As Mulheres de Mantilha/XII
— Que ha? perguntou Maria.
— O vice-rei ficou furioso, recebendo a noticia da fatal decima improvisada: numerosos agentes do governo se espalharão disfarçados pela cidade e ao meio dia o official da saia deu conta ao conde da Cunha das suas descobertas.
— E quaes forão?
— Nem mais nem menos do que aquillo que a tua admiravel policia tinha te informado immediatamente depois do facto: o poeta improvisador fora uma mulher de mantilha.
— Quem é? como se chama?
— O conde da Cunha offerece mil cruzados a quem lh'o disser, e o seu official da sala bem desejara achar o revelador; porque sem duvida lhe daria metade daquella quantia, tomando a outra metade para si.
Maria poz-se á rir.
— Tens-me feito tres perguntas: agora é a minha vez: quem te contou o que se passara no pateo do convento da Ajuda?
— Um homem que esteve lá, e que correu á informar-me de tudo antes que chegasses a minha casa.
— Ah! tens outro espião além de mim?....
— Tenho dez e mais.
— Maria!...
— Que pensas?...
— Porque me abrazo de paixão por ti, sujeito-me á aviltamento que me repugna: impozeste-me, como condição essencial do teu amor a companhia, e a sociedade do homem que mais detesto; resisti longas semanas; mas emfim deshonrei-me para que me abrisses os braços: duas manchas enegrecem-me a vida: é uma a tolerancia, com que supporto a entrada senhoril de Alexandre Cardoso nesta casa, que devera ser sómente minha pelo amor, e onde eu penetro como ladrão de thesouro alheio: é outra essa deslealdade indigna, com que espio para te contar as acções e os passos do meu inimigo!
— Do nosso inimigo; murmurou surdamente Maria.
— Pois bem: dous opprobrios já são demais o não me submetto á terceiro: sei e sabes a moeda que me paga a infamia da deslealdade e da espionagem: acabas de declarar-me que tens um outro e mais dez espiões: com que moeda lh'os pagas, Maria?...
A feiticeira moça sorrio-se docemente, e inclinou a cabeça, procurando com os labios a face de Gonçalo Pereira; este porém susteve-a, pondo-lhe as mãos nos hombros formosos e nús, e renovou a pergunta:
— Com que moeda lh'os pagas?....
Maria respondeu seriamente.
— Na minha vida condemnada tenho ao menos o bom costume de illudir as perguntas, quando não me convem confessar a verdade, e de nunca mentir, quando fallo ou respondo positivamente.
— Tanto melhor!
— O meu outro espião é Angelo, á quem amei até que te encontrei no caminho da minha vida, se que desde então é apenas interesseiro instrumento de meus projectos de vingança: os outros são as mulheres que tudo dizem, velhas á quem protejo, moços e velhos que de meus auxilios precisão, e que muitas vezes me servem sem saber que o fazem.
— Maria!
— Eu te juro, Gonçalo; não tens rival no meu coração e nem sei mais ter caprichos loucos: amo só a ti e quero-te por meu senhor: se um dia mudar de sentimentos, quem primeiro t'o ha de dizer, sou eu.
E a serêa que cantára inclinou de novo a cabeça, as mãos do official cederão e roçando pelo tronco forão apertar a cintura mais delicada, em quanto os labios da amante beijavão a face do amado.
Maria pagava a deslealdade e a espionagem, allucinando o official perdidamente escravo da sua belleza e dos seus invites fascinadores.
Vencido o ímpeto de ciume e embotados os santos escrupulos e protestos da honra sacrificados á paixão mais violenta, Maria voluptuosamente reclinada na cadeira, em que se sentara, com um lindo anel de madeira, que fugira ao penteado já meio confuso, á brincar-lhe na face levemente corada, disse á Gonçalo:
— Comtigo eu me perco, porque esqueço o mundo.....
— E para que lembra-lo?
— Para vingar-me.— Muito amaste, ou ainda muito amas Alexandre Cardoso!
— Nunca o amei, e hoje o detesto; mas cada qual tem suas miserias na vida.......
— Cuidemos antes dos prazeres da vida.
— Alexandre Cardoso é o meu amante, passa por meu amante e dono: se queres poupa-lo, como é que me amas?... se queres ser só, como é que o poupas?...
Gonçalo soltou um gemido profundo que pareceu um rugido feroz.
Maria tocára na corda sensivel de Gonçalo Pereira.
— O poder e o orgulho desse homem immoral e perverso devem ser abatidos; continuou Maria.
— Devem; disse Gonçalo.
— Como procede elle agora?
— Como d'antes: bebe, joga e seduz.
— E o vice-rei?
— Surdo e cego: surdo ás queixas, cego pela confiança.
— Pois que Alexandre Cardoso beba, e jogue e seduza em dobro.
— Fa-lo-ha sem esforço nosso.
— Joga feliz?
— Nem sempre.
— Sobra-lhe o dinheiro?...
— Emprestei-lhe ante-hontem dous mil cruzados.
— Ainda bem. Que premedita elle agora?....
— Novo e numeroso recrutamento para duas ou tres companhias de cavallaria ligeira que sirvão á guarda especial dos vice-reis e novas obras de aquartelamento de tropas na ponta da Misericordia.
— E no recrutamento e nas obras novas novo meio de bater moeda na forja do patronato.....
— É da sua regra.
— Quanto peior, melhor: tambem é de regra.
— Talvez.
— Que diz a esses projectos o conde da Cunha?....
— Hesita ainda, pretendendo que a população tem sido por demais onerada.
— E Alexandre Cardoso?...
— Sustenta que o povo vive feliz e satisfeito: mas que o numero excessivo dos vadios torna o serviço militar uma providencia salutar para a sociedade ameaçada por elles, e que o commercio altanado e revoltoso tem sobras de lucros que são exageradas, e que podem aproveitar ás obras do rei, entrando para ellas, como donativos voluntarios.
— Perfeitamente, e o melhor possivel: uma ultima pergunta.
— Qual?....
— E Ignez?.. a filha de Jeronymo Lirio?...
— Sabe ella que Alexandre Cardoso a ama?... eu duvido.
Maria sorrio-se.
— De que ris?..
— Da tua duvida: a mulher ainda que não olhe, sempre vê quem a namora.
— Em tal caso Alexandre Cardoso namora em vão.
E, tornando-se um pouco triste, Gonçalo Pereira perguntou:
— Era isto o que querias ouvir, Maria?...
A resposta da famosa cortezã foi lançar-se nos braços do bello official.