As Pupilas do Senhor Reitor/XXXIX
Ao abrir as janelas do seu quarto de dormir, e ao franquear os pulmões ao ar fresco da madrugada, a Sr.ª Teresa, a fiel esposa do nosso conhecido João da Esquina, recebera, de mistura com o perfume das flores, que andava nos ares, não sei que cheiro de escândalo de lhe desafiar a curiosidade.
Para estas coisas tinha inquestionavelmente a Sr.ª Teresa um sexto sentido, apurado como nenhum dos outros.
Segundo era seu costume, quando percebia em si tais manifestações, pegou na cesta da meia, e veio tomar assento por detrás do mostrador, e entre as sacas de arroz da loja de seu marido.
A menina Francisca, aquela mesma trigueira celebrada em octossílabos por Daniel, viera sentar-se também ao lado da sua mãe. Era a primeira vez que tal sucedia depois dos episódios que terminaram as visitas do estouvado clínico.
Com os seus olhos travessos, e o sorriso malicioso já de volta aos bem talhados lábios, valeu naquele dia aos pais uma afluência maior de fregueses à loja.
A cada nova personagem que entrava, a Sr.ª Teresa dirigia, com um sorriso de afabilidade, a pergunta sacramental:
— Então que se diz de novo?
E de cada vez esperava achar justificativa a voz do instinto de escândalo, que, naquela manhã, tão alto berrava em si.
Por muito tempo foram , porém, malogradas estas esperanças.
Mas, aí pelas nove horas, entrou na loja o sacristão da freguesia, a comprar cigarros - porque o Sr. João da Esquina, como é costume nas terras pequenas, vendia tudo, desde o doce de chá, à vela de sebo; e os cigarros entravam também na lista dos objetos do seu negócio.
Era este sacristão um rapaz de cara rapada, e tipo de velhacaria, sempre em olhares e suspiros diante da menina Francisca, em quem estes sintomas de afeto não encontravam demasiado agrado.
— Ora aqui vem quem nos traz novidades fresquinhas - exclamou, ao vê-lo entrar, a Sr.ª Teresa que, apesar da opinião que lhe ouvimos sobre o poder nutritivo das aparas de hóstias e escorralhas de galhetas, não era, ultimamente, de todo desfavorável às pretensões do sacristão.
— A Sr.ª Teresa é que mas devia dar, - disse este - pois está mais perto do sítio onde elas ferveram.
— Não te entendo, Joaquim, então que há? - perguntou, já ralada de curiosidade, e poisando a meia, a esposa do Sr. João; e os olhos daquela família toda convergiram para os lábios do homem.
Este sentiu-se lisonjeado com as atenções, e muito principalmente com as da menina Francisca, cujo olhar fixo por pouco lhe fazia perder a frieza da ânimo.
— Então deveras não sabem o escândalo desta noite?
— Não; que houve?... Conta lá isso, Joaquim, conta lá.
E o Sr. João da Esquina, no ardor da curiosidade, e para fazer a boca doce ao orador, trouxe-lhe uma mão cheia de figos secos de uma seira encetada e rejeitada por freguês pechoso; e a Sr.ª Teresa esfregou as mãos, e ajeitou-se para ouvir melhor; e a menina Francisca puxou a cadeira em que estava para junto do mostrador.
O sacristão principiou:
— O filho do seu vizinho... o doutor novo...
Neste ponto despediu um olhar certeiro à menina Francisca, a quem um acesso de tosse acometeu; a Sr.ª Teresa espirrou, e o Sr. João deixou cair não sei o quê, e abaixou-se para apanhar o que deixou cair. O orador prosseguiu:
— Pois o tal Sr. doutorzinho... esteve para o levar o diabo esta noite.
— Que me dizes, homem? - perguntou a Sr.ª Teresa, já debruçada no mostrador.
— É verdade.
— Mas como foi isso?
