As Minas de Prata/III/III

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Terça-feira da Purificação, em que se contavam dois de fevereiro do ano da graça de 1609, O provedor-mor da alfândega de São Sebastião do Rio de Janeiro estava ocupado em rever papéis velhos, quando sua mulher lhe mandou avisar pela caseira, que um padre da Companhia o procurava.

O fidalgo ordenou que o fizessem entrar, e interrompendo as suas notas, esperou a visita anunciada.

D. Diogo de Mariz teria cerca de trinta anos; mas os últimos cinco decorridos depois da catástrofe que lhe roubara de um só golpe toda a família, haviam assolado aquela mocidade robusta e viçosa. A sua fronte alta e inteligente, como a de seu pai, começava a despovoar-se, e a tez morena, menos crestada do sol do que outrora, parecia curtida pela dor e saudade.

Mas o que perdera em brilho e frescor da idade, ganhara em gravidade de aspecto e nobreza de gesto. Começava a adquirir a beleza varonil, que adornava o busto venerável de D. Antônio de Mariz, ainda nos últimos dias da sua existência.

A sala em que se achava o fidalgo era como a página desdobrada do íntimo de sua alma: ali estavam em torno, a cingi-lo, as recordações mais palpitantes de sua vida. Os retratos de seus pais, de Cecília e Isabel, pendiam das paredes; e em frente à papeleira onde escrevia, um pintor do tempo imaginara sob as indicações do fidalgo uma cópia muito semelhante da casa do Paquequer assentada sobre o rochedo à margem do rio. A um lado via-se uma palhoça, e encaminhando-se a ela um índio que figurava Peri; no terreiro D. Antônio passeando com um mancebo fidalgo que representava Álvaro de Sá. Mais longe, perto do casarão dos aventureiros, a desengonçada figura de Aires Gomes. D. Lauriana e as moças apareciam sentadas nos degraus da escada, trabalhando em obras de agulha e debuxo.

Bastava ao fidalgo erguer os olhos e circular esse aposento para se imaginar ainda no Paquequer, vivendo a alegre e descuidosa vida de mancebo que fruíra naqueles ermos, cercado de sua família. Então embalava-se algumas horas nessa doce ilusão, até que afinal lhe subia à memória uma ideia pungente que amargurava todas as reminiscências; recordava-se com desespero que fora ele, insciente é verdade, a causa primeira da calamidade que o isolara no mundo.

Nesse instante, ao recolher no canto da arca as notas que escrevia, assaltou-o essa ideia suscitada pela vista de um objeto ali guardado. A visita que entrou depois, veio encontrá-lo submerso no doloroso recordo dos tempos idos.

O P. Gusmão de Molina, pois era ele quem procurava a essa hora o provedor, penetrou no aposento com a orgulhosa humildade que acompanhava o jesuíta ao palácio, como à choupana; e era o traço característico, dessa, mais que de nenhuma outra ordem religiosa. Cada membro dela sentia-se pequeno como individualidade, mas como parte da poderosa associação conhecia que nele estava a força da Companhia. A humildade trajando as vestes profanas da soberba, o corpo do apóstolo sob a túnica do patriciado: eis o jesuíta.

Da porta ao fidalgo que se erguera para recebê-lo, o P. Gusmão fez as três reverências, conforme o ritual da Companhia, cruzando as mãos no peito à moda oriental. Mas não foi unicamente à cortesia que se aplicou a atenção do frade durante esse curto instante: aproveitando o movimento da cabeça, seus olhos circularam duas vezes o aposento, uma de alto a baixo, outra da esquerda à direita.

— É o Senhor D. Diogo de Mariz, em presença de quem estou?

— Sim, Reverendo. Queira ter a bondade de acomodar-se.

O jesuíta sentou-se.

— Minha pessoa é desconhecida a Vossa Mercê, senhor provedor; mas não assim o meu nome. Eu sou o P. Gusmão de Molina!...

— Gusmão de Molina!... Não me recordo!... disse lentamente o fidalgo sondando sua memória.

— Não admira, pois faz mais de ano que viu esse nome e uma vez tão somente.

— Dir-me-á V. Paternidade onde o vi?

— Na carta que em setembro do ano atrasado escrevi a Vossa Mercê, de Lisboa onde então me achava.

— Sobre que objeto? perguntou o fidalgo, como quem se lembrava, mas queria verificar a lembrança.

