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As Minas de Prata/III/II

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A gente do bergantim se apinhara na proa para acompanhar as chalupas, que lançadas a remo e vela decididamente ganharam avanço sobre a catraia.

Um grumete se aproveitara dessa circunstância e da completa solidão em que estava a câmera, para correr à despensa e lambiscar alguma passa e queijo desgarrado. Estava o ratinho de bordo bem ocupado a roer com as unhas o miolo de um parmesão já estreado, quando sentiu passos sutis na escotilha.

Cuidou que fosse o despenseiro, e esgueirando-se como uma sombra ao rés do tabique, ganhou o passo da sala d'armas, e agachou-se junto à porta; ora do outro lado estava justamente um monte de lambazes, que fez simetria perfeita com a trouxa do rapazito. Estácio entrando investigou com os olhos e apalpou depois com o pé o primeiro dos vultos; conjeturando do outro por esse, passou sem a mínima suspeita. Levava a atenção na sentinela, e por isso não percebeu o suspiro do grumete.

Este já livre do susto, ia-se desenrolando para ganhar o convés, quando ouviu estranho rumor na sala de armas; deitou o nariz à fresta da porta, e viu em morte-cor o quadro terrível: a sentinela com os olhos esbugalhados, as bochechas intumescidas, e a língua bolçando da garganta. Viu, e desmaiou de susto: mas por um movimento instintivo de defesa, antes de perder o sentido, a mão frouxa conseguira dar volta à chave, levantando assim barreira entre ele e o perigo. A vertigem foi curta; recobrados alguns espíritos, o rapaz recordando a imagem que vira, fugiu espavorido; a voz na garganta, queria gritar e não podia.

A essa circunstância fortuita devia Estácio a crítica e desesperada posição em que se achava. O menino galgava aos dois e três os degraus da escada, e ia cego à proa avisar a tripulação e abrigar-se à sombra dos marujos. Estes correriam às armas, e assim prevenidos esmagariam os sete índios.

Mas a sagacidade do selvagem brasileiro estava nesse momento a bordo.

Os índios obedecendo à recomendação de Estácio, esperavam imóveis e mudos: mas o ouvido sempre à espreita, o olho sempre vivo, a mão sempre lesta. Os saltos do grumete na escada não lhes escaparam; um dos selvagens resvalou pelo convés aproximando-se da escotilha; mal viu ele assomar um vulto que não era do estudante, e virar de corrida para o lado de proa, imaginou por longe o que havia passado na câmera.

O menino estava fora do alcance do braço, e a proa pouco distava; o menor grito ou ruído suspeito despertava a gente. Felizmente os cabos que suspendiam as chalupas estavam ainda enrolados ao longo do tombadilho; o selvagem espreitou o momento, imprimiu-lhe um movimento, e o grumete escorregando estendeu-se; já o índio caía sobre ele, cobrindo-o com o corpo, como cobrimos um objeto com a palma da mão.

Seu primeiro cuidado foi apertar a boca do menino de encontro ao peito para lhe abafar o grito; depois enrolando-o em trouxa desceu com ele à escotilha:

— Onde está o branco?

O menino forcejou para falar.

— Aponta!...

Guiado pelo dedo do grumete, foi até à porta da sala d'armas. O selvagem levou a mão à chave; Estácio ouvira o rangido; a explosão pairou sobre o navio. Mas o selvagem lembrou-se súbito que o mancebo ali fechado pelo inimigo devia estar pronto, como no seu caso ele estaria, a cair sobre no primeiro instante; retirou pois a mão, e pelo buraco da fechadura fez sinal.

— Abre!... disse Estácio adivinhando a presença de um dos selvagens.

A porta abriu-se então. Sem perda de tempo amordaçaram o grumete, e em falta de corda o prenderam debaixo de uma couraça de ferro; fechada a sala d'armas, subiram ao tombadilho, e trancaram a escotilha, para evitar que o inimigo se abrigasse na câmera.

Então divididos em dois pelotões caíram de improviso e por ambos os bordos sobre os desapercebidos holandeses. O choque foi terrível; dos que não sucumbiram, uns deitaram-se ao mar, outros grimparam pelas cordas e enxárcias; o resto escoou entre o ferro inimigo ganhando a outra extremidade do navio. Avaliando melhor do número dos assaltantes, fizeram rosto ao perigo. O combate renhiu-se com furor, e foi pelejado cerca de meia hora.

