As Minas de Prata/III/IV

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Aos oito de fevereiro, a nau Santiago entrava a Baía de Niterói, e fundeava junto ao Forte de Villegaignon. Recebido com a costumada formalidade pelo Senado da Câmara e acompanhado do povo, foi o governador alojar-se nas casas para esse fim destinadas, na Rua Direita, próximo à Alfândega. Depois da audiência de cumprimento, à qual compareceu a gente principal da terra, encerrou-se o governador com o provedor-mor da alfândega D. Diogo de Mariz.

Acreditaram os da comitiva, que traria o governador alguma recomendação especial sobre o tráfego do porto e serviço da aduana; e bem longe estavam de suspeitar do verdadeiro assunto daquela prática.

— Sem dúvida que tendes notícia das famosas minas de prata de Jacobina, senhor provedor?

D. Diogo teve um leve sobressalto; mas logo restabeleceu a calma do seu nobre aspecto.

— Por certo, senhor governador. Tanto se tem falado sobre elas, que ninguém há nesta América que as ignore.

— Sabeis também o que houve com seu descobridor, Robério Dias, no ano de 1591, em que S. Majestade El-Rei me mandou por governador a este Estado?

— Ouvi-o de várias pessoas.

— Corre que o roteiro não é perdido, e menos falso, como então muitos supuseram?

O sagaz e astuto governador espiava o efeito de suas palavras na fisionomia de D. Diogo. Este calou-se um instante visivelmente perplexo; mas tomando logo uma resolução enérgica, e revestindo ares de severa dignidade, fixou no seu interlocutor um olhar límpido e calmo, reflexo de uma alma leal.

— É D. Francisco de Sousa quem me interroga, ou o governador deste Estado?

— Suponde que sejam ambos! acudiu logo o fidalgo com um sorriso.

— Nesse caso: ao primeiro eu não responderia, mas cortesmente lhe pedira que mudássemos de assunto.

— E ao segundo?

— Diria com todo o respeito: — Não me interrogueis sobre este objeto, porque me colocaríeis na dura necessidade de desobedecer à vossa autoridade, para guardar a minha honra.

O governador rugou o sobrolho. Abandonando de repente a sua primeira tática, investiu direito ao alvo.

— É inútil a reserva, D. Diogo de Mariz. O roteiro de Robério Dias está em vosso poder.

O provedor ficou impassível.

— Negais?

— Já respondi a V. Senhoria, não respondendo.

— Não o podereis negar. Não só tenho plena certeza; mas estou informado da circunstância que vos fez depositário deste segredo.

O governador referiu o quanto o Brás tinha ouvido do Anselmo a bordo do galeão Rosário.

D. Diogo não se abalou; ouviu silencioso sem o mínimo sinal de confirmação ou negativa.

— Vosso mesmo silêncio, concluiu o governador, é a prova mais robusta do fato. Em vossos lábios mudos há uma confissão mais clara do que se falassem.

D. Diogo sentiu o peso dessa observação:

— Não sou e nunca fui de argúcias e ambages, senhor governador; na minha família, sempre houve timbre de franqueza e verdade. É exato que o roteiro das minas de prata foi confiado à minha guarda pela Providência; e que eu aceitei a responsabilidade desse perigoso depósito, resolvido a cumpri-lo. Eis o que me cabe comunicar a V. Senhoria.

— E como contais cumpri-lo, senhor provedor?

— Restituindo-o a seu legítimo senhor.

— Não me enganaram os que tão bons prólogos me fizeram no reino e aqui da vossa nobreza, D. Diogo de Mariz; sois credor da estima de todos os homens de bem pela vossa probidade austera e constante lealdade.

— Folgo de ver meu procedimento confirmado por pessoa de tanta autoridade!

— Sem dúvida que vos aprovo e louvo. Deveis restituir o roteiro a seu legítimo senhor. E quem pensais que seja esse?

— O herdeiro de Robério Dias!

— É incontestável.

— Então está o senhor governador de acordo comigo? perguntou o provedor serenando.

— De perfeito acordo, respondeu D. Francisco sorrindo.

D. Diogo ergueu-se para retirar.

— Portanto só me resta receber o depósito e dar-vos quitação.

— Vós, Senhor D. Francisco de Sousa?

— Mas decerto!

