As Pupilas do Senhor Reitor/XXXVIII

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Chegou talvez para mim o momento do castigo - murmurou Daniel, passado algum tempo, depois de Margarida se retirar.

— Que está a dizer? - perguntou o reitor, olhando-o admirado.

— Que talvez àquelas mãos, das quais até hoje só tem saído o bem, vá Deus confiar a arma de uma vingança cruel.

— De que maneira?

— Pois não ouviu a firmeza daquela resposta?

— E então?

— E então? É que eu tenho o pressentimento de que, se um dia se atear em mim uma paixão violenta e fatal, e tiver de ser repelida assim, sucumbirá com ela este coração que...

— Ora adeus! Sabe os objetos que se partem batendo de encontro às rochas? São os fortes e rijos; porque os outros, os moles, o mais que podem é tomar nova forma; quebrar é que não quebram; e o seu coração é de umas branduras!

— Reconheço que o meu passado me não dá o direito de ofender-me da ironia; custa-me até a entrar de novo em justificações, que só me valem sorrisos, mas..

— Mas, ainda assim, sempre vai tentar mais uma vez - disse o reitor sorrindo. - Ora ande lá.

— Ouça-me. É uma triste confissão para o meu orgulho, a que vou fazer, mas é verdadeira. Há muito que tenho este pensamento; até no tempo em que mais procurava evitá-lo, ele me acudia. É por certo arriscado para qualquer mulher confiar em mim o seu amor, menos em um caso, que até aqui se não dera ainda comigo.

— Então qual é esse caso?

— É se ela conseguir dominar-me; se a meus olhos se conservar sempre à altura que dê à paixão, que me inspirar a natureza de um culto. Há caracteres, para os quais é isto necessidade. De ordinário, todos os meus esforços são despojar desses prestígio, que me enleia, a mulher a quem amo; porém, desde que o consigo, já não respondo por mim. Sei-o por experiência. Mas, previa-o há muito tempo, se me encontrar com uma destas naturezas superiores, para as quais nunca se extingue o resplendor que as rodeia, há de fixar-se este coração volúvel, e não haverá para elas o risco, de que das minhas afeições lhe possam resultar lágrimas.

— E conclui daí? - perguntou o padre, no mesmo tom, quase zombeteiro, em que sustentava o diálogo.

— Que Margarida não podia recear do meu amor. Eu, que duvidava já que viesse a amar seriamente, porque me julguei superior a todo o predomínio, hoje...

— Hoje, mudou de opinião.

— E mudei, creia-o. Nunca me conheci assim. Ainda antes de a ver, quando da sala imediata a estivemos escutando, não sei por quê, sentia ao ouvi-la, reviver todo o meu passado, a parte mais pura dele.

— Sei eu - resmoncou para si o reitor.

— Depois que a vi, foram sensações novas para mim, as que experimentei. Eu, que por tantas vezes, e a sorrir, tenho dado passos na vida, que fazem recear os mais audazes; eu, que, para ser arrojado, não careci nunca do forte impulso de uma paixão, pois me bastava o simples estímulo de um capricho, hesitei há pouco, como viu, ao fazer a proposta a que o dever e o coração me impeliam, hesitei de timidez, como se fosse um sacrilégio de minha parte. Depois, ao receber aquela recusa, pareceu-me sentir escurecer-se-me o futuro, e, pela primeira vez na minha vida, senti-me desalentado com este mau êxito, em lugar de encontrar nele incitamento para persistir, como tantas vezes o tinha encontrado.

— Desconfie dessas impressões súbitas e violentas, desconfie. Margarida tem razão. Eu próprio já não me atreveria a aconselhar-lhe o contrário. É melhor deixarmo-nos guiar pelas inspirações daquela alma de anjo.

— Mas se eu a amo?

— Paixão de quinze dias! - disse o reitor encolhendo os ombros.

— Aí, não, não. Sinto-me seguro desta vez a jurar-lhe...