Afinal Estácio e sua gente, melhor armados, fortalecidos pela calma, levaram a melhor. O grupo dos bravos flamengos, repelidos até a amura do navio, sucumbiu a um e um; do lugar onde estavam, à medida que o ferro inimigo os abatia, sepultavam-se nas ondas, como vinte anos depois o seu Almirante Adrião Pater. Também para eles, simples, mas valentes marujos, o oceano era o único túmulo digno, e quiçá o mais grato aos seus manes.

Três badaladas soaram no sino de bordo: era o sinal convencionado para anunciar a Antão que a vitória era ganha, e podia recolher ao navio.

Senhor do bergantim, o pensamento do mancebo voou como um pelouro ao outro navio. Ele e sua gente tinham recebido algumas feridas, porém ligeiras; precedidos pelo terror da primeira vitória, a segunda os esperava.

— Ao outro!... exclamou.

Saltaram às enxárcias para passar a bordo da caravela pelos estais e adriças da gávea; mas o inimigo burlou o seu arrojo.

O terror, como sempre costuma, exagera o perigo a proporções enormes; a gente da caravela em alvoroço supunha que era a guarnição inteira de alguma nau inimiga que tomara o bergantim de abordagem; e os fugitivos, escapos dali a nado, longe de reduzir o vulto ao medo, ao contrário o agigantavam. Temendo pois igual sorte, a gente da caravela só pensara na fugida; em um instante picaram a amarra, deram pano ao vento e surdiram avante, singrando para o norte.

Estácio os olhou, iroso e despeitado de que lhe escapassem.

— Agora toca a enxugar o corpo; vamos brincar com fogo, rapazes!...

A roupa molhada do mar foi substituída por trapos e panos que encontraram no navio; da sala d'armas trouxeram cabides de arcabuzes e mosquetes, bem como munições e mechas.

Escorvado de novo o rodízio de popa, o mancebo encostou-se a ele e esperou.

Raiava a manhã.

Nesse momento, pela ponta sul de Itapoã surgia a catraia, e logo em seguida escaladas a pequena distância as quatro chalupas holandesas. O Antão fizera proezas. A princípio valeu-se da estratégia de guinar amiúdo o bordo, fingindo mudar de direção; parecia ora que buscava ganhar a terra firme, ora que seguia rumo direito, ora que ia abicar à ilha. A cada uma dessas evoluções as chalupas igualmente variavam o rumo; e daí resultava sempre para a catraia uma vantagem, não só por ser pronta a iniciativa, e a imitação ter de demorar-se o tempo preciso para ver, mas sobretudo pela rapidez com que se efetuava sua manobra. Da popa dava ele aviso ao selvagem que estava na proa, e este saltava no mar; então um empuxão à cana do leme a bombordo, uma peitada a estibordo, e o batelão virava como um molinete sobre si mesmo.

Mas apesar da estratégia e do avanço que tivera, a catraia perdia terreno: uma manobra habilmente executada ao voltar a outra ponta da ilha deu algum fôlego ao Antão. Os holandeses pensavam que o inimigo trataria de escapar-se para um lado ou para outro, e não podiam imaginar que cometesse a loucura de aproximar-se dos navios de que fugira. O capataz aproveitou-se desse engano, e de repente contornando a ilha, se distanciara dos seus perseguidores.

Afinal uma das chalupas chegando a tiro de arcabuz, disparou contra a catraia a primeira carga de fuzilaria, quase toda perdida; porém segunda e terceira iam seguir-se, e afinal viria a abordagem.

Estácio então avaliou de longe a situação da catraia.

— Qual tem melhor olho? perguntou.

— Em falta de Guaraçu, eu! disse um.

— Na popa, que apanhe o mastro.

O índio ajoelhou e fez a pontaria; o mancebo retificando-a, achou-a perfeita.

— Fogo!...

O grito de Antão respondeu ao longe.

— Bravo!...

Dissipado o turbilhão de fumo conheceu-se o estrago produzido na chalupa; aproveitando-se do espanto causado entre os holandeses, a catraia continuou a salvo e atracou ao navio; os três prisioneiros foram içados como fardos, e a judia recebida pelo mancebo com a possível cortesia. O Antão Gonçalo pisou com sentimento indizível de júbilo esse soalho que fora seu chão tantos anos.