— Foi o irmão, o Pedro, que esteve para o matar.
— Ora, contos! - disse o Sr. João da esquina, encolhendo os ombros, a afetar uns ares de dúvida, mas dando um pau de canela ao sacristão que era perdido por gulodices.
— É o que lhe digo - insistiu este, chupando a casca aromática.
— Mas então por quê?
— A mim contou-me esta manhã a tia Brásia, à missa primeira, que o Pedro pilhou o irmão a sair da cada das do Meadas, e disparou contra ele a espingarda. A tia Brásia afirmou-me que tinha ouvido o tiro.
— Agora me lembro que também ouvi um tiro esta noite - disse a Sr.ª Teresa; e acrescentou com a maior fleuma do mundo:- E matou-o?
— Não, não o matou; mas julgo que o feriu.
— Não se perde nada - disse laconicamente o Sr. João da Esquina.
— E é de perigo? - perguntou, um tanto inquieta, a menina Francisca.
— Sossegue, menina - respondeu o sacristão, despeitado pelo tom da voz, em que ela dissera isto. - Sossegue, que, ainda que lhe tirasse um olho, ficava-lhe o outro para ver as raparigas da terra, que todas lhe fazem conta.
A petulância foi repelida por a menina com um gesto de soberano desdém.
— Mas então... - continuou a mãe - diz-me cá, então o Daniel tinha assim entrada em casa das do Meadas? Como se entende isso?
— Ora, como se entende isso? Pois não conhece ainda aquele melro?
— Mas era com a Clarita então?
— Pelos modos, era com a Margarida, ao que dizem, mas ... eu por mim, inclino-me a crer que era com ambas - respondeu o sacristão, com a firmeza do historiador crítico, que decide ecleticamente entre duas versões de um fato controvertido.
— Com a Margarida?! - exclamou João da Esquina. - Pois com aquela cara de Nossa Senhora de Soledade... aqueles ares de Santa... Eu sempre vejo coisas!
— São as piores - sentenciou a esposa. - Bem me fio eu em santidades.
— Não sei como se pode gostar daquilo - disse desdenhosamente a menina Francisca.
— Deixe lá, menina - notou com ironia o sacristão, ainda despeitado. - A Margarida não é para desprezar assim. É trigueirinha, mas nós todos sabemos que Daniel não desgosta delas, ainda mais trigueiras.
Francisca mordeu os beiços ao escutar a alusão, e espetou a agulha no novelo de linhas; o pai lançou ao sacristão um olhar furibundo, e descarregou com o martelo uma forte pancada nos pintos falsos, que, para escarmenta de velhacos, tinha cravados no mostrador; e a própria Sr.ª Teresa armou-se de um sorriso constrangido, pouco animador para o sacristão, e ao mesmo tempo apertou nervosamente uma orelha ao gato maltês, que dormitava acocorado junto dela, sobre uma saca de arroz.
Muda, mas expressiva linguagem simbólica, que se podia traduzir assim:
A menina Francisca - Tinha alma de atravessar o coração com esta agulha, maldito.
O Sr. João da Esquina - Não sei o que me contém, que te não quebre com este martelo quantos dentes tens na boca, brejeiro.
A Sr.ª Teresa - O que tu merecias era um puxão de orelhas, bem puxado, maroto.
No entretanto, o sacristão prosseguia, imperturbavelmente:
— A tia Brásia disse-me que havia muito que o Daniel não largava a porta das do Meadas. E isso é fato. Pelos modos, o Pedro soube-o, e então, se lho não tiravam das mãos, dava cabo dele.
— Mas então sempre havia alguma coisa com a Clara também? - insistiu a Sr.ª Teresa, a quem a opinião crítica do sacristão agradava, por mais escandalosa.
— Pois isso para mim é de fé - disse o sacristão.
Por este tempo tinha entrado na loja um jornaleiro, o qual, tendo ouvido as últimas palavras do diálogo, percebeu logo do que se tratava.
