As Mulheres de Mantilha/XLV

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LIV

O vigésimo dia da quaresma é em todo mundo catholico de suspensão de penitencia, e como de ferias dadas pela igreja aos jejuns e aos austeros preceitos da religião sancta o unica verdadeira impostos aos fieis nesse periodo anuual que recorda os quarenta dias do jejum e da suprema meditação de Jesus Christo antes da sua sagrada paixão e morte, que deixou no sangue do Deos martyr o Jordão que lava todas as culpas, e na cruz sanctissima a arvore da liberdade que regenerou e nobilitou, que regenera e nobilita, que hade regenerar e dobilitar para todo sempre a humanidade.

Esse dia excepcional, que a igreja concede aos fieis para descanço das penitencias, e dispensa das abstinencias dos jejuns, e das praticas austeras, dava no Brazil occazião á uma folgança popular não pouco burlesca. A folgança tomava o nome de serração da velha.

Descreveremos em poucas palavras essa especie de mascarada dos antigos costumes, que só no prezente seculo foi proscripta pela nova civilisação.

Nas cidades e até nos pequenos povoados ajuntavão-se mancebos folgazões para a festança: dizia-se que pelo correr da noite se havia de serrar a mulher mais velha da cidade ou povoação e era tão simples e credula a gente daquelles tempos, que havia velhas que tremendo de medo se escondião durante o dia fatal para não serem apanhadas pelos serradores.

A noute sabia a sociedade á rua: homens possantes possantes vestidos á caracter, as vezes representando indios, ou negros africanos, ou mouros puchavão um carro com immenso estrado, sobre o qual vião-se meia duzia de figurantes trajando á phantazia e uma grande serra armada e prompta para serrar uma pipa dentro da qual se dizia ir encerrada a velha condemnada ao sacrificio.

Onde era possivel obter-se muzica, uma duzia de tocadores de instrumentos barbaros, ou capazes de produzir grande ruido, não excluia a banda de muzica de verdadeiros professores que, durante a marcha da burlesca procissão, alternavão com a orchestra infernal, tocando marchas alegres: onde tanto não se podia conseguir, contentavão-se os folgazões com a orchestra infernal.

A's vezes cessava a muzica, e os puchadores do carro marchavão, entoando cantigas allusivas ao trabalho que executavão, alternando tambem com os serradores que cantavão, ora fazendo allusões á velha que levavão na pipa, ora outros cantos mais ou menos engraçados, ou em moda entre o povo.

Quando os carregadores paravão para descansar ou de proposito defronte de alguma caza, á cujos moradores querião obsequiar, os serradores dansavão grotescamente, e um delles, o principal, fazia em alta voz a leitura de uma composição poetica, em que era cantada a vida da velha que hia ser serrada.

Passavão assim pelas ruas até que na praça principal se completava a funcção serrando-se a pipa, que em vez da mostrar serrada no seu interior a velha, apresentava boa e variada cea, e abundancia de garrafas de vinho.

A's vezes fingião serrar a pipa desde o principio e em todo o correr da procissão: ainda de muitos e diversos modos variavão o divertimento, que por fim acabava sempre com a cea na praça ou em caza para isso disposta.

Como se vê a serração da velha era uma folgança innocente, mas rude, e talvez um pretexto para as ceas fartas e alegres no dia da suspenção dos preceitos da quaresma.

Esse pretexto era perfeitamente comprehendido pelas familias que tambem ceiavão em festa.

Dos antigos cantos que entoavão os serradores da velha um apenas ouvimos com seguranças dadas por quem no-lo repettio, de que pertencia elle ao seculo passado: ei-lo:

Serra, serra, serra a velha.
Pucha a serra, serrador;
Que esta velha deo na neta
Por lhe ouvir fallas de amor.

Serra-ai! serra-ai! Serra-ai! — pucha,
Pucha-ail — pucha, serrador!
Serra a velha-ai! — viva a neta
Que fallou fallas de amor.

Serra! — a pipa é rija;
Serra! — a velha é má;
Serra! — a neta é bella;
Serra! — e serra já.

Eis ahi mais ou menos como era a serração da velha no seculo passado. Tinha chegado o dia dessa folgança no anno de 1767, e desde que despertarão ao canto dos passarinhos que saudarão a aurora, Irene e Ignez não pensarão, senão na alegre noute que havião de passar na caza do bom velho Antonio Peres, i quem hia pagar Jeronymo Lirio a aposta perdida, levando a familia á cear com o amigo e compadre. As duas meninas tam sobejamente enfeitadas pela natureza, empregarão o dia todo em imaginar enfeites para seos formosos cabellos e finos vestidos brancos.

Emfim ás seis horas da tarde a familia de Jeronymo Lirio poz-se em marcha da Gamboa para a cidade. A senhora Ignez, Izidora e os dous lírios erão levadas cada uma em sua cadeirinha; o velho caminhava átraz, cavalgando soberbo cavallo, e seguido de dous creados.

As sete horas e pouco mais da noute Antonio Peres desceu do sobrado para receber á porta da rua a família do seu amigo.