— Olá! mestre!... gritou-lhe Estácio; cuidado com a catraia!

E continuou a fulminar os escaleres holandeses, dos quais só escapou o último, arripiando carreira. Os tripulantes ou morreram no combate, ou foram acabar depois às mãos dos selvagens nalgum ponto da costa, pois deles não houve mais notícia.

— A caravela? perguntou o Antão.

Estácio apontou para o horizonte, onde o navio aparecia como uma sombra.

— E então? Que fazemos aqui parados? gritou o velho marujo.

— Sois capaz de navegar o bergantim? Com que maruja?

— Os meus índios!... Que mais quereis?... São antas; tanto correm em terra como nadam n'água. Vereis!...

— Pois arranjai-vos com a manobra; eu me ponho ao leme.

— Ah! entendeis do riscado?...

— Não; mas Deus proverá.

A intenção de Estácio era queimar os dois navios e voltar à Bahia com seus prisioneiros; mas tendo-lhe escapado a caravela, o plano do Antão lhe sorria.

Mandou que lhe trouxessem Pedro:

— Toma, rapaz, a bolsa do holandês, que te foi prometida. Põe-te a nado, e safa-te!...

— Já agora prefiro ficar convosco!...

— Acho que não fazes bem.

— Por que razão, senhor?

— Não tenho confiança em ti; por conseguinte porei ao teu lado um destes camaradas para torcer-te o gasnete à primeira suspeita. Pensa bem; ê um perigo.

— Senhor, eu não sou velhaco! replicou o rapaz com lágrimas nos olhos. Se me passei para vós, abandonando os que me assoldaram, foi porque me vencestes à força; resisti quanto pude, do mais não tenho eu culpa. A bolsa, aceitei-a porque veio do meu ganho; e pois que me privastes de tão boa freguesia, justo era que me desforrásseis. Mas agora que me ganhastes, não posso ser senão vosso.

— Está bem; ficai!

Com pouco o bergantim desfraldando ao vento as velas todas até os últimos papa-figos, singrava airosamente rumo do norte, com a proa sobre a caravela.

Eram oito horas do dia; o sol entornava cascatas de luz sobre as solidões do mar. O bergantim deitando cinco a seis nós por hora, prosseguiu com ardor a caça começada; ganhava sobre a caravela meio nó, de modo que só lá por volta da tarde a não escassear o vento podia chegar ao alcance do canhão.

Antão descansado a respeito da manobra passara uma revista pela despensa, e havia arranjado sobre a meia laranja um suculento almoço; paios, bolacha, queijo e vinho; ele e o estudante fizeram-lhe as honras com excelente apetite.

Quando estavam no fim da refeição, achegou-se deles Esteves:

— A judia vos busca, Senhor Estácio.

— Dizei-lhe que já sou com ela.

Como preparava-se para descer à câmera, viu que lhe vinha ao encontro a formosa israelita. O mancebo não se pôde esquivar à admiração, contemplando a bela criatura. Os grandes olhos negros, de intenso brilho, nadavam em um fluido límpido, como se ainda os orvalhasse o soro das lágrimas; não havia sorrisos no seu lábio, mas que sorrisos valiam a bonina deles?

— Senhora, escusai, disse o estudante catando a cortesia devida às damas, se não vos agasalho como era meu dever e mais ainda meu desejo. O caso imprevisto que me fez hóspede vosso, quis que ainda neste ponto incorresse em vosso desagrado.

— Outra coisa para mim de maior monta me traz à vossa presença, senhor cavalheiro.

— Melhor faríeis ordenando que fosse eu à vossa.

— Vai quem espera mercê; e muito alcança, às vezes, se obtém audiência para o que tem a pedir.

— Desterrai esse temor, senhora; com muito empenho vos escuto.

Raquel afastou-se fazendo ao mancebo um aceno para que a seguisse. Tirando então de sob a peliça que a envolvia o cofre de filigrana com suas joias, abriu-o de modo que só Estácio o visse:

— As joias que estão neste cofre valem, segundo ouvi, muitos centos de mil cruzados; além delas meu pai traz a oparlanda cosida de ouro; tudo isto vos pertence se concederes a vida ao velho Samuel e à sua filha.