— A propósito do roteiro que pertenceu a Robério Dias e se acha em poder de Vossa Mercê.

— Ah! exclamou D. Diogo.

— Nessa carta avisava eu ao senhor provedor haver-se perdido a que Sua Mercê escrevera anteriormente à mulher de Robério Dias...

O frade com os olhos cravados no semblante do fidalgo proferiu as últimas palavras e continuou repetindo:

— Escrevera à mulher de Robério Dias; pelo que, sendo possível apresentar-se com ela alguma pessoa inculcando-se procurador daquela dama, para receber o roteiro, prevenia em tempo que só a mim, em nome da Companhia, cabia reclamá-lo, pois o filho de Robério Dias e seu único herdeiro, é nosso irmão noviço.

— Recordo-me agora perfeitamente; tenho-a ali.

D. Diogo ergueu-se, e abrindo a arca tirou de um escaninho um papel, que estava atado a um embrulho cerrado e lacrado com pingos verdes. Desdobrando o autógrafo já amarelado do P. Molina e percorrendo-o com os olhos para certificar-se de sua identidade, o apresentou ao jesuíta. Este agradeceu; por comprazer recebeu o papel e leu o que ele sabia de cor.

Enquanto isto, o fidalgo de novo acabrunhado por essa evocação do passado, que ainda há pouco o pungira, reclinara a nobre fronte carregada de mágoas. Ao erguer a vista do papel deu o P. Molina com essa fisionomia quebrada por triste desânimo, e torvou-se; os cantos de sua boca plicaram-se como duas garras, que ele teve logo o cuidado de cobrir com um sorriso angélico:

— Vejo porém que foi em pura perda o aviso, pois me apresento tarde para reclamar o nosso direito!... insinuou a voz dolente do frade.

O fidalgo solevou a fronte surpreso:

— Donde vê tal, V. Paternidade?

— Do modo pesaroso com que me recebe o senhor provedor, o qual por seguro não anuncia boa-nova.

D. Diogo sorriu com melancolia:

— Não quero mal a V. Paternidade pela severa lição de cortesia que me deu agora, pois a mereci. Não é com rosto magoado e ânimo pesaroso que se agasalha o hóspede que nos Deus envia; e nem D. Diogo de Mariz costuma semelhante hospitalidade. Mas se V. Paternidade soubesse que passado doloroso acorda em mim a menor circunstância relativa à catástrofe que me enlutou o resto da existência!...

— A morte do Senhor D. Antônio de Mariz, pai de V. Mercê?...

— Teve V. Paternidade notícia dela?

— Achava-me nesta cidade quando aconteceu.

— Talvez não a referiram com todas as particularidades.

— Ouvi falar apenas de longe; e pesou-me não saber mais miudamente do acontecido.

— Se o P. Molina a deseja ouvir, creio que acharia consolo em confiar-lhe as minhas penas, e especialmente um escrúpulo de consciência, que nada ainda pôde apagar.

— Para mim será gosto e dever escutar a sua mercê. Essas dores ocultas e recônditas, são as que buscamos nas profundezas d'alma com mais afã que o mineiro as veias de ouro nas entranhas da terra.

O P. Molina ouviu em grave silêncio, sem perder um gesto da fisionomia do fidalgo. Seu olhar agudo e penetrante apalpava o seio daquela alma que se desnudava; e sondando o ponto em que ela parecia fender-se, conhecia não ser mais do que o lisim da pedra.

— As almas de mais forte têmpera, pensava ele, são sujeitas a essas falhas; como são justamente as pedras rijas, que racham mais profundamente.

D. Diogo começou a narração dos fatos que precederam a catástrofe do Paquequer desde o momento da morte por ele dada involuntariamente até o dia da sua partida para a cidade de São Sebastião em busca de socorro.

— Quando voltei àqueles lugares onde havia deixado quanto amava neste mundo, só encontrei a terra devastada pelo fogo. As ruínas que juncavam o chão em que fora a casa, anunciaram-me logo a terrível catástrofe. Na seguinte manhã minha gente cativou três índias velhas, únicos restos da tribo aimoré, que vagavam na mata próxima; delas soube os pormenores do acontecimento funesto. Meu pai alcançara morte digna de um cavalheiro português; perecera sepultando consigo os seus inimigos.