— Houve mosquitos por cordas esta noite lá para as minhas bandas, houve - disse o homem com um sorriso malicioso.
— Ah! também já sabe? - perguntou o sacristão.
— Ora se já sei! Pois eu não estive lá?
— Ai, pois viu?
Os quatro, que em comum fizeram esta pergunta, fitaram avidamente os olhos do jornaleiro.
— Eu lhe digo - disse o homem, tirando o chapéu e coçando na cabeça. - Eu tinha chegado de fora, havia meia hora. Tinha sido rogado para uns trabalhos aí para longe. Por sinal, que me pagaram como a cara deles. Sempre lhe digo, Sr. João, que isto de jornais está uma pouca vergonha. Deu o que tinha a dar. Eu lembro-me dantes... Mas vamos ao caso, eu chegava a casa; e tinha dito lá à minha patroa... que, coitada, também não tem andado lá essas coisas, não - mas tinha-lhe eu dito que me fritasse uns ovos com presunto - e deixe-me dizer, que os ovos este ano também são uma peste. Parece que deu o arejo nas galinhas. Diabos as levem. Daqui a pouco, da maneira que isto vai, ficamos sem ter que comer e a fazer cruzes na boca. Mas estava lá a minha patroa a fritar-me os ovos... É verdade, ó Sr. João, que diabo de azeite me deu vossemecê o outro dia, que nem a mão de Deus padre se pode levar.
— Homem, pois ninguém mais se me tem queixado dele. É você o primeiro.
As mulheres e o sacristão começavam a impacientar-se.
— Eu não sei o que lhe acho, sabe-me a chapéu velho, o maldito. Mas estava lá a minha Quitéria ao lume, eis senão quando eu ouço uns gritos de "Aqui del-rei".
— Então eles gritaram "Aqui del-rei"?
— Que os ouvi eu, sim senhor, tal qual. Pus-me logo na rua. Porque eu cá sou assim. Olhe o Sr. João, quando foi daquela espera, que fizeram ao escrivão da fazenda, eu lá estava.
— Na espera? - perguntou o sacristão, em tom de zombaria.
— Não que eu não sou desses - respondeu o jornaleiro carregando a sobrancelha - quando quero fazer mal a alguém não me escondo. Vou ter com ele, esteja onde estiver, na sacristia que seja. Ora fique sabendo, que pode ser que lhe sirva.
— Então acaba ou não acaba a sua história, Sr. Manuel? - disse a Sr.ª Teresa, desfazendo a alteração nascente.
— Salto para a rua - continuou o jornaleiro - e como o barulho vinha do lado dos Juncais, tomei por lá. Vi-me em calças pardas. Não fazem idéia como está aquilo nos Juncais. Uma coisa é ver, e outra é dizer. Sempre temos uma Câmara, louvado seja Deus! Deixa estar aquele mar nos Juncais... porque é um mar, sem tirar nem pôr. Eu queria que a Sr.ª Teresa passasse por lá de noite, como eu, que sempre havia de dar ao diabo a cardada.
— Mas depois que viu? - perguntou a Sr.ª Teresa exausta de paciência com as intermináveis digressões do orador; e acrescentou baixinho: - Sume-te demo mau!
— Quando cheguei perto da casa das do Meadas, passou por mim um homem, e eu meti-me num canto para, se fosse preciso, agarrá-lo...
— Deixá-lo fugir - continuou impenitentemente o sacristão sorrindo.
O Manuel do Alpendre, que era a graça do jornaleiro, nem se dignou a responder. continuou:
— Vi que era o Daniel ou o diabo por ele, mas pareceu-me que levava alguma coisa quebrada. Ia assim como a mancar. Olhe que sempre se vai saindo o tal, menino! Eu digo, que se ele escapa de tantas que faz! Mas há gente assim! Uns a cavar pés de burro por este mundo, outros então a levar a vida com uma perna às costas. Este é um dos que parece ter nascido em um fole, o tal Sr. Daniel... Bem fez cá o Sr. João, em lhe fechar a porta na cara, e pôr termo às visitas que ele fazia por aqui; já se sabe por que, sim, já à boca cheia se dizia...