Estácio sorriu com benevolência:

— Guardai, donzela, vossas lindas joias para adereçar-vos, que a nenhuma iriam elas melhor que à sua formosa senhora. Quanto ao ouro de Samuel, todo ele fundido não pesa um só fio do cabelo de sua cabeça. Vosso pai é mercador, e vós filha; pensa ele que tudo se compra, vós, que tudo se pode esperar em benefício do autor de vossos dias. Por isso a ambos vos perdoo.

Raquel, apesar do tom brando dessas palavras, sentiu a têmpera d'alma varonil, como sob o macio estofo de um divã acetinado sente-se a vibração elástica do aço. Arrependeu-se quase do passo que tinha dado, e receou tivesse agravado a sorte do pai, ofendendo o brio do mancebo. Sob essa pressão vergou a fronte lânguida.

— Outra moeda, senhora, tendes para mim de maior preço, com a qual muito, senão tudo podeis obter.

Raquel corou, erguendo os olhos magoados:

— Essa linguagem, cavalheiro...

— Apresso-me em declarar-vos; a moeda de que vos falei, não é outra, senão a verdade. Essa sim, é ouro fino e de lei!

— Não seria capaz de faltar a ela!

— Creio bem, mas podeis encerrar-vos no silêncio.

— Que exigis de mim?

— A confissão inteira do que é passado a respeito da fuga dos dois flamengos.

— Uma impiedade! Que as palavras da filha sirvam para condenar o pai!...

— Para a condenação de vosso pai, com mágoa vos digo, não hei mister de mais do que já sei da melhor fonte. Samuel, grão-mestre dos judeus do Salvador, foi quem promoveu a fuga dos flamengos. Em sua casa se ocultaram até partirem da cidade; dele receberam dinheiro e a missiva que para em meu poder, convidando o inimigo a vir atacar a Bahia.

Raquel estremecia a cada palavra do mancebo:

— Pois se tudo sabeis, que mais quereis de mim?

— Há um ponto que eu ignoro; não compromete mais vosso pai, antes pode favorecê-lo.

— Qual ele é?

— Quem foi o traidor, que descobriu o santo, e entregou a planta da cidade levantada pelo sargento-mor?

Raquel empalideceu; a palavra borbotou-lhe do seio como uma lava:

— Foi o mais vil dos homens!...

— Fidalgo?

— Para vergonha de seu nobre sangue!...

— O nome?...

— Poupai-me a dor de o proferir!

Estácio refletiu:

— Esse homem, senhora, seria o mesmo, cujo corpo depois que o assassinaram, foi lançado à rua, pouco distante de vossa casa, cerca de onze horas?

— Não estava morto; sim ébrio!

— Era ele então?... Um oficial de a cavalos, se não me engano!...

— Pois que tanto sabeis, vede o resto!

Raquel tirou do seio o vale de D. José, que na noite antecedente tomara das mãos do pai, e entregou-o ao mancebo.

Estácio leu corando de vergonha; terminando, a donzela referiu-lhe em poucas e acres palavras a cena passada na véspera entre ela e o alferes.

— A vida e a liberdade de vosso pai, senhora, por este papel e o segredo profundo do que ele encerra!

— Guardai-o e Deus vos recompense.

— A promessa que vos faço não se pode realizar já; depende ela do governador, em nome de quem procedo; mas empenho-vos minha palavra.

— Ela me basta! disse a judia com nobreza.

Estácio ficou pensativo, relendo lentamente o papel que tinha diante dos olhos:

— Muito amigo sois desse homem, cavalheiro?

— Ele? exclamou Estácio. Vota-me ódio profundo.

— Bem me parecia que entre vós e ele só ódio pode existir. Mas então por que exigis que se cale sua infâmia?

— É irmão da mulher que eu amo!

— D. Inês?...

— Compreendeis-me?... Todo o segredo!...

— Eu vo-lo juro.

Nesse instante um índio soltou um pequeno grito gutural com que costumava chamar a atenção, e que se pode talvez exprimir assim:

— Huhu!...

À esquerda, na extrema do horizonte, descobria-se a mastreação e velame de uma embarcação de alto bordo, que seguia o mesmo rumo, porém muito amarrada; devia estar a três léguas de distância: Estácio assestou o óculo, que passou ao contramestre.

— É uma fragata... e portuguesa. Vai para São Sebastião!

— Vira de rumo?...

— E vem de Pernambuco.

— Bem pode ser o novo governador, D. Francisco de Sousa!