— Em que qualidade?

— Na de procurador bastante do herdeiro de Robério Dias.

— Qual herdeiro? Pois o filho...

— O único legítimo herdeiro, Sua Majestade El-Rei, nosso senhor.

— Não compreendo.

— A sentença de condenação de Robério Dias, ordenando o confisco de seus bens, constituiu o real erário seu único herdeiro. Creio que não me contestareis este ponto; mas acresce ainda que El-Rei já era sucessor desse roteiro por cessão que dele lhe fizera o próprio Robério, e embora se argumente com ter sido condicional.

D. Diogo teve tempo de refletir; e interrompeu o governador:

— Me levais para outro terreno, Senhor D. Francisco de Sousa, em que sou ainda mais peco que na diplomacia, o da rabulice. Os letrados vos darão mil razões; concedo mesmo que seja exato quanto expendestes. Mas o roteiro que tenho em meu poder, recebi-o como de Robério Dias; e para com ele me obriguei perante Deus, em cujo tribunal não há confiscos. Só a ele pois ou a seu filho que o representa, restituirei o que me foi confiado. Se El-Rei, ou quem quer que seja, tem direitos a este objeto, discuta-os nos seus tribunais, entre ele e seu adversário. Comigo não, que só me obriguei no juízo de Deus.

— Nesse caso recusais entregar-me?

— Sou a isso forçado.

— E a El-Rei também recusareis?

— A El-Rei como a qualquer.

— Lede.

O governador apresentou um alvará em que Filipe III ordenava a D. Francisco de Sousa, que apreendesse, em mão de quem quer que o tivesse, o roteiro das minas de prata descobertas por Robério Dias, empregando a esse fim, se fosse necessário, a coação, derrogados para tal efeito todos os privilégios e isenções de nobreza.

D. Diogo leu o alvará, e tornando-o ao governador, disse-lhe friamente:

— Execute V. Senhoria o alvará!...

— Desobedeceis a El-Rei, Senhor D. Diogo de Mariz?

— Desobedece quem recebe uma ordem e não a cumpre. El-Rei não pode ordenar-me uma coisa contrária à minha honra e dignidade.

D. Francisco bateu o pé arrebatado, e passeou agitado pela sala.

— Estais sob a influência de uma nímia suscetibilidade, Senhor D. Diogo de Mariz; também eu sei prezar a honra e dignidade de meu nome, e não seria capaz de exigir de vós coisa que não fosse digna de um fidalgo. Quero dar-vos tempo para refletir, antes de uma decisão que vos pode ser fatal. Recolhei à vossa habitação: amanhã ao meio-dia, me direis a vossa última palavra, e espero em Deus que será propícia. Jurai que desde este instante até então o depósito que tendes em vosso poder não mudará de lugar!...

— Jurarei se o quereis, senhor governador. Mas amanhã, como hoje, a minha resposta será a mesma.

— Jurai!

D. Diogo satisfez o desejo de D. Francisco e retirou-se.

A reputação de astuto e sagaz que adquirira D. Francisco de Sousa era merecida. Ele contava que o pranto da família e a influência da noite operassem fortemente no ânimo do fidalgo e o rendessem à sua vontade. Desse modo evitava um ato de força, que empregado logo no princípio do seu governo e contra um fidalgo de alta linhagem e oficial superior de fazenda, seria perigoso. D. Diogo era pela sua inteireza e severidade de costumes geralmente estimado da gente boa; a sua desobediência, longe de parecer crime, daria talvez maior realce àquelas virtudes. No estado em que então se achava a colônia um tumulto popular não era impossível; e El-Rei não duvidaria dar razão à gente da terra contra seu governador, como muitas vezes aconteceu.

Demais, que arriscava o governador com esse adiamento de vinte e quatro horas? Estácio estava a estas horas ou sepultado nas ondas ou em luta com elas; quanto à dificuldade que podia criar o provedor escondendo melhor o roteiro, o juramento dado era uma garantia.

Seriam duas horas da tarde, quando do colégio dos jesuítas no Morro do Castelo se avistou a nau Santiago, dobrando o Pão de Açúcar para entrar a barra.

Os padres levantando-se do refeitório, caminharam às janelas para acompanharem com os olhos a majestosa singradura da alterosa nau, que fendia as ondas, como uma princesa do oceano, soltas ao vento as brancas roupagens.