— Vamos ao caso, vamos ao caso - interrompeu a Sr.ª Teresa - Você que fez depois?
— Eu? Segui o caminho e cheguei à porta das raparigas. estava já lá o Pedro do Abade, o João das Pontes, o tio Gaudêncio das Luzes... por sinal que anda escangalhado o velho. Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha. Não sei que diabo aquilo é. Eu ponho as mãos numas Horas, se o homem deita o ano fora. Quem viver, verá. Mas vai, chego-me a ele... "Ó tio Gaudêncio, digo-lhe eu, que é isto aqui?" - Olha, diz-me ele. - E vai, eu olho, e vejo o Pedro das Dornas com uma espingarda na mão, e o Sr. Reitor ao pé dele, e no chão uma mulher.
— Morta? - perguntou com vivacidade a Sr.ª Teresa.
— Morta não, senhora. A mulher estava viva.
— Mas o tiro que ele deu?
— Eu já disso não sei!... Pois ele deu algum tiro?
— Pois eu não ouvi um tiro? - disse a Sr.ª Teresa. - E não fui eu só, houve mais quem ouvisse.
— Que ele tinha a espingarda, isso lá, tinha.
— E deu o tiro; não tem dúvida que deu. Mas então era a Clara?
— Nada, não era; era a irmã, a mestra. Eu bem a vi. E vai ao depois, o Sr. Reitor não sei o que disse e tal, sim senhores, e pega e vai ao Pedro e manda-o embora, e volta-se para o, povo que por ali estava, e manda-o também embora, dizendo que não dessem à língua; e com razão, porque a rapariga é bem afamada, e, se se principiasse agora por aí a falar... Sempre me há de lembrar que quando minha mulher...
— Mas o Pedro o que disse à saída?
— Não disse nada. Parecia nem dar por a gente. Ia assim a modo de estarrecido. Se lhe parece! Sempre um homem às vezes se encontra nelas boas! Uma ocasião tinha eu ido...
— Mas então está bem certo que era a Margarida a que...
— Ora se era! Pois eu não conheço a Margarida? Ainda o pai era vivo, que eu, indo um dia com ele a uma patuscada... que nós dávamo-nos muito; aí está que, faz pelo S. Martinho doze anos... Dantes é que o S. Martinho era S. Martinho... Lembra-se, Sr. João, daquela vez que nós fomos todos?... que tempo! Ainda era vivo o tio André de Mortosa... Que homem tão divertido! Aquilo era uma coisa por maior... pois quando ele ia de serandeiro às esfolhadas! Dantes sim, é que se faziam esfolhadas... Agora já se não fazem que se prestam... Aí está que eu fui no outro dia à do Damião... pois, senhores, parecia-me um enterro... Ele também teve fraco S. Miguel este ano... O homem não sabe dar amanho ás terras... As terras querem-se bem tratadas, não há que ver... É como uma pessoa; quem não tem o sustento devido não pode medrar. Olhem aquela rapariga, filha da João Ferreiro... Quem a viu e quem a vê.
E, de incidente em incidente, corria à vela cheia o pensamento de Manuel do Alpendre pelo vasto mar de suas recordações, afastando-se cada vez mais do assunto primitivo, e cada vez desesperando mais a curiosidade do auditório.
O sacristão cortou o fio da digressão.
— Mas aí vem quem nos pode dar informações exatas - disse ele, vendo entrar na loja nova personagem.
