As Pupilas do Senhor Reitor/XXIV
A vida que, por aquele tempo, Daniel passava na aldeia era de uma monotonia capaz até de saciar as exigências do homem mais indolente e ocioso.
Vejamos em que se ocupava o nosso herói, enquanto, sem o suspeitar, estava sendo objeto do momentoso diálogo, do qual, no capítulo antecedente, nos aventuramos a ser cronista.
Para isso tomemos a dianteira ao reitor e entremos, antes dele, no quarto de Daniel.
Não sei se é a voz da consciência a que me está a bradar que vou cometer uma indiscrição.
As pessoas mais sisudas e graves têm momentos na vida, durante os quais, a sós consigo, se entregam a distrações de crianças.
É possível, pois, irmos encontrar Daniel em um dos tais momentos; e talvez que o possamos, por essa forma, prejudicar no conceito dos leitores. Mas, por quem são, lembrem-se que, em horas de ócio e enfado, ouso eu afirmá-lo, não tem sido também demasiado os escrúpulos na escolha de passatempos; essa consideração decerto os fará indulgentes.
Àquela hora do dia, Daniel sentia-se morrer de tédio, debaixo dos telhados paternais.
O calor não o deixava sair.
Quis ler: faltavam-lhe porém os livros. Os seus ainda não tinham chegado da cidade.
Revistando os cantos e escaninhos da casa, apenas encontrou três repertórios dos anos findos, uma cartilha de doutrina cristã, uma tábua de pesos, medidas e dinheiros, e, em gênero mais ameno, o Testamento do Galo, a confissão do Marujo Vicente e a Vida Milagrosa de não sei que santo padroeiro da freguesia.
Ainda assim, tudo isto leu Daniel, por motivo análogo aos que levou os náufragos da nau Catrineta a "deitarem sola de molho para o outro dia jantar".
Esgotado este pecúlio literário, lembrou-se Daniel de escrever cartas. Encontrou, porém, o tinteiro muito pobre de tinta; essa, amarela e bolorenta; e, pior que tudo, uma pena de pato, de tantos caprichos, que lhe fez perder logo a paciência.
Veio para a janela; e, durante algum tempo, divertiu-se a atirar biscoitos a um cão, que andava solto pela quinta. As galinhas, patos, pombos e perus, que havia em abundância na casa, corriam tumultuosamente a disputar ao quadrúpede as migalhas as quais ele defendia com unhas e dentes.
Este jogo de circo, em miniatura, encantava Daniel. Afinal cansou-se dele também, e fê-lo cessar.
Vendo então um gato em pachorrento repouso, no alto duma ramada distante, tomou um espelho, e, por meio dele, fez cair sobre a cabeça do sonolento animal os raios ofuscadores daquele sol de agosto.
O gato, assim despertado, abriu os olhos, mas fechou-os logo, e desviou a cabeça para se furtar àquela pouco agradável impressão. Depois de vários movimentos, sentindo-se sempre perseguido por o mesmo reflexo, ergueu-se, espreguiçou-se, aguçou as unhas na madeira da ramada, e, voltando-se para o outro lado, ajeitou-se com o manifesto intento de concluir o sono interrompido.
Impossibilitado, por esta evolução do gato, de continuar a incomodá-lo da mesma forma que até ali, Daniel fez-lhe pontaria com uma maçã verde, e tão certeira que o projetil foi bater em cheio nas costas do animal, que num salto desapareceu.
Terminou para Daniel mais este divertimento.
No peitoril da janela descobriu, porém, uma formiga. Uma formiga! Que valiosos achado naquelas alturas!
A providência dos desocupados velava decerto por ele.
Procurou logo uma migalha de pão e pô-la na passagem do laborioso inseto.
A formiga parou, tenteou com as antenas o estorvo, assim de repente lançado no seu caminho, examinou-o de todos os lados, depois, talvez por capricho - porque até os insetos têm, a meu ver, alguns caprichos - deu-lhe para desprezar o alimento e deitou a fugir.