À recordação do heroísmo paterno um ligeiro sorriso trespassou a máscara triste do fidalgo; porém breve apagou-se, deixando a fisionomia mais opaca e torva que dantes. Abriram-se dos olhos aos cantos da boca duas rugas profundas, onde jaziam sepultas, mas não desfeitas, as dores cruas daquela catástrofe.

— Avalie V. Paternidade de minha miséria e angústia nesse transe. Pois sobre essa chaga viva imagine que punham um ferro em brasa, e terá uma ideia longe do que sofri, lembrando que eu era o causador da desgraça dos meus!...

A nobre fronte do fidalgo vergou como o cimo do cedro robusto, quando a carcoma ataca-lhe o cerne.

O P. Molina, que o ouvira em grave silêncio, falou então; e com a eloquência persuasiva que possuía no mais alto grau, espargiu nas úlceras dessa alma chagada o bálsamo de sua palavra ungida e elevada. Aproveitou habilmente esse espiráculo que se abria naquela alma para insinuar-se dentro dela.

A Providência é que desenvolve das várias causas os efeitos diversos; tal poder não foi dado ao homem, simples utensílio na grande fábrica do universo. Quantas vezes no pecado não se gera grande virtude ou obra meritória? E quantas do cumprimento do dever as desgraças?

— Praticastes uma ação inocente, porque não tivestes a intenção do mal.

— Quem o sabe?... exclamou o fidalgo.

— Sei-o eu que perscruto os refolhos de vossa alma. Não a tivestes, não. E pois ofendeis o Senhor, deixando-vos abater por semelhante pensamento, e gastando na dor uma coragem de que tanto hão mister a Santa Religião Católica e o serviço de El-Rei. O sofisma de vossa consciência é o mesmo de Jó amaldiçoando o dia em que nasceu!...

À medida que o frade falava sentia D. Diogo abrandar a angústia de sua alma. Mais calmo pôde reatar o fio à narração.

— Consinta V. Paternidade que finalize esta penosa narrativa. O que resta, mais de perto lhe interessa, pois explica como se acha em meu poder o manuscrito de Robério Dias.

— Escuto a Vossa Mercê, como devo.

— Apesar da cruel certeza que viam meus olhos e da afirmativa das velhas selvagens, a esperança ainda não me abandonou de todo. Tratei de percorrer os arredores a ver se descobria algum vestígio animador. Demos então com um claro na mata, onde sem dúvida uma partida de gente de D. Antônio de Mariz travara combate mortal com os Aimorés. De uma banda estavam alinhadas as ossadas dos aventureiros já descarnadas pelos abutres, mas cobertas ainda de alguns trapos das roupas. Contamos nove. Da outra banda havia seguramente vinte e tantos esqueletos de selvagens, sinal de que os nossos haviam vendido a vida bem caro.

— Esse combate deve ter precedido de perto a catástrofe em que a tribo dos Aimorés foi destruída.

— De que induz isso V. Paternidade?

— Os selvagens têm por dever de religião enterrar os seus mortos depois do combate, e se o não fizeram é porque sobreveio a catástrofe em que pereceram!

— É bem possível. Um dos homens que eu havia assoldado para acompanhar-me, remexendo com a ponta de um chuço naquele monturo de ossos e trapos, espetou uma bolsa de malha; e abrindo-a na esperança de topar com alguma moeda, achou um rolo de papel. Quis o acaso que observando-o à distância, me achegasse a tempo de ler-lhe por cima do ombro a palavra roteiro. Apoderei-me logo do manuscrito, que pelo rótulo conheci pertencer ao famoso Robério Dias, do Salvador, filho de outro de igual nome, por alcunha Moribeca, descobridor das minas de prata.

— E o manuscrito?... disse com paciência evangélica o P. Molina.

— Deixe V. Paternidade que conclua de uma vez; depois conversaremos do mais. O homem, que achara a cinta, não sabia ler felizmente; mas da primeira palavra ROTEIRO que me escapara, concebera ele suspeitas, ainda que erradas, do valor do papel. Era em 1604, e então já envelhecida a história das minas de prata que tanto rumor fizera, começava a ganhar muita voga a fábula da cidade encantada ou reino do el-dorado. Para aí torceu a fantasia do mariola, que se imaginava já senhor de palácios e tesouros. Desenganei-o de sua pretensão; e aceitando o depósito sagrado que Deus me incumbira em nome dos ausentes e desvalidos, apenas chegado ao Rio de Janeiro escrevi à esposa de Robério que soube viver ainda na Bahia. Mais de ano decorreu sem resposta alguma, e já eu ia de novo insistir, quando me vieram às mãos as respeitáveis letras de V. Paternidade.