Era uma mulher cor de cera, muito macilenta, de olhos meio fechados, e sorriso de beatitude nos lábios. Usava o cabelo curto penteado para diante da testa, a qual ficava coberta por ele até às sobrancelhas; cingia-lhe a cabeça um lenço branco, posto à maneira de barrete; sobre o primeiro, outro de cor escura, atado por baixo da barba, e puxado para diante, até deixar-lhe o rosto como no fundo de uma gruta, e, ainda por cima, a capa de baeta, sem cabeção.
Das mãos pendia constantemente um comprido rosário.
Era enfim um desses tipos de beata, comuns nas nossas aldeias; mulheres cuja vida se passa em devoções contínuas, em novenas e vias-sacras, e em perene confissão; obra dos gordos missionários, que deixam a outros o cuidado de desbravar a gentilidade das nossas possessões, para andar na tarefa mais cômoda de tolher o trabalho e a atividade na casa do lavrador.
Imbuindo o espírito das mulheres de preceitos de devoção absurda, afastam-nas do berço dos filhos, da cabeceira do marido enfermo, do lar doméstico, para as trazer ajoelhadas pelos confessionários e sacristias; com uma brava eloqüência, perigosa para quem não tiver o senso preciso para a achar ridícula, incutem-lhe falsas doutrinas desmentidas e condenadas em cada página do Evangelho, tão severo sempre contra fariseus e hipócritas.
Numa localidade, não muito distante do Porto, ainda há pouco um desses apóstolos, que andam por aí reformando escandalosamente a moral dos povos, pregou do púlpito "que a salvação de um homem casado era tão difícil, como o aparecimento de um corvo branco".
É triste e desconsolador o aspecto da terra, onde esta praga farisaica tem feito maiores estragos. A alegria do povo, esse reflexo de alegria das mulheres, porque das mães se reflete nos filhos, das esposas nos maridos, das raparigas nos amantes, desaparece pouco a pouco.
Com os trajos escuros, os cabelos cortados, os olhos baixos, as mulheres têm por pecado rir; o cantar como um crime; ou se cantam, são umas certas cantigas do Divino, ensinadas pelos missionários, nas quais a austeridade do conceito nem sempre é mais respeitada do que a eufonia da forma. Algumas ouvi eu, em que a vinda de missionários era saudada com um vigor de imagens quase oriental; eram arremedos grosseiros do Cântico dos Cânticos, que fariam rir, se lhes não percebessem piores intenções.
E, no meio destas ostentações de ascetismo, quantas vezes se esconde folgada a devassidão, que não dúvida ornar o pescoço de camândulas e bentinhos, e vê na excitação nervosa, produzida pelos jejuns, um alimento a favorecê-la?
O horror ao escândalo, eis o que caracteriza esta moral de Tartufo. Salvem-se as aparências , rezem-se as devoções todas, e a culpa será atenuada.
Traz-se, por exemplo, o pulso cingido por uma cadeia de aço benzida de certa forma - distintivo das escravas de Nossa Senhora - cadeia milagrosa, que, asseguram os missionários por lá, tem a propriedade de se alargar ou apertar de per si, de modo a andar sempre justa ao braço, quer este engorde, quer emagreça; pois já o diabo não se atreve contra quem usa este talismã.
Ora digam se, quando não seja senão para aperrear o diabo, não dá logo vontade de experimentar a eficácia da cadeia cometendo um delito?
Era pois a Sr.ª Josefa da Graça a mais famigerada vergôntea deste viveiro de aspirantas a santas, que se estava organizando na aldeia. O reitor, que não era para imposturas, tratava-as a todas com aspereza, o que não lhe granjeava muitas simpatias neste beato congresso.
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo - disse ao entrar na loja, e com voz dolentemente melodiosa, a santa de que falamos.
— Para sempre seja o Senhor louvado - respondeu-lhe menos beatamente a Sr.ª Teresa.
— Faz-me favor de me vender duas velinhas de cera para uma promessa que fiz ao Divino Coração de Maria, Sr. João, e que seja pelas Divinas Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
João da Esquina satisfez prontamente a requisição, mas enquanto o fazia, perguntou:
— Então que houve esta noite lá pelas suas vizinhanças, ti'Zefa?