— Estava a chegar?

— Já tardava!

— Então não é outro.

Ambas as suposições eram exatas.

A fragata era realmente portuguesa e trazia a seu bordo D. Francisco de Sousa, governador nomeado para o Estado do Sul; tendo-se demorado na travessia da Europa por causa da caça a dois navios holandeses que a desviaram de sua rota, refrescara alguns dias em Pernambuco, e demandava agora o porto do Rio de Janeiro.

D. Francisco de Sousa é um vulto importante na história dos tempos coloniais, pela energia do caráter, agudeza de engenho e grandes letras; embora apenas um momento perpasse pela cena deste drama, teve uma grande influência na crônica das minas de prata. Em 1591 viera ele à cata daquelas minas com a promessa de uma recompensa, negada ao seu descobridor; agora, dezoito anos depois, voltava com renovação da promessa à busca daquele imenso tesouro, cujo segredo a terra guardava.

Vaz Caminha não se enganara pois; era o roteiro de Robério Dias que trazia outra vez à América o orgulhoso fidalgo português.

Quando mestre Brás ao desembarcar em Lisboa foi ao palácio dos Sousas visitar o antigo governador, não o levou mera reverência ou acatamento. O judengo que embaçara o frade e os companheiros, fingindo-se enjoado e ébrio durante a palestra da ceia, ouvira tudo; e, como o P. Molina, farejara a existência do roteiro no poder de D. Diogo de Mariz. Revelou portanto ao fidalgo o que sabia e conjeturava. D. Francisco correu a Madrid; teve larga conferência com o ministro; e por fim, depois de mil protelações, obteve a divisão do Estado e o provimento para o Sul.

Seria a sua segunda vinda ao Brasil tão funesta ao filho, como fora a primeira ao pai?

Já a Providência os aproximava. De milhares de léguas que separavam esses dois homens, o soberbo fidalgo e o órfão desvalido, só restavam três; e em pouco talvez se tenham eles de encarar frente a frente como dois inimigos hereditários; entre ambos erguia-se a memória da vítima!...

Também de bordo da nau tinham avistado o bergantim à popa e a caravela à proa como os dois extremos da base de um triângulo, de que ela ocupasse o vértice. O comandante depois de examiná-los atentamente com o óculo de longa mira, ficou pensativo:

— Não vos parecem os nossos dois holandeses da Ilha de Fernando de Noronha?

— Eu jurara que são!... respondeu o imediato.

— Se não fosse o senhor governador estar tão impaciente de chegar!...

— Pois vão no mesmo rumo, que mau é tentar!...

— Avisais bem!

Embocando a buzina mandou a manobra:

— Larga escotas a bombordo! Cassa a estibordo! Orça à terra!...

Uma hora depois, mestre Gonçalo exclamava a bordo do bergantim:

— Oh! oh!... Os amigos vão-se chegando. Quem sabe se já não farejam a caça.

— Quem? Os da nau? perguntou Estácio vivamente.

— Os ditos cujos. Não vedes como atravessam manhosamente? Por tarde temo-los conosco.

— E não há meio de evitá-los?...

— É o que não custa; mas deixaremos escapar a caravela?

— Isso não!...

— Depois quem sabe?... Talvez os flamengos com medo da nau se cosam com a terra, e vão se esconder nos baixos dos Abrolhos! Nesse caso embaçamos cá os camaradas, e podemos pilhar a caravela como tatu no buraco.

— Conheceis estas paragens?...

— Se não conhecera!... Muito herege inglês e francês caçamos por aqui no tempo do Senhor D. Jerônimo de Albuquerque. Bom capitão de mar, aquele! Como ele não vem cá segundo.

O contramestre voltou-se:

— Olá de proa!...

Foi Pedro quem acudiu:

— Vai lá por baixo, e vê se me desencavas a bandeira real de Espanha. É impossível que estes cães de flamengos não a trouxessem a bordo, para nos pregar das suas.

Por volta da tarde o horizonte apareceu acolchoado de grossas nuvens bronzeadas. O vento ponteiro que se levantou de sudoeste anunciou a repetição da tempestade da véspera.

O bergantim, singrando galhardamente, ganhara tanta vantagem, que estava quase a tiro de canhão da caravela; como previra o contramestre, os flamengos, que a princípio buscavam a salvação no alto mar, com o aparecimento de outra vela se encostaram à terra. Não obstante, a nau tomando o vento em cheio pela popa aproximava rapidamente do bergantim que apenas o tomava a seis quartas.