Antes deles porém o P. Molina sempre alerta a tudo que passava em torno, com um óculo de longa mira e do interior da cela examinava o navio.

A escolha de D. Francisco de Sousa em idade avançada para governador do Estado do Sul, acordara no espírito de Molina a mesma ideia que suscitara na lembrança de Vaz Caminha; porque para ambos a nova desse fato coincidira com a notícia da existência do roteiro de Robério Dias. Como porém a partida de D. Francisco de Sousa estava marcada para o começo de outro ano, o visitador deixando a Espanha em outubro de 1608, trazia cerca de três meses de avanço; e por conseguinte podia concluir a sua missão antes mesmo que o governador se fizesse à vela.

Deste lado estava pois o jesuíta de ânimo tranquilo, quando o surpreendeu a chegada inesperada do governador. Ao primeiro sinal de nau portuguesa à barra, teve ele um pressentimento, que logo tornou-se em certeza, quando pôde distinguir o pavilhão de capitão-general içado no tope do mastro e saudado pelos fortes e navios da armada.

Que razão tivera o governador para assim precipitar a partida?

O espírito do jesuíta cingindo-se à investigação desse problema, acabou por concluir que o motivo da alteração fora relativo às minas de prata, e nenhum outro senão uma suspeita sobre os projetos da Companhia. É certo que o segredo ficara entre o Geral Cláudio Aquaviva e ele P. Molina, entre um abismo e um túmulo. Mas o visitador sabia por experiência própria que o espírito humano é dotado de uma espécie de faro moral, capaz de perceber ao longe fatos de que não há notícia. É por esse dom singular que a gente de uma cidade anuncia às vezes uma vitória ou um naufrágio, ao mesmo dia e hora em que ele tem lugar a centenas de léguas distante; o que fez dizer ao provérbio: voz do povo, voz de Deus, quando divulga o bem, ou do diabo, quando anuncia o mal.

Ora, pensava o P. Molina, era bem possível que embora do abismo profundo onde estava sepultado o segredo, não escapasse eco dele, contudo se levantasse algum ligeiro odor, que prurisse o fino olfato da diplomacia castelhana, discípula aproveitada da inquisição e do jesuitismo.

Cogitando destas coisas, dirigiu-se a toda a pressa para a Rua de São José.

O visitador não se enganava. Fora justamente essa a razão, que precipitara a partida do governador. Mestre Brás, quando visitara D. Francisco em Lisboa, lhe falara do P. Gusmão, e comunicara algumas leves suspeitas que tivera. O astuto diplomata não desdenhara estas informações; todavia chegando a Madrid e sondando ali como em Lisboa a casa provincial, não percebeu coisa suspeita. Logo porém que veio-lhe ao conhecimento a partida do P. Gusmão de Molina para o Brasil, ele ficou inquieto. Sabendo do que pôde colher do prelado, ser essa partida ordenada de Roma pelo Geral, que desligara o professo da sua obediência à casa de Espanha, o governador não duvidou mais, e instando com o ministro, fez-se à vela ao cabo de quinze dias, que tanto se despendeu com o apresto da nau.

Se não fosse a demora da caça aos holandeses, talvez que D. Francisco de Sousa aportasse a São Sebastião antes do P. Molina.

Enquanto repicavam os sinos e ardiam no ar fogos de artifício para festejar a boa-vinda do novo governador, o P. Gusmão indiferente às demonstrações festivas, chegava à casa de D. Diogo, resolvido a satisfazer a exigência da quitação e receber o roteiro. Deixaria nas mãos do fidalgo um documento de sua falsidade; mas engendraria modos de reparar esse mal.

— Tenha eu o papel em meu poder, é o essencial. Ao mais Deus proverá.

O frade pensava que a perfuração da parede serviria para subtrair o recibo, desde que o roteiro estivesse em suas mãos.

D. Diogo não estava em casa; já tinha saído para ir ao acompanhamento do governador, donde só recolheu à noite, depois da prática que se referiu. O frade desgostoso desse contratempo, mas não desanimado, recorreu ao meio extremo; subiu à água-furtada, e pôs mãos à obra, deixando a beata de vigia à rótula para o avisar da volta do fidalgo, logo que o avistasse no princípio da rua. Entretanto trabalhava com ardor extraordinário; faltava-lhe ainda muito para concluir o rombo; a tábua além de grossa devia ser delicadamente serrada a fim de não cair do lado oposto e chamar a atenção.