— Eu sei, filho? Eu de portas para fora nada posso dizer. Já não é pouco tratar cada um da sua alma, e dirigi-la no caminho do Céu. O Padre José ainda ontem o disse.
— Pois sim; mas, quando se faz muito barulho na rua, sempre se abre um cantinho da janela - disse João da Esquina, piscando o olho para o sacristão, que lhe sorriu em resposta.
— Abrir a janela? Para que há de uma pessoa abrir a janela? Para se meter em trabalhos? Não que eu, filho, todas as noites rezo ao meu devoto padre Santo Antônio, para que me livre de perigos e de trabalhos, de maus vizinhos de ao pé da porta, e de ferros de el-rei.
— Mas pelos modos o santo não a tem ouvido, porque enquanto a maus vizinhos...
— Nem por isso a deixam dormir, não é assim, ti'Zefa? - perguntou a Sr.ª Teresa, entrando na conversa.
— Vizinhos... o que se diz vizinhos, não tenho eu; a casa mais perto é das pequenas do Meadas, e dessa à minha ainda é um bocadinho.
— Mas ouvia-se lá o barulho?... perguntou o sacristão.
A beata fez um gesto afirmativo e acrescentou.
— Olhe, Sr. Joaquim, pecados deste mundo, sabe?
— Vamos lá. A ti'Zefa sempre tem inclinação pelas raparigas. São suas conhecidas há muito tempo e por isso...
— Eu?! Olhe ainda esta manhã o disse o Padre José, aquilo são tentações do demônio, sabe o Sr. João da Esquina o que são tentações do demônio; pois é aquilo. Não que dizem que não vale nada ser escrava de Nossa Senhora. Não, não vale, Já se está a ver. As coisas estão a saltar aos olhos.
— Mas, afinal que houve? O caso foi com a Clara ou com a irmã?
A pergunta era feita pelo sacristão, por quem a beata tinha essas contemplações, e por isso respondeu:
— Foi com a Margarida, Sr. Joaquim. Aquilo estava de ver! Então admirou-se? Pois olhe, eu... A gente não deve murmurar do seu próximo, mas enfim... isto é por conversar e não passa daqui. Aquela rapariga vai mal; ainda hoje mo disse o Padre José; tirando lá a sua missa ao domingo, já ninguém a vê mais na igreja. Olhe a Sr.ª Teresa que, ali onde se vê, não quis pertencer à confraria do Sagrado Coração de Maria! Já viram? Mas, como disse o Sr. Padre José, e é assim, a culpa não é dela.
— O nosso reitor é quem a aconselha - insinuou João da Esquina.
— Julgo que sim, Sr. João, e... Enfim, dada um sabe de si, e Deus de todos, mas a falar a verdade... - isto não é agora por dizer do Sr. Reitor, que é muito boa pessoa, assim não fosse aquela zanga que ele tem ao Padre José e à confraria; mas que ele não as traz bem guiadas, isso não traz...
— Mas vamos a saber - disse interrompendo-a, a Sr.ª Teresa, e tomando um tom de íntima familiaridade, que provou admiravelmente, em soltar a língua à beata - mas se o caso era com Margarida só, como é então que o Pedro quis matar o irmão? Que tinha o Pedro com isso?
— Pelos modos - disse o jornaleiro, que estivera calado - ele julgou ao princípio que era Clara, e... Faz-me lembrar quando, há de fazer três anos...
— Nada, não, senhor, não foi isso - emendou a beata. - O que me disseram foi que a Margarida quis lançar as culpas à Clara, que foi então que o Pedro espetou a navalha no irmão.
— Então ele espetou-lhe alguma navalha? - perguntou a menina Francisca.
— Pois não espetou? E diz que, por pouco, lhe chegava ao coração...