— Neste caso, resta unicamente que eu apresente os meus poderes para receber o manuscrito!... murmurou o P. Molina.

— Tais poderes, acredito que V. Paternidade os tem, pois sabedor como é, e tão respeitável de sua pessoa e ministério sagrado, não seria admissível que os ignorasse, ou sem eles se apresentasse; de resto em tempo e lugar próprio averiguaremos esse ponto.

— Não sei qual tempo e lugar sejam mais próprios do que este em que estamos! retorquiu o P. Molina sempre afável e cortês.

D. Diogo erigiu o busto com a altivez que herdara do pai:

— Lembro haver dito a V. Paternidade que aceitara de Deus o depósito que ele me incumbira em favor dos ausentes e desvalidos. Pois bem, esse depósito sagrado, para que dele me exonere é necessário que sua restituição se faça perante oficial de justiça, e fique em público e raso no livro de notas. É hoje dia santificado, e pois amanhã pode V. Paternidade receber o que de mim requer, comparecendo ao cartório do tabelião Ferreira, antes da alfândega.

Ecce homo! murmurou consigo o frade.

O semblante do P. Molina ficou impassível; sua atitude não sofreu a menor alteração; mas o ligeiro empanado dos olhos, efeito de uma conversão da luz para o íntimo, denotava que uma ideia grave surgira no seu espírito, que reclamava máxima atenção. O visitador vira com as últimas palavras do fidalgo surgir um obstáculo formidável aos seus planos tão bem combinados; e tomando o peso a esse fardo, dispunha-se a carregá-lo sobre os ombros, e alijá-lo à banda para desimpedir o caminho.

— Ouvi a V. Mercê, sem logo ir-lhe à mão, esperando pelas razões em que fundou a resolução tomada; mas ou me engano eu, ou não foram elas deduzidas.

— Para que fim, padre-mestre? A minha honra me ordena de proceder nesta conformidade, e pois dispenso argumentos. Pode V. Paternidade produzir outros mais engenhosos; nenhum lhe afirmo de maior força que aquele.

— Permita sempre o senhor provedor observar-lhe que o escrito público e suas solenidades só é uso exigi-lo, quando existe uma obrigação anterior revestida de igual sacramento. Ora, é V. Mercê quem confessa ter recebido esse depósito de Deus, sem ter passado título algum; parece que da mesma forma o deve restituir?

— O padre-mestre esquece que há uma testemunha?...

— Bem sei; o mariola que achou a bolsa. Mas é realmente uma testemunha?... Penso que não; uma testemunha quer-se idônea, sabedora do fato, e nesse caso não está um mariola, que ignora a natureza do objeto. De resto que valha como testemunha, em troca dela dou a V. Mercê duas mais conceituadas, o dono do roteiro e seu procurador.

— Bem adverti eu que V. Paternidade havia de acabar por ter razão contra meus argumentos, pois que não sou versado nestas coisas; mas da minha convicção é que duvido que me demova.

— As mesmas rochas se movem e espedaçam; e para isso basta um sopro do Senhor. Dele espero que alcançarei persuadir a V. Mercê.

— É tentá-lo, padre-mestre.

— Senhor D. Diogo de Mariz! proferiu o visitador assumindo uma atitude grave e um tom solene; a honra que V. Mercê invoca em prol de sua resolução é o mesmo título sagrado pelo qual eu neste instante em nome de meu constituinte e da Companhia que represento, em nome especialmente dos brasões de sua cota d'armas, reclamo e protesto contra a insólita exigência que me acaba de ser feita.

— Cautela, padre!... Medi bem as vossas palavras antes de enunciá-las; e dizei logo que direitos vos dão meus brasões e minha honra!...