Daniel insistiu, colocando-lhe outra vez o pão na passagem; o mesmo exame da parte da formiga, e a mesma rejeição final. Nova tentativa de Daniel foi ainda seguida do mesmo resultado. Era demais para sua paciência; com um sopro fez voar a migalha e formiga pela janela fora.
E mais uma vez, ficou sem entretenimento.
Pôs-se a passear no quarto; primeiro descrevendo ziguezagues; depois, procurando conservar os pés na linha de juntura de tábuas do soalho; em seguida, medindo escrupulosamente a passos regulares o comprimento e a largura do retângulo do aposento; e, feita esta última operação, multiplicou os resultados obtidos, como se tomasse muito a peito o cálculo daquela área.
Completa esta tarefa, e, depois de alguns bocejos expressivos de enfado, procedeu ao trabalho, não menos importante, de equilibrar na ponta do dedo mínimo uma vara de marmeleiro.
Cansou-o cedo a violência do exercício, no qual, de mais a mais, não foi muito feliz; este mau êxito desgostou-o como se naquilo tivera posto a sua reputação.
Acendeu um cigarro comprado no único e mal fornecido estanco da terra. O papel parecia, porém, apostado a impacientá-lo: era incombustível; o tabaco tinha crepitações que aos ouvidos de Daniel soavam como risadas de mofa; e os lumes prontos, aqueles perfeitos e elegantes lumes prontos de pau, primitivos modelos da industria nacional, bem conhecidos de nós todos, perdiam a cabeça à primeiro tentativa feita para os inflamar... faziam-na perder também a Daniel, diria eu, se se usassem ainda os trocadilhos.
Chegou a despejar uma caixa para acender o cigarro, e este ardia-lhe só de um lado. Afinal não fumou.
Para desabafar a sua impaciência, trauteou toda a música italiana que a memória lhe armazenava, e acabou por cantar em voz alta a ária de Genaro na Lucrécia:
Di pescator ignobile
Esser figliuolo credei
Nisto, chegando à janela, viu que os moços da lavoura estavam todos a olhar para cima boquiabertos, admirando aquele acesso de fúria musical.
— Bom - pensou Daniel - Estou dando escândalo, e a arriscar a minha reputação de homem sisudo.
E calou-se, tocando com os dedos um rufo no peitoril da janela.
Depois passeou, sentou-se, ergueu-se de novo, e tornou a passear.
Achando por acaso uma pedra de giz, escreveu distraído, na porta da janela, as seguintes palavras:
Coge-Çofar - Sumatra - Telescópio - Manon Lescaut
O oculto fio lógico, que, encadeava essas quatro palavras na mente de Daniel, é um mistério que eu não sei decifrar.
O giz gastou-se.
Ó doce vida da aldeia - exclamou por fim Daniel com amargura - Ó sonho dourado dos poetas de geórgicas e de idílios, como eu me estou deliciando em ti! Eis a secura quies, os otia in latis fundis e os molles somni, de que fala o poeta. É isto! Ora eu sempre queria que aquele bom do Virgílio me dissesse o que se há de fazer no campo a estas horas do dia? Que vida! que vida esta, meu Deus! e que futuro!
Ao dizer isso, lançou casualmente os olhos para o leito, e, como se este lhe desse a resposta, ao que ele queria perguntar ao cantor de Enéias, deitou-se.
Deitou de costas, e pôs-se então a contar as tábuas do teto.
Contou dezessete.
— Dezessete, noves fora, oito - disse insensivelmente Daniel.
Depois reparou que eram oito os vidros da janela, e admirou lá consigo muito esta, na verdade admirável, coincidência.
Um resultado tão curioso animou-o a prosseguir em observações análogas.
Preparava-se para contar as cabeças dos pregos, que viu pelo teto, porém uma mosca importuna. teimando em pousar-lhe na testa, veio perturbá-lo neste ponderoso exame, e obrigou-o a desistir.