— Santo nome de Jesus! Isso é crime de degredo, pelo menos.
E, dizendo isto, a Sr.ª Teresa parecia satisfeita por o escândalo ir assumindo maiores proporções.
O jornaleiro notou do lado:
— Ó ti'Zefa, isto é que me não parece verdade. Eu julgo que ele nem o feriu.
— Pois eu não vi, Sr. Manuel?
— Com as janelas fechadas, ti'Zefa?
A beata mordeu os beiços.
— Vi esta manhã o sangue, é o que eu queria dizer. E por sinal que não era tão pouco.
— Quem havia de dizer que aquela sonsinha da Margarida... observou o tendeiro.
Neste ponto entraram na loja mais alguns fregueses que já informados do que se passava prestaram logo ouvidos à conversa.
Entre eles achava-se também a criada de João Semana, a qual viera comprar arroz para o jantar de seu amo.
Não foi de todo auditório a menos atenta esta nossa conhecida; mas uma contração de lábios e sobrancelhas , e o olhar que fixou na beata mostravam que não era de ânimo satisfeito, que ela escutava os boatos daquela manhã.
A confessada do Padre José continuava:
— Olhe, Sr. João da Esquina, isto de viver assim ao deus-dará, não é lá grande coisa. Aquilo naquela casa é uma república, sabe? Falta ali uma pessoa de juízo e de temor a Deus. O Sr. Reitor... enfim, eu não quero dizer mais nada.
— Pois é pena - resmungou a Sr.ª Joana.
— É assim, ti'Zefa, é assim. O Sr. Reitor dá toda a liberdade àquelas raparigas. Aquilo mais tarde ou mais cedo estava para suceder - disse a Sr.ª Teresa.
— Melhor tu olhasses por o que te vai por casa - continuava a resmonear Joana.
— Olhem que mestra de crianças! - observou uma gorda oleira, que viera comprar uma quarta de sabão. Não, filha minha não mandava eu lá.
— Deixa estar, que contigo havia de aprender boas prendas - comentava ainda Joana.
— Não há de ser a minha que há de lá voltar.
— Nem a minha - disseram algumas mulheres presentes.
A Sr.ª Joana principiou a ser acometida de uma tosse seca, tão significativa, que desviou para ela as atenções.
Mas a Sr.ª Joana, na qualidade de governante do velho, era na terra uma potência, com que poucos se atrevia a arrostar. Fizeram-se por isso desentendidos.
— E quem vê aquilo então! - disse João da Esquina. Toda de mantos de seda, toda Sant'Antoninho onde te porei.
— Tentações do inimigo mau, sabem? tentações do inimigo mau, é o que é. Não, que dizem que não serve de nada confessar-se a gente a miúdo, e rezar as orações dos missionários.
— Aí, serve para livrar de maleitas depois da morte - respondeu, já em voz mais alta, a Sr.ª Joana preparando-se para sair.
A beata, fingindo não entender, continuou:
— Ainda esta manhã o Padre José...
— Oh! - disse expressivamente a criada de João Semana, já da porta.
A beata fitou nela uns olhos chamejantes de cólera. Aquela interjeição irritara-lhe os nervos.
— A Sr.ª Joana tem alguma coisa a dizer do Padre José?
— E você que lhe importa? - retorquiu-lhe Joana embespinhada, voltando para dentro.
— Eu sempre queria saber...
— Ora meta-se com sua vida, que não é de muitas canseiras, e não tome tanto fogo pelo que se passa nas casas alheias. Não está mau o descoco? Olhem agora o estafermo!
— Não se zangue, Sr.ª Joana; lembre-se que a ira é o quarto pecado mortal.
— Dê conselhos, a quem lhos pedir, que eu, quando precisar deles, sempre hei de ter, graças a Deus, outras barbas melhores que as suas, para mos dar.
— Presunção e água benta, cada qual toma a que quer - disse a beata, com um sorriso de sarcasmo.