Nesse ponto do trabalho foi o visitador distraído pela beata que o chamava do patamar da escada. O provedor recolhia taciturno e sob o peso de graves pensamentos; quando o jesuíta saiu à porta, ainda vinha a vinte passos de distância, pelo lado oposto da rua. Deixando que se aproximasse foi-lhe direito o P. Gusmão:

— Vosso servo, senhor provedor!... ia ele dizendo.

Mas uma estrambótica figura, que não tinha percebido, meteu-se de repente entre ele e o provedor, de modo que este, distraído como vinha, passou adiante sem dar fé de quem lhe falara.

— Reverendo, uma palavra!... disse o recém-chegado.

— Segui vosso caminho, irmão, e deixai-me ir o meu, que tenho muita pressa!... replicou o frade.

— Mais tenho eu, reverendo!...

— Pouco me embaraça!

— Embaraça-me a mim!

O jesuíta procurava passar, e o desconhecido esbarrava-lhe o passo postando-se em frente.

— Que quereis de mim, então?

— Que o reverendo venha ouvir de confissão uma pobre mulher...

— Não posso agora!...

Sangre de Cristo!... Um padre que recusa confissão a enfermo mortal!... É pior bicho que a besta-fera, pois esta come só a carne!...

O P. Molina, que apesar da escuridão da noite, estava entreconhecendo o desastrado sujeito, ao ouvir a tão familiar jura de outrora, recordou-se imediatamente do Capitão Fuerte Espada. Este reconhecimento levou-o logo e naturalmente a uma conjetura. O aventureiro, que ele deixara em Lisboa nas garras da Inquisição, para escapar-lhe devera ter sido amparado por pessoa de grande valimento: e essa não era outra senão o Governador D. Francisco de Sousa que o tomara a seu serviço.

Tudo isto foi rápido e pensado enquanto o aventureiro terminava seu dizer, ao qual o jesuíta retrucou:

— Assim era, irmão, se não estivesse eu suspenso de ordens!...

— Caramba! O reverendo está suspenso! Que tal!... Por bom não há de ser!...

— Deixo-vos com Deus, senhor!...

O Capitão Fuerte Espada, que não primava pelos dotes do espírito, ficara estatelado com o expediente do frade; e enquanto ruminava ele o modo de retorquir ao argumento e convencer o jesuíta para que o acompanhasse, este seguira o seu caminho desimpedido, e já pisava o limiar da porta de D. Diogo, quando o aventureiro em dois saltos o alcançou e tomou-lhe a dianteira.

— Nada, reverendo, haveis de acompanhar-me. Ocorreu-me que assim como qualquer sem ser padre batiza em artigo de morte, podeis vós, mesmo de ordens suspensas, confessar!...

— Então também vós, sem ser padre; e portanto não careceis de mim, disse o frade a rir.

Sangre de Cristo! O reverendo está chasqueando do próximo!... Pois saiba que lhe fala o Capitão D. Aníbal Aquiles Cipião de la Fuerte Espada, com quem ninguém ainda brincou, nem mesmo sua mãe quando ele era fedelho! Disse eu que o reverendo me havia de seguir a confessar a mulher, e é como se já estivesse lá.

No forte desta altercação fechou-se a porta do provedor; o sino de recolher começava de ser tangido. O frade pensou que o melhor modo de se desvencilhar do aventureiro, era condescender com ele; e pois resolveu-se a segui-lo.

— Mostrai o caminho, irmão.

— Em frente! Sempre em frente! É a minha divisa!...

Seguiram os dois rua acima. Com um galrador da força de D. Aníbal, não era difícil ao P. Molina verificar o que já suspeitara a respeito da sua vinda ao Brasil. D. Francisco de Sousa, guiado pelas revelações de mestre Brás, compreendera que lhe seria útil o concurso do aventureiro, e tirou-o dos cárceres do Santo Ofício, para logo dar-lhe um lugar em sua comitiva. O aventureiro, que já se considerava queimado, recebeu aquele favor do céu sem saber a que circunstância o devia:

— O tal mestre Brás!... concluiu o soldado bufando. Um dia havemos de ajustar contas!...