Por acaso, fitou então os olhos em uma espécie de mancha escura, que estava na parede fronteira. Ao princípio olhou-a distraído, mas pouco a pouco, a atenção empenhara-se naquilo, como se em objeto de grande monta.
A distância não lhe permitia distinguir o que fosse.
— É uma nódoa de umidade, decerto - disse Daniel consigo - ou não... é um inseto talvez... Mas não se move?... Seja o que for...
E desviou os olhos.
Daí a pouco estava outra vez a olha r para lá.
— É um inseto, é... mas tão imóvel!...
Não pode deixar de soprar-lhe, ainda que sem probabilidade nenhuma de o atingir, pela distância a que lhe ficava.
A mancha negra não se movei.
— Não é inseto - pensou Daniel.
E outra vez retirou a vista daquele ponto, para, passados instantes, a levar de novo lá.
— Mas a forma é de inseto...
E ergueu meio corpo e estendeu a cabeça para o sítio. Não pode ainda distinguir o que fosse aquilo.
Tornou a deitar-se, simulando a resolução de se não importar mais com o problema.
Mas a curiosidade irritada subiu a ponto de o constranger a levantar-se. Aproximou-se então da mancha da parede, e viu que era uma mariposa escura, em um daqueles estados de imobilidade, em que por tanto tempo se conservam às vezes. Daniel não resistiu à tentação de lhe tocar de leve nas asas; a mariposa fugiu.
Perseguindo-a, chegou até a janela.
Neste momento passava no pátio um dos mais velhos criados da quinta. Daniel chamou-o e mandou-o subir.
Daí a instantes, entrava-lhe o homem no quarto.
Daniel deitou-se e disse-lhe que falasse.
O criado não sabia em quê.
— No que quiseres; mas fala-me para aí.
O velho olhou para a janela, olhou para o ar, e disse:
— Temos vento; aquelas nuvens brancas costumam dar nisso.
— Tu sabes o que é o vento? - disse Daniel, espreguiçando-se
— O vento? O vento é assim um coisa... como um... assopro - respondeu o homem.
— És um asno. O vento é uma corrente de ar, produzida pela desigual distribuição de temperatura na atmosfera.
E Daniel dizendo isto, entre dois bocejos, olho para o criado divertindo-se em estudar-lhe no rosto o efeito da definição científica.
O homem abriu a boca, sorrindo de dúvida.
— Mas aposto que o menino não me sabe dizer uma coisa?
— O quê? - perguntou Daniel, que estava a achar sabor ao diálogo.
— Donde vem o vento e para onde vai?
Esta pergunta, análoga a outra que, ainda não há muito se fez em lugar mais sério, embaraçou algum tanto Daniel.
— E tu sabes, Antônio?
— Eu!? Não que nem nenhum matemático. E diga-me, sabe também o que são estes sinais que aparecem, às vezes, como a semana passada?
— Que sinais?
— Pois não viu aquela noite da semana passada a Lua a sumir-se, que era uma coisa de estarrecer?
— Ai, isso era um eclipse.
— Um eclis? Pois um eclis, seria. Mas o que é aquilo?
— É a Terra.
— Terra!
— A Terra, a Terra, a sombra da Terra, do mundo.
— A sombra! Então... nós estamos de baixo e a Lua de cima, como lhe havemos de fazer sombra? Essa não é má!
Daniel, para se distrair, quis experimentar até que ponto podia fazer compreender a este homem a idéia do fenômeno físico em questão. Alguma coisa se há de tentar na aldeia, em uma longa tarde de estio.
— Imagina tu aquela janela, o Sol; eu a Lua; tu a Terra. Ora bem; põe-te a andar pela esquerda.
— Mas se a janela é que é o Sol, que ande a janela.
— Não há tal; pois a Terra é que anda.
— Como! Então o Sol não é que anda?
— Não. O Sol está parado.
O criado deu uma risada.
— Muito obrigado. Para ver o Sol andar, olhe que não é preciso ir ao Porto. Vê-se mesmo de cá.