— Todos, nobre fidalgo, como vou provar. Ouça-me o senhor provedor sem receio de que ofenda os seus brios. Há cerca de quatro anos que foi pela esposa de Robério Dias recebida a carta que anunciava a achada do manuscrito pertencente a seu marido; e sabendo em que mãos estava ele depositado, julgou-o aí mais seguro do que nas suas próprias. Finou-se deixando ao filho o cuidado de receber o manuscrito; esse moço, apesar do imenso valor de semelhante papel, continuou a confiança materna, até que renunciou seus direitos na Companhia, a qual perseverou por mais de ano no nobre exemplo de seus antecessores. Nenhum dos sucessivos proprietários do tesouro de que o Senhor D. Diogo de Mariz tem a guarda, duvidou um instante da inviolabilidade desse depósito.

— Nem o devia!... Há mais de quatro anos que esse papel existe em meu poder; desde o primeiro dia em que li o rótulo nunca mais estes olhos o buscaram para ler uma palavra; na mesma hora em que a esta cidade cheguei, o cerrei sob meu selo, e o depus no mesmo lugar da prateleira onde jaz ainda intato desta mãos.

— Eu o sabia antes que o dissesse V. Mercê, e como eu, sabiam aqueles que dormiam na maior tranquilidade e segurança, acreditando que seu tesouro estava sob a guarda de Deus, pois estava sob a guarda de tão honrado fidalgo. Essa confiança nobre não merece reciprocidade? Não pede que dispenseis igual com que a teve convosco?

— Tinham a minha carta.

— E depois de perdida?... Por outro lado não ignora V. Mercê a história desse roteiro e da descoberta de que ele reza; por lho terem roubado, o que então ninguém acreditou, finou-se Robério desgraçado, e ainda assim feliz, por não ver cumprir-se o confisco que se executou sobre seu espólio, reduzindo à miséria mulher e filho.

— Tenho notícia desses fatos, ainda que era eu menino quando se deram.

— Pois considere V. Mercê nos efeitos da sua exigência. O ato público divulgará a existência do roteiro que se supõe perdido ou incógnito. Logo se açularão de um lado as perseguições dos governadores, do outro a cobiça dos aventureiros para disputarem a presa; prosseguirá a série interrompida dos crimes a que já deu lugar esse fatal segredo; eu perecerei vítima dele, mas isso é o menos. A Companhia não poderá fazer o uso nobre que pretende, qual é o de restituí-lo a El-Rei em nome do filho de Robério Dias, pedindo em recompensa unicamente a reabilitação da sua memória, e o dízimo do quinto da mineração para edificação de novos colégios.

D. Diogo calou-se; o P. Molina depois que o contemplou um instante, concluiu:

— Consulte V. Mercê sua consciência e diga. Seria conforme à honra que tanto preza, sacrificar a meros escrúpulos a honra alheia? E houvera fiel cumprimento do depósito, se o segredo, essência dele fosse violado? Suponho que não. Enfim o senhor provedor, tão suscetível em matéria de culpa, que imputou a si a desgraça de sua família só porque ela derivou de um fato por ele praticado, embora sem intenção; o senhor provedor, repito, deve com maior razão temer as consequências fatais que hão de resultar necessariamente da divulgação do segredo. Com a diferença que neste último caso não só há propósito, mas está V. Mercê advertido do mal.

A argúcia do visitador abalou fortemente o fidalgo; o apelo à sua honra ao mesmo tempo que a alusão à catástrofe do Paquequer, tocaram o fidalgo nas duas fibras mestras de sua alma. Ele esteve um momento recolhido, e respondeu ao frade:

— Careço de meditar sobre o que me disse V. Paternidade. Quando uma vez se tomou uma resolução, que foi criando raízes no ânimo, não é de um instante para outro que a arranca a gente e a joga fora.

Outro, que não o P. Molina, decerto insistira a ver se obtinha naquela mesma hora o ambicionado tesouro. Mas o visitador tinha, como ninguém, o dom admirável de perscrutar os arcanos do pensamento e de avaliar rapidamente das situações. Ele conheceu que seu argumento imprimira naquele coração uma doce flexão, que no isolamento podia ir a pouco e pouco aumentando até que de todo o vergasse. Se ao contrário procurasse forçar aquela rijeza de aço, bem podia ela reagir contra a mão imprudente, e feri-lo com as ásperas vibrações. Tocar-lhe depois fora, senão impossível, perigoso.

O visitador portanto ergueu-se, e despediu-se do fidalgo, ficando de voltar no dia seguinte à hora da sesta para saber da resolução final.

