sr. Cristóvão me disse que estivesse de espreita e logo que aparecesse alguma coisa de novo lhe fosse levar. Ora inda agorinha mesmo vi eu lá na fresta uma tira de pano branco assim pestanejando como bandeirola!... Quem sabe o que é?...

— É ele que te chama sem dúvida para dizer alguma coisa. Vai sem detença ver.

Acabava Esteves de esvaziar a canoa e pô-la a nado; Gil saltou dentro, e a remo teso vogaram pela baía afora em direção ao castelo. Aproximando-se do rochedo submarinho, fronteiro à seteira designada pelo pajem, parou o barquinho, e os dois, um na popa, outro na proa, começaram a pescar a anzol. Gil soltou o seu descante.

A bandeirola branca de que falara apareceu outra vez na seteira; solta ao vento, adejou pelos ares, e foi cair longe sobre as ondas. A canoa singrou rápida como um peixe naquela direção; com espanto de ambos o pano boiava sobre a água, e só lentamente e depois de algum tempo foi-se afundando; mas Esteves atirou-se ao mar, e mergulhando foi agarrá-lo quando ele ia já sumindo-se da zona esclarecida das vagas.

De posse do objeto tornaram os dois à praia, onde os esperava o advogado, que de longe acompanhara com a vista toda a manobra. O curioso Gil tratou logo de examinar a bandeirola para saber o que desejava Estácio; porém por mais que virou e revirou a tira de pano branco, nada viu que pudesse orientá-lo. Afinal cansado de procurar, dobrou-a e meteu na algibeira:

— O que manda ele? perguntou Esteves.

— Sei cá!... respondeu Gil despeitado. Isso é lá gíria dele! Só o velho a pode entender!...

Vaz Caminha recebendo o misterioso objeto das mãos de Gil, esticou-o entre os dedos, e esteve observando-o por algum tempo com séria atenção. Ele sabia que um homem inteligente como Estácio, na posição difícil em que se achava, era capaz de transformar o mais insignificante objeto em um instrumento de sua vontade; e pois procurava ler naquele fragmento de lençaria como em uma esfinge.

Afinal seus olhinhos cintilaram:

— Já sei!... já sei!... murmurou. À noite lhe levareis o que ele pede, Esteves!... Aqui estarei ao escurecer!...

— Mas o que pede ele, senhor licenciado?...

— Depois vos direi. Vinde!...

Vaz Caminha e o pajem voltaram à cidade; em meio do caminho interrompeu o velho a sua meditação para perguntar ao menino:

— Gil, tu viste de perto e por duas vezes a seteira do cárcere; podes tu dar-me com certeza a largura dela?...

— Esperai, senhor licenciado!...

— Caberá esta cana?

— Até o castão, duvido, tão estreita é!... respondeu o pajem apalpando a bengala.

— Mas a ponta?

— Essa com certeza!...

— Está bem; podes ir-te a casa. Não é preciso que refiras o que é passado a mais ninguém; quando for necessário, eu mesmo recorrerei ao Senhor Cristóvão de Garcia!... Entendeste, pequeno? Olha, não faças mal a teu amo, querendo fazer-lhe o bem!...

— Ai, não; eu vos prometo nada dizer; mas ao menos dai-me alguma esperança que me sossegue!...

— Breve beijarás a mão a teu cavalheiro, e o verás satisfeito e feliz!... Estás contente?

— Deus vos ajude, senhor licenciado!... Que contentamento terei!

Vaz Caminha entrou na primeira loja aberta que encontrou para descansar da longa caminhada, e mercar alguns objetos de que tinha necessidade.