O passatempo principiava já a enfastiar Daniel.
Veio interrompê-lo a propósito uma criança de nove anos, filha do seu interlocutor, a qual tendo ouvido a voz do pais, entrou sem cerimônia, pelo quarto adentro. Ao ver, porém, Daniel, parou como hesitando.
— Vem cá, pequena, vem cá - bradou-lhe Daniel, que naquele momento recebia com prazer toda a qualidade de diversão. - Não tenhas vergonha, vem cá. Toma um biscoito.
A pequena ganhou ânimo com a oferta, e dentro em pouco estava a comer biscoitos, familiarmente sentada junto de Daniel.
— Então como se diz? - perguntava o pai; e, como ela não respondesse, respondeu ele próprio:
— Muito obrigado, Sr. Daniel.
— Tu como te chamas, pequena? - perguntou Daniel.
— Rosa.
— Uma criada de V.S.ª - emendou o pai.
A pequena dispensou-se de repetir.
— Olha - continuou Daniel, tomando-a ao colo - dize-me uma coisa, que é da tua mãe?
— Está em casa.
— E tu gostas dela?
— Gosto.
— Gosto, sim senhor - emendou o pai.
— E de teu pai?
A criança olhou para o pai e pôs-se a rir.
— Dize assim - disse-lhe este: - Também gosto, sim senhor.
— Também gosto - repetiu a pequena, suprimindo, como uma inútil excrescência, o resto da frase.
— Mas o teu pai é um tratante.
A criança sorriu.
— Dize: não é, não senhor - ensinou-lhe o pai.
— Não é - repetiu a criança.
— É, é...
— Não é; vossemecê é que ...
— Ah! - atalhou o velho. - Feia! isso não se diz.
— Tu sabes adivinhas, Rosa? - perguntou Daniel, rindo.
— Sei.
— Sim, senhor - corrigiu ainda outra vez o velho.
— Ora vamos lá a uma adivinha.
A pequena não se fez rogar.
— Então diga lá o que é esta:
Altos castelos
Verdes e amarelos
Isso é de certo a casa de um brasileiro - respondeu.
A criança pregou-lhe uma risada, e toda satisfeita, exclamou:
— Boa! É uma laranjeira.
— Ah! Ninguém havia de dizer. Vá lá outra.
— Que é, que é, que
Alto está, e alto mora,
Todos o vêem, e ninguém o adora?
Daniel ergueu a cabeça a fingir que meditava no enigma; viu que o pai da pequena lhe fazia não sei que sinal com o dedo. Seguindo a direção que lhe pareceu indicada assim, Daniel parou a vista em um pinheiro longínquo, e disse:
— É um pinheiro.
Pai e filha deram uma risada.
— É um sino - disse a pequena.
— Pois nem viu que eu apontava para a torre.
— E esta - continuou a criança:
Mil marinhinhos, mil marinhões,
Dois parafitas e quatro chantões?
- Isso agora é que tem mais que se lhe diga. Que língua vem a ser essa? Marinhinhos e marinhões? e que mais? Que mais?
— É um boi, é um boi - respondeu a rapariga, a quem faltava a paciência para ver estar a pensar muito tempo.
— Um boi! Sempre quero saber como é que isso é um boi. Mil marinhinhos, um boi?
— Mil marinhinhos, são os pêlos.
— Ah?... E mil marinhões?
— São os pêlos maiores - respondeu o pai.
— Dois parafitas são as gaitas - continuou a filha.
— E então, provavelmente, os quatro chantões... - ia a dizer Daniel.
— São as pernas - concluíram pai e filha.
— Pois essas, de todas é a mais bonita - disse Daniel, que efetivamente, no estado de espírito em que se achava, encontrou certo sainete de originalidade no disparatado enigma, tão popular no Minho.
Neste tempo entrou Pedro no quarto; o criado velho retirou-se, levando a filha consigo, e os dois irmãos ficaram sós.