Ganhando a rua, o jesuíta atravessou para o lado oposto, e fingindo a atitude de um homem irresoluto no caminho que deve tomar, esteve parado algum tempo a examinar a casa de onde saíra.

Não há muitos anos, que foi de todo reconstruído um antigo sobrado de caixões na Rua de São José entre o Cotovelo e Ajuda. Era a morada de D. Diogo de Mariz, em frente à qual se achava o P. Molina. À esquerda do edifício ficava uma casa térrea de porta e janela, com águafurtada sobre o telhado. Era este de tal modo agudo e afunilado, que a cumeeira entrava no outão do sobrado quase pela altura das biqueiras do telhado.

Na rótula da casa estava cosendo uma mulher que, mal avistou o hábito do frade, debruçou-se ao parapeito para lhe pedir a sua bênção se passasse rente, e acompanhá-lo com os olhos se tomasse oposta direção. A curiosidade feminil de que era objeto não escapou ao jesuíta, que examinando o sobrado, examinou também a casa térrea, e a moradora como acessório dela.

— A água-furtada toca justamente com a recâmera pela parede a que está encostada a arca dos papéis, pensava o P. Molina sorrindo. Jus est potior – direito é força.

O frade tornou a atravessar a rua, e entrou na casa térrea pela porta de rótula, que foi abrindo-se diante dele, como por encanto; era o encanto do olhar imperativo que atravessara as grades e estremecera a devota. Um quarto de hora bastou ao hábil operário para amolecer aquela cera e fazer dela uma figura a seu jeito.

— Mulher, não me viste dali defronte olhando esta casa?... Passando meu caminho, ordenou o Senhor que erguesse os olhos, e mostrou-me por sua infinita misericórdia, e para salvação tua, os sinais do mau espírito. Esta casa está mal-assombrada, mulher!

— Jesus, Maria, valei-me! gritou a mulher caindo de joelhos.

— Não te assustes, pecadora, pois o Senhor enviou-me para salvar-te.

— Sim, meu bento padre, salvai-me! Cobri-me com vosso manto! murmurava a devota enrolando-se no hábito do frade.

— Recomendo-te todo o silêncio!... Não boquejes disso a pessoa alguma.

— A ninguém!...

— Eu voltarei dentro de uma hora com o livro para começar o exorcismo. É especialmente na água-furtada que Satanás assentou as suas diabruras.

— Senhor Deus, quando pensei eu que estivesse tão perto das garras do Tinhoso!...

O P. Molina depois de algumas recomendações mais, saiu apressado, e subindo a Ladeira do Cotovelo, recolheu ao Colégio no alto do Castelo. Quando ele entrava a portaria, tocava a refeitório; reuniu-se à comunidade no poio, e comendo às pressas o necessário, ergueu-se, obtida a vênia do reitor.

O P. Molina se apresentara na casa de São Sebastião na qualidade de delegado do provincial da Bahia para incumbência de suma importância; a carta de Fernão Cardim recomendava que se lhe desse toda a ajuda e subsídio de que porventura necessitasse. Chegado na véspera por tarde, mal tivera tempo de descansar, e já andava em diligência.

Levantando-se do refeitório, foi direito às oficinas, onde costumavam muitos irmãos exercitar-se nas artes mecânicas, de que saíam afinal peritos oficiais e mestres. O visitador percorreu-as, examinando com atenção os vários utensílios espalhados pelos bancos de trabalho, ou guardados nos respectivos baús. De entre eles escolhia alguns que ia metendo na sacola oculta por baixo do hábito. Concluído este trabalho, sobraçou o livro dos exorcismos, e voltou à casa da devota que o esperava em ânsias.

Momentos depois estava o frade instalado na água-furtada, ninho de ratos e andorinhas, que media quando muito uma braça em quadro. Encostado nas traves, com a cabeça a roçar nos caibros, o frade tinha os olhos pregados na parede oposta que tocava com o sobrado de D. Diogo de Mariz. Seu olhar firme e claro media, como um compasso sobre o papel, as dimensões daquele muro, e traçava as linhas com a justeza de uma régua. Era um matemático de primeira plaina, dos que nascem como Pascal com os dois instintos especiais do algarismo e do metro, e não carecem para as suas operações de outros instrumentos senão do olhar e da memória.

Contudo o jesuíta não se julgou habilitado à solução definitiva do problema; acusando na parede com a ponta de uma pinça o resultado do cálculo que acabava de fazer, remeteu para depois a verificação.