Estácio estava inquieto, receando algum obstáculo.

— Que alcance dais a este rodízio, mestre Antão?

— Cinquenta quintais... Pode alcançar cerca de trezentas braças.

— E a caravela está?...

— Pouco mais do que isso!

— Então experimentemos!...

Carregada a peça com uma carga formidável, o moço fez a pontaria.

— Na mastreação!... disse o contramestre. Cortar-lhe as asas!...

A bala partiu, e foi cair perto da caravela, mas já fria e sem força; contudo o mancebo não desanimou, e os tiros sucederam-se uns aos outros. À medida que o alteroso bordo da nau se aproximava, o sangue fervia-lhe no coração de impaciência; e nova descarga partia. Afinal foram seus esforços coroados de sucesso: uma bala cortou a meio o mastro da mezena, diminuindo consideravelmente o pano à caravela, cuja marcha atrasou.

A tempestade rugia; sobre o manto dela desdobrava-se a noite tormentosa. Quando o primeiro trovão soou a sota-vento, do lado oposto ouviu-se o tiro do canhão a bordo da nau; as quinas portuguesas desdobraram-se majestosamente na popa, enquanto o pavilhão de capitão-general borboleteando pela adriça, foi tremular no tope do mastro grande.

O bergantim correspondeu à salva, içando igualmente a bandeira real de Espanha e Portugal. Os dois navios alongando-se em rumos paralelos, foram assim um instante a par e par, e tão próximos que se podia falar sem buzina de um a outro bordo.

— Que navio é esse? perguntaram.

— Uma presa flamenga.

— Venha o comandante a bordo.

— Não tenho tempo!... respondeu Estácio.

— Obedecei, senão vos meterei ao fundo!...

O mancebo calou um instante:

— Ponde vós o escaler ao mar; a mim não sobra gente para isso.

Em um instante arreou-se o escaler da nau com dois marinheiros e um oficial; os navios ficaram ao pairo durante a travessia, continuando depois a sua marcha. Estácio, havendo feito suas recomendações a Antão e Esteves, passara-se para bordo da nau, onde apenas chegado foi conduzido à popa. Ali estava o Governador D. Francisco de Sousa com sua comitiva, e ao lado o capitão-mor do vaso e oficialidade.

A presença do mancebo produziu no grupo de fidalgos e oficiais vária impressão. A beleza viril de sua fisionomia, que realçava nesse momento um assomo de intrepidez, inspirava interesse e simpatia; mas as roupas enxovalhadas no mar e no combate, as mãos negras de pólvora, deviam excitar uma prevenção a respeito da qualidade e posição do mancebo.

— Sois então o comandante da presa? interrogou o governador.

— Quem me interroga, e com que autoridade?

— Aquele pavilhão já vo-lo anunciou, mancebo! replicou o fidalgo com severidade.

— Como a bandeira real içada a meu bordo anunciou ao sr. capitão-general, que eu navego ao serviço d'El-Rei!

— Prudência, mancebo. Falais a D. Francisco de Sousa, governador, e capitão-general do Estado do Sul.

Estácio empalideceu:

— Acatarei em Vossa Senhoria a autoridade de El-Rei, nosso senhor...

O mancebo carregou nas últimas palavras para tornar bem frisante o seu pensamento, que era separar o cargo da pessoa, nivelando ao mesmo tempo a ambos, o poderoso fidalgo e o fraco mancebo, na qualidade de súditos do mesmo soberano.

— Como vos chamais?

— Melhor é que o ignoreis, senhor; porque esse nome deve ser uma recordação pungente para Vossa Senhoria.

— Que significa isto?... Explicai-vos melhor! exclamou o governador dardejando um olhar de cólera.

— Sou filho de Robério Dias, senhor governador!

— Ah!... Sim, ele deixou um filho!...

— Na miséria, em que tem vivido até hoje.

— Não se trata disto agora. Onde e como fizeste esta presa?

— Capturei-a ontem à noite na Ilha de Itapoã, onde estava fundeada.

— Com que autoridade?... Admira-vos a pergunta? Igual me fizestes pouco há!