O frade que revolvia nesse instante tristes pensamentos, sorriu de ver atribuir ao taberneiro a denúncia por ele deitada na caixa secreta; mas logo uma ideia amarga derramou-se no seu espírito, confrontando as circunstâncias agora referidas com outras por ele antes sabidas.

“A inteligência humana é uma burla do Criador!... Eu, Gusmão de Molina, com vinte anos de um estudo incessante, eu, discípulo melhor dos grandes mestres, deixar-me iludir por um taberneiro!... Quando podia pensar que aquele bruto seria capaz de contraminar um plano meu!”

Chegavam os dois à Rua da Ajuda.

— Ao menos reparemos o erro!...

Murmurando consigo, o frade recuou de repente, fingindo sobressalto:

— Que temos?... perguntou o aventureiro.

— Não vê, D. Aníbal, ali no mato uns vultos!... Falam tanto de malfeitores agora!

— Quem vai lá? gritou o destemido capitão.

Não respondendo ninguém, desembainhou a espada e arremeteu a cutiladas pelo mato. As sombras eram duas estacas ali fincadas para coradouro, o que ele só conheceu chegando perto.

— Oh! oh! oh!... exclamou rindo! Vinde ver os vossos malfeitores, reverendo.

Mas o P. Molina se tinha sumido.

— E não logrou-me o demônio do frade!... Melhor; poupou-me o trabalho de me descartar dele.

D. Aníbal voltou à Rua de São José, mas qual não foi o seu pasmo descobrindo de longe o vulto do jesuíta em pé defronte da porta de D. Diogo de Mariz, esperando que acudissem ao seu bater. Deitou a correr para ele, quando lhe saiu do vão junto da parede um sujeito.

— Então asno, assim é que cumpres as minhas ordens?

— Mas, capitão, o frade disse que vinha por ordem do senhor governador, e que vós não havíeis tardar! Como saístes ambos juntos!...

— E que tinha isso, grandíssima besta!...

D. Aníbal chegou a tempo; ouviam-se já as passadas da caseira de D. Diogo na escada:

— Sem dúvida, reverendo, vos enganastes de porta: a do vosso convento fica no Castelo, onde este camarada vai levar-vos direitinho como um fuso. Vamos! um, dois, três; em frente, marcha.

O visitador conheceu que a resistência, além de improfícua, podia ser funesta. Era claro que o governador guardava a porta de D. Diogo, e por conseguinte ele não poderia naquela noite penetrar na casa. Entretanto, se por um lado aquela medida o assustava, por outro lhe dava esperanças, pois era indício de que o provedor, fiel aos severos princípios de honra, recusara ao governador a entrega do depósito.

Recolheu pois o visitador ao Colégio, ao passo que D. Aníbal se atravessava na soleira da porta resolvido a ali passar a noite, e despachava a caseira acudida ao chamado do frade:

— Não é nada, rapariga, senão fui eu que me enganei de porta.

Entretanto D. Diogo de Mariz ignorava o que passava à porta de sua casa. A nuvem que um instante toldara o seu pensamento se dissipara; recobrara a calma e serenidade da consciência pura. Depois da ceia frugal, escreveu uma carta que encomendou aos cuidados da caseira, e dormiu ao lado da virtuosa esposa o sono do justo.

A caseira do fidalgo era a mulher dos esquecimentos; tinha memória de galinha pedrês, de quem diz o vulgo que não se lembra onde pôs o primeiro ovo. Quantas incumbências lhe davam, umas não fazia, outras amanhava de través. Nessa noite à vista das instantes recomendações do amo, teve ela uma feliz ideia: meteu a carta no cocó. Era o meio de não esquecê-la em casa no outro dia ao sair para as compras.

Assim aconteceu de fato. Às cinco horas da manhã, a velha, de samburá no braço, ganhou a rua, e com ela foi escondida no cabelo a carta da qual nem mais se lembrava. D. Aníbal viu-a sair, e deixando a porta guardada foi-lhe no encalço. A poucos passos fê-la parar:

— Alto, minha velha. O senhor governador teve denúncia de que trazíeis convosco certas bruxarias...

— Eu!... Bento Jesus!... Que falso testemunho!...