No dia seguinte à hora aprazada Molina entrava na habitação de D. Diogo de Mariz; desde que pisou a soleira da porta, pode-se quase dizer que não era um homem quem penetrava na casa, mas um instrumento geométrico. De feito o frade se movia e regulava, como se o seu corpo fora uma esquadria ou um compasso.

Contou os passos que deu até o gabinete, os degraus que subiu, calculou as diferenças produzidas pela inclinação da escada e desvio da linha reta; e concluiu de todas essas equações a distância exata em que se achava o gabinete do alinhamento da rua, e confrontou-a com a distância já por ele conhecida da água-furtada. Quando pois entrou no aposento, seu olhar, como se a parede do outão fosse transparente, viu desenhar-se a figura pontuda do teto vizinho; metade do armário ficava dentro dessa figura, e essa metade era justamente aquela onde estava guardado o roteiro.

O visitador aproveitou o instante de espera no gabinete para retificar os seus cálculos. Quando o fidalgo entrou, achou-o já em repouso.

— Padre-mestre, as razões de V. Paternidade pesaram em meu espírito. Refleti no que me ponderou, e reconheço que devo ao dono do depósito o segredo, sem o qual corre iminente risco a segurança da pessoa a quem o entregue, e pode falhar a reabilitação do nome de Robério Dias. Prezo muito a minha honra para baratear a reputação alheia.

— Esperava achar hoje o senhor provedor deste acordo! disse o P. Molina.

— Portanto desisto da entrega perante oficial público e me satisfaço simplesmente com um escrito do punho de V. Paternidade.

Molina estremeceu interiormente; a exigência do fidalgo, reduzida agora aos verdadeiros limites, era formidável porque se tornara justa e razoável. Mas as circunstâncias especiais em que se achava o jesuíta não lhe permitiam aceder à vontade do fidalgo. Estácio podia, apesar da prisão e da distância, chegar um dia ao Rio de Janeiro e apresentar-se a D. Diogo. Se na mão deste ficasse um documento assinado por ele P. Molina, estaria destruída toda a sua obra. O filho de Robério Dias naturalmente havia de recorrer à autoridade de El-Rei; e daí resultaria em vez de importante serviço, grande dano à Companhia.

Era necessário pois ao plano do jesuíta que ele se apoderasse do roteiro sem deixar vestígio de sua passagem; e para isso empregou todos os recursos de sua inteligência, mas debalde. A quanto argumento aduzia o pronto e fértil espírito, respondia o fidalgo com uma única razão, na qual se havia acastelado heroicamente:

— Para que o roteiro saia de meu poder é indispensável que fique no seu lugar o documento da sua entrega. A honra é como a mulher de César que nem deve ser suspeitada.

O jesuíta retirou-se, pedindo vênia para voltar; não era ele homem que se desse por batido assim de primeira vez.

— Não há homem previdente neste mundo!... suspirava o visitador. Eu me tinha nessa conta, e não passo de um calouro. Se tivesse escrito a carta com suposto nome, não me esbarraria agora neste obstáculo!

Breve porém só cuidou de reparar o erro passado. Seu projeto estava formulado e pronto. Se pudesse apoderar-se pelo ardil do roteiro, preferia esse meio; do contrário subscreveria à condição do fidalgo, e quanto ao futuro, Deus e a sua inteligência proveriam.

O frade entrou na casa da devota, ganhou a água-furtada, e ratificando o seu cálculo, traçou na parede um quadrado de palmo de face; descascando o ligeiro emboço com um escopro de que se munira, viu com alegria que acertara nas juntas do tijolo, de modo que o trabalho facilitava-se.

Os cinco dias que seguiram foram repartidos por Molina entre duas ocupações; ir à casa de D. Diogo persuadi-lo a entregar-lhe o roteiro independente de quitação, e trabalhar no rombo da parede, escondido na água-furtada da casa vizinha. Já ele tinha chegado à outra face, e descoberto a madeira da arca ali encostada. Servindo-se então de uma serrilha estreita e fina de serralheiro, que introduziu pelo buraco da verruma, começou a cortar um tampo circular no armário. Essa era a parte mais delicada do trabalho, que só podia ter lugar quando o fidalgo estava ausente e que por isso havia de avançar lentamente.

Mais um dia, e o P. Molina era senhor do roteiro.