— Não jure, - atalhou o padre - não jure nada, homem de Deus, que almas de outra têmpera, que não é a sua, têm falhado, depois de jurarem. Lembre-se do que diz o Evangelho: "Seja o vosso falar: sim, sim, não, não. Porque tudo o que daqui passe, procede do mal". - Se não perder a idéia desse amor, trabalhe por merecê-lo; mas não faça juras. Que, se alcançar aquele coração, grande riqueza granjeia, isso lhe afirmo eu. E não tenha escrúpulos de se deixar dominar, que melhor é a cabeça de Margarida do que... Mas que fazemos ainda aqui? Vá, vá ter com seu irmão. E veja como se porta. Não entre em grandes explicações. Abrevie-as, quanto puder, que é o mais prudente.

Daniel saiu da sala vagaroso e triste. O reitor, ficando só, conservou-se por algum tempo pensativo.

Esta tácita meditação acabou-a ele, murmurando não sei que mal distintas palavras, e depois, em tom mais perceptível:

— Contudo é pena. Remediava-se este enredo assim, e bem. Seria talvez uma providência para o rapaz. E eu iria mais descansado deste mundo, a dar contas da minha tutela no outro aos pais das raparigas. Mas lá se a Margarida tem os seus escrúpulos... e a falar a verdade, com alguma razão; e depois, o que é mais e muito mais, se ela não se sente com inclinação para aí? Aquilo é uma santa. Coração possui ela, mas para a caridade, que não para amores. Paciência!

E, falando assim, caminhava lentamente o reitor de sala em sala, de corredor em corredor, até se encontrar. quase sem saber de que maneira - tão distraído ia - junto do quarto de Margarida cuja porta viu meio aberta. Entrou.

Ao rumor de seus passos, ergueu-se, de súbito, uma mulher, que estava de joelhos no chão, e debruçada sobre o leito com em um genuflexório.

Era Margarida.

Colhida de improviso, não teve tempo de enxugar as lágrimas que em fio lhe corriam pelas faces descoradas. Em vão se esforçava por desvanecer com sorrisos o efeito daquelas lágrimas e da expressão de tristeza, que tinha profundamente gravada no semblante.

O reitor surpreendeu-a assim e olhou para ela inquieto.

— Que é isto? Lágrimas? Choros? - exclamou ele, levantando-lhe a fronte, que Margarida inclinava, para esconder dos olhos do seu velho amigo aquele indiscreto pranto. - Aí, filha, filha, que me dizias tu a pouco? Era então mentira a indiferença que asseguravas? Eu logo vi... Mas... valha-me... Deus... neste caso... para que fui eu?... Então Margarida! - então! - então Nossa Senhora te valha, filha! Não chores, olha que não sou teu amigo. Mas para que dizias tu?... Pois está bem de ver, sempre custa... Vamos, sossega, mais vale dizer a verdade. Isto assim não tem jeito. Sossega. Vá o mal a quem o toca. Nem todos podem ser santos. Os santos?... Os santos estão nos altares, ora adeus. Há coisas que são superiores ás forças humanas. Não chores, filha; isso até é uma vergonha. Pedro é bom e perdoará Clara, e, perdoando ele, quem tem o direito de condenar? E se não perdoar... não sei o que lhe faça. Quem mal a cama faz, nela se deita: ora é muito boa! Quanto ao mundo... adeus, minha vida, o mundo é o mundo; importa lá o mundo! Era o que faltava se por causa dele te ias agora sacrificar. Na verdade, que valia a pena. Deixa estar, que tudo de há de arranjar. Verás. Mas não chores; parece-me uma criança! Então, então, Margarida? E aí estás chorando mais.

E o bom homem quase chorava também.

Efetivamente. como a todos nós sucede, quando dominados por a tristeza, encontramos um coração compadecido, uma voz meiga a pretender consolar-nos, quando reconhecemos verdadeira simpatia nas palavras de conforto que nos dirigem, cada vez era mais violenta a explosão de sentimentos em Margarida, mais abundantes as lágrimas,, mais sufocadores os soluços.