O nariz de Sr.ª Joana afogueou-se de vermelhidão, sinal de borrasca iminente.
— Ó Sr.ª Zefa da Graça, repare bem com quem se mete. Olhe que eu não sou das da sua igualha, para tomar comigo esses ares de confiança. Veja que lhe pode sair caro o risinho.
Ninguém falava com a Sr.ª Joana. Quem não quer ouvir as coisas...
— Então, então, isso não vale nada - disse, intervindo pacificamente, a mulher do João da Esquina.
— Que não vale nada, sei eu - continuou Joana - porque tenho bastante juízo para receber as coisas, como da mão de quem vêm. Mas na verdade que lá custa a uma pessoa estar a ouvir semiscarúnfias destas a porem a baba na fama de uma rapariga, de quem um só cabelo da cabeça vale por todas as beatas fingidas desta terra, por todas de cambalhota, e por tal padre também.
— Veja o que diz! depois não se queixe de ouvir..
— Que hei eu de ouvir, sua desavergonhada, sua papa-novenas, que hei eu de ouvir? - exclamava já de punhos cerrados e olhar cintilante, a irascível Joana. - Eu não tenho medo das verdades, e para as mentiras tenho estas mãos desempenadas graças a Deus. Diga o que sabe, diga para aí. Não, minha amiga, a mim não me engana você. Cuida que o rosário é fiada de alcatruzes que a há de levar ao Céu? Está servida.
— Quem chega à missa depois do credo... não pode falar... - murmurou, já intimidada, a beata.
— E você, sua rata de sacristia, tem alguma coisa com isso? Que lhe importa saber se eu chego tarde ou cedo? Não, que não tenho a sua vida, sabe? Deus, que lê nos corações, bem conhece que não é de propósito que eu... Mas vejam esta santinha com que atenção está a missa, que repara para quem entra e quem sai. São todas assim. Estas e outras coisas é que elas vão dizer ao confessor. E há de ser isto que há de pôr a boca em Margarida?
— Então julga que é peta o que toda a gente sabe por aí já?
— Não, a verdade deve dizer-se - observou João da esquina - É fato que esta noite...
— Histórias! isso não há de ser tanto como dizem. Sabem que mais? Eu só lhes desejo, aos que tiverem filhas, que Deus lhes dê a elas um bocadinho do juízo da Guida dos Meadas. Adeus.
E a Sr.ª Joana ia a retirar-se
— Espere, espere - exclamou a Sr.ª Teresa, ofendida - isso que quer dizer?
— Não posso estar a taramelar das vidas alheias, que tenho a olhar por a minha.
E saiu
Não lhe ficaram fazendo muito boas ausências as mulheres que se conservaram na loja.
A beata sobretudo espalhou todo o seu fel em palavras acerbas, apesar da costumada doçura da pronúncia, com que lhe saíam dos lábios.
Afinal retirou-se também da loja, para ir contar a outra parte o escândalo da noite passada, já mais ampliado talvez.
Dentro em pouco não se falava de outra coisa na aldeia. Cada imaginação se encarregava de variar o boato..
Houve quem desse Daniel quase morto, e o irmão fugido; outros que pelo contrário ungiam Pedro e desterravam Daniel.
De Margarida dizia-se que tinha querido sacrificar a irmã, e que esta a punha fora de casa, deixando-a assim a pedir esmola; e mil outras variantes, que o leitor pode conjeturar.
— Este rapaz não acaba bem. Ora verão - concluiu, no fim de tudo isto, o Sr. João da Esquina.
A Sr.ª Teresa apenas observou:
— Mas como lhe deu para olhar para aquela rapariga? Vejam agora as grandes bonitezas!
A menina Francisca, inclinada sobre o mostrador da loja, escrevia nele distraidamente, com um gancho de cabelo, diferentes palavras sem nexo, e no fim suspirou.