— Com a autoridade que tem todo o súdito de El-Rei de servi-lo e defender os seus estados; autoridade justa e legítima como nenhuma outra, pois nasce de um dever sagrado. Onze homens apenas metem-se numa catraia, e à custa de grande esforço e ardil obtêm capturar um bergantim tripulado por sessenta marujos, matando a maior parte da tripulação; e quando, servindo-se das armas do inimigo, o perseguem, tudo isto sem custar um ceitil ao real erário, vós, sr. governador, lhe saís ao encontro, para lhe perguntar com que autoridade fizemos isto?

Essa linguagem firme abalou todos que a ouviram; mas restava uma suspeita no espírito de D. Francisco.

— Sem dúvida, mancebo, que praticastes uma ação valorosa, e eu vos louvo por vosso arrojo; mas não sabendo se a fizestes em nome de El-Rei como dissestes, ou por conta própria, viajareis de conserva comigo até São Sebastião, onde averiguaremos o caso, e se for como dizeis, darei conta a El-Rei que vos premiará.

— Suspeitais que eu seja um pirata, senhor?... replicou o mancebo com azedume. Assim devia julgar o filho, quem há dezoito anos condenou o pai como traidor!

— Deixai em paz as cinzas paternas, mancebo, não as revolvei que podem tisnar-vos ainda!... Basta; já resolvi o que tenho por melhor.

— Com vossa permissão, o que resolvestes não é possível.

— Por quê?

— A minha obra não está acabada!

— Nós a acabaremos juntos.

— Que diríeis, senhor governador, de quem vos quisesse usurpar os poderes de que vos El-Rei investiu?...

— Qual paridade há nisso?

— A captura daquele navio é meu direito, como é vosso a patente dada por El-Rei.

— Quero eu tomá-lo!...

— Não é a mim que o toma V. S.a, mas ao Senhor D. Diogo de Menezes e Siqueira, governador e capitão-general do Estado do Brasil, a quem só reconheço como tal, pois a nenhum outro ainda prestaram homenagem as Câmaras das cidades e vilas!...

— Onde está a patente que dele trazeis?

— Não careci dela para arriscar a minha vida, menos agora que a empresa está feita.

— Tenho resolvido!

— Atenda o senhor governador que será causa de escapar-nos o inimigo; já ele ganhou sobre nós e com a noite nos fugirá.

Era real o que dizia o mancebo, nem essa circunstância escapara aos oficiais.

— Bem; consinto que tomeis a dianteira; mas meter-vos-ei a bordo uma guarda, para segurança.

— O primeiro soldado que pisar nas tábuas do bergantim sem permissão, será também o último, porque o navio arrebentará com a explosão do paiol. É minha ordem!... E agora podeis fazer de mim o que vos aprouver!...

O mancebo cruzou os braços, e pôs-se a olhar a caravela, que envolta pelas sombras da noite tormentosa, confundia-se já com o vulto da terra assomando a sota-vento.

As organizações superiores têm um poderoso magnetismo, ao qual não escapam outras de igual têmpera. O heroísmo da empresa audaciosa, executada pelo brioso mancebo em tão verdes anos, a firmeza do seu ânimo junto à agudeza de engenho, conquistaram a admiração do fidalgo. Por outro lado D. Francisco sentia, que ele não tinha justo motivo para reter o navio; a suspeita de pirataria era inverossímil; quando muito se podia supor um corso feito sem carta e por conta própria. Mas na colônia do Brasil, tão desamparada da Metrópole quanto acometida por aventureiros de todas as nações, e onde a defensão do Estado estava quase sempre confiada aos esforços particulares, podia-se com razão imputar como delito a Estácio o seu ato de bravura, e impedi-lo de coroar a sua obra com a destruição do outro navio?

Essas razões ponderadas em conselho modificaram a primeira decisão do governador; o mancebo foi restituído ao seu navio. Quando ele sentiu de novo sob os pés as tábuas do bergantim, respirou como Anteu depois de tocar a terra.

— Reparemos o tempo perdido!...

A tempestade desabava. O bergantim, como um corcel por algum tempo sofreado, disparou corcoveando sobre as ondas. Impelido pela refega do temporal, arrostando temerariamente a fúria dos elementos, parecia um dos brancos alcíons que ao cair da tormenta, atravessam calmos e serenos por cima das ondas.

D. Francisco sorriu murmurando consigo esta paródia sinistra:

Sit tibi aqua profunda.