— Então, Margarida, filha, então?... - dizia o reitor, deveras aflito, e, tentando todos os meios de acalmar aquela dor, acrescentou, contra o seu costume: - Guida! Guida! Isso não é bonito.

Só passados alguns momentos é que Margarida conseguiu falar, e, ainda com a voz entrecortada de soluços, disse para o reitor:

— Perdoe-me, perdoe-me, por quem é. Mas não pude, não posso mais. Não julgue que me arrependo do que fiz, que me lembro de recuar. Creia-me, pouco importa o mundo, o que dizem, o que virão a dizer. Pouco me importa.

— Mas então este choro?

— Nem sei porque choro, eu mesmo não o sei. Mas faz-me bem o chorar. Deixe-me, deixe-me por piedade.

— Mas, minha orgulhosa, por que não aceitaste tu a proposta de Daniel?

— Isso é que nunca! - exclamou com impetuosidade Margarida, e de novo lhe saltaram as lágrimas dos olhos.

— E aí estás a chorar cada vez mais! Mas isto não deve ficar assim. É preciso dar-lhe remédio. Tua irmã não pode querer...

— Mas se eu lhe juro que não choro por isso! Se eu lhe afianço que pouco me importa o mundo!

— Mas, então, ó Virgem Santa, então por que choras tu? Eu endoideço ainda hoje... endoideço. Sacrificas a tua reputação para salvar a da Clara, e não choras por isso; tiveste na tua mão o meio de remediar tudo, aceitando o leal oferecimento de Daniel, e que afinal o pobre rapaz fazia do coração, recusaste sorrindo. E agora venho encontrar-te neste estado, e dizes-me, e juras que não é nada! Recusas confiar-me a causa! Margarida, é preciso saber, quero saber por que choras assim!

— Agora não posso, não sei até dizer-lho. Se me estima, se me quer, como diz, não me pergunte nada; não. Deixe-me só, peço-lhe, por favor, por alma de minha mãe! Logo volte, e, quando voltar, verá que me há de achar contente, prometo-lhe. Que mais quer? Os abalos da noite passada causaram-me isto. Não sei o que tenho. Vá, peço-lhe que vá. Então não vai?

O padre olhou por muito para ela, e depois, tomando o chapéu, saiu sem dar palavra, mas limpando uma lágrima também.

Margarida, vendo-o sair, deixou-se cair outra vez de joelhos sufocada pelo choro.

— Fraca! fraca! - dizia ente soluços - que não tive forças para me sustentar até o fim! Vá, vá, acabem de correr por uma vez estas lágrimas; e que sejam as últimas; que ninguém mas veja mais nos olhos. A causa... a causa... Oh! essa ninguém a há de adivinhar.

— Enganas-te, Guida. Adivinhei-a eu já.

Margarida ergueu-se de repente, ao escutar estas palavras, que foram ditas quase ao ouvido. Voltou-se. era Clara.

— Que dizes, Clara, que estás a dizer, filha?

No rosto de Clara, onde uma pouca costumada tristeza se desenhava ainda, havia um ligeiro sorriso de malícia, da que se poderá chamar angelical, se alguma vez for lícito associar estas palavras.

— Digo que te adivinhei, Guida. Que mais queres? estás descoberta, minha reservada. Não tinhas confiança em tua irmã, e assim te perdias por uma pessoa de quem desconfiavas! É ação de santa, é; mas eu te prometo que isto não há de ficar assim.

— Clara, tu não sabes o que dizes.

— Escuta. Que promessas, que oferecimentos eram aqueles do... do Sr. Daniel? E por que não os aceitaste tu?

— Clarinha!

— Vamos. Eu ouvi tudo o que disse agora o Sr. Reitor. Não mo queres dizer? Digo-te eu. Daniel propôs-te...

— Basta, Clara, basta. Bem sabes que não aceitei.

— E por quê? Isso mesmo é o que eu mais quero saber.