— É o que vamos averiguar! Vou passar-vos uma revista completa!...

— Podeis passar, na certeza que se alguma encontrardes, são artes do Tinhoso!...

Sem respeito ao pudor, D. Aníbal revistou ou apalpou a velha; não lhe encontrando coisa suspeita, deixou-a seguir. Como poderia pensar o capitão que os cabelos dessa sujeita seriam para ele como os cabelos das matronas romanas para o seu homônimo!

A essa mesma hora o P. Molina saía do Colégio em direção à Rua de São José. Levara a noite inteira a meditar; e ia resolvido a instalar-se em casa da beata, e daí operar como o caso pedisse. Tinha dois meios a empregar; um era o furo da parede; o outro o quintal, por onde supunha poder penetrar na casa do fidalgo.

Sucedeu que ao chegar o visitador embaixo da ladeira, passou-lhe pela frente a caseira, que ele imediatamente reconheceu. A velha ia bem descansada de seu; nem lembrança da carta; mas ao ver o frade caiu em si, e tirou do cocó o papel engordurado de banha.

O P. Molina quebrou o selo e leu rápido:


Padre-mestre. — Rogo-vos encarecidamente a graça de achar-vos nesta vossa casa de São José amanhã, segunda-feira, que se contam nove de fevereiro, antes da hora de meio-dia.

De V. Paternidade
um irmão reverente

D. Diogo de Mariz.


— Para que me quer ele?... E por que ao meio-dia antes do que a qualquer outra hora?...

O frade tornou a ler a carta, e interrogou a velha, da qual só colheu o que já sabia; que o provedor recolhera tarde voltando de palácio.

— O governador exigiu a entrega do roteiro; D. Diogo pediu tempo para refletir; o governador lhe concedeu, mas fê-lo guardar por cautela. O prazo expira ao meio-dia; ele me convida pois para prevenir-me da entrega que vai fazer do roteiro ao governador. Não é outra coisa.

Caminhando sempre, prosseguiu:

— Também é possível que ele pedisse prazo para poder livrar-se do depósito entregando-o a mim. Mas não! se assim fosse, não me diria — antes do meio-dia, e sim — venha o mais cedo possível!...

O frade encaminhou-se apressado para a casa da Mariana, onde pretendia entrar sorrateiramente, para daí sondar o terreno. Mas nesse tempo pouca gente transitava pelas ruas de modo que apenas o frade apontou longe, o capitão o lobrigou, e foi-se logo preparando para fazer-lhe frente. D. Aníbal tinha mais medo da língua de um jesuíta, do que da ponta de uma adaga afiada.

Com admiração sua, o frade em vez de se dirigir à porta de D. Diogo, bateu devagarinho na rótula: por infelicidade a beata estava para os fundos, e tardou uns dez minutos a abrir. Foi o tempo necessário para o aventureiro formular um pequeno raciocínio, em virtude do qual lhe pareceu suspeita a entrada na casa vizinha pelo mesmo indivíduo que tamanha insistência fizera na véspera para entrar em casa de D. Diogo.

D. Aníbal avançou pois:

— Bom-dia, reverendo. Já tão cedo na rua! Quer me parecer que o padre tem rasca por estas bandas.

O jesuíta revestiuse da sua dignidade, e não respondeu; este ar pesou sobre o aventureiro, que retorquiu em tom cortês e polido.

— Não se pode saber o que vem o reverendo fazer a esta casa?

— Venho exercer o meu sagrado ministério!

— Queira o reverendo traduzir-me isso em vulgar.

— Fui chamado a uma confissão aqui!...

— Mas o reverendo não está suspenso de ordens?

— Minha suspensão terminou no dia de ontem.

O Capitão Fuerte Espada ficou estatalado; mas sem o sentir arrancou da cachola uma réplica chistosa:

— Neste caso, reverendo, a minha enferma de ontem está em primeiro lugar.

E receando a lógica temível do jesuíta, pôs-se o aventureiro a cantarolar, acenando a um dos seus homens para guardar a rótula da Mariana. O P. Molina, homem da palavra e soldado na milícia da inteligência, teve de ceder ante o poder da força bruta. Retirou-se, é verdade, mas como a vaga que se retrai para de novo arremessar-se com maior ímpeto.