— Porque... não devia aceitar.

— Não devias?

— Não, não devia. És tu a que me vens dizer que se pode, que se deve aceitar um esposo a quem...

— A quem? - interrogou Clara, fitando na irmã, um olhar inquisitorial.

— A quem não ... amamos?

— E então é certo que não amas o Sr. Daniel? - perguntou Clara, conservando em Margarida o mesmo olhar, e demorando intencionalmente a articulação de cada sílaba.

— Que pergunta! - disse Margarida, abaixando os olhos confusa.

— E ainda não queres que te ralhe? Ora ouve, Guida. Desde hoje que o desconfio. Passaste a noite na minha cabeceira. Eram três horas quando dormias, e eu estava acordada então. Ora tu também tinhas febres, também sonhaste em voz alta, e alguma coisa disseste.

— Que disse eu?- perguntou Margarida, com perturbação.

— Alguma coisa, algumas palavras soltas, certo nome, de que eu ao princípio fiz pouco ou nenhum caso, mas em que depois me deu para cismar. E tanto cismei, que afinal descobri, minha pobre Guida.

— O quê?

— Que esse teu coração não era por fim, o que se supunha; não era o que eu e o que todos supúnhamos. E olha que mais te quis por isso; porque eu gosto de quem tenha coração.

— Mas enfim, que queres tu dizer?

— Quero dizer que tu amas, que tu amavas, e, há muito, o Sr. Daniel.

— Estás louca, filha?

— Não negues, ou ficamos de mal. Eu depois recordei-me do que dizia o Reitor, de que Daniel foram em pequeno o teu conversado. Muitas vezes te vi corar ainda, quando o Sr. Reitor, a rir, te caçoava com isso. Ora eu sei como tu és... isto é, hoje é que me lembrei que tens um gênio singular, tu;. Eu podia esquecer-me da minha afeição de criança. Tu não, que tu tomas a sério. É teu costume. Eu sei. Depois, certa maneira de falar... certo acanhamento... e as lágrimas de há pouco... e as palavras de agora... e essa má vontade com que me estás... e esse olhar que se não atreve a levantar-se para mim... é certo, amá-lo; e por isso pergunto: por que recusaste o seu oferecimento?

Margarida conservou-se por algum tempo silenciosa. Depois, por uma dessas resoluções, que são raras em caracteres como o dela, mas, enérgicas quando chegam a formar-se, disse com uma espécie de desespero, revelado nas palavras, no gesto, nos movimentos, e tomando com ímpeto as mãos da irmã, que apertou convulsivamente nas suas:

— Por quê? Queres sabê-lo? Porque o amo. Entendeste agora?

— Não - respondeu Clara, que surpreendida por aquela exaltação, não podia desviar os olhos do rosto de Margarida.

— Pois não vês, criança - continuou esta - não vês, louca, que seria um martírio horrível, um tormento que nem se imagina aceitar a compaixão do homem a quem se ama? Saber que só para generosamente nos salvar a reputação, só para isso, ele nos fez o sacrifício do seu futuro, das suas ambições; que se abaixou condoído, para do chão nos levantar até si! Há nada mais doloroso? Diz, desejas esse martírio? Conheces o coração de tua irmã, dizes tu; e pensas que ele não estalaria de angústia? E depois, se fosse só isso; mas quem sabe? Um dia sempre entraria uma suspeita naquela alma; se a delicadeza fechasse os lábios, lá estava o olhar talvez a revelar-lhe o pensamento secreto de que tudo isto em mim fora um propósito, interesseiro e vil, de abusar dos seus brios... Ai, Clara, e cuidas que se resistiria a esta idéia? Cuidas que eu teria coragem para... Oh! deixa-me, deixa-me; fizeste-me já dizer o que eu nem a mim mesma dissera ainda. Nunca mais me ouvirás falar nisto, e, se é minha amiga, nuca mais me falarás também.

E, dizendo estas palavras, saiu arrebatadamente do quarto.