As Vítimas-Algozes/III/XLIX

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Liberato não se limitara na cidade de... a substituir seu pai na direção da casa comercial e na gerência de outros negócios: a pretensão do falso Souvanel a ser esposo de sua irmã, e o conhecimento da inclinação, do amor de Cândida, o tinham fortemente contrariado, porque ele desejava com ardor o segundo laço de fraternidade, que devia ligá-lo ainda mais a Frederico; essa contrariedade, porém, assumira proporções de ressenti­mento ameaçador, desde que soubera que Souvanel era um nome-másca­ra que escondia a face do crime, e Dermany um miserável que tentara le­var o opróbrio, o desgosto, a desordem e o luto ao seio de sua família, conspurcando-a com o contacto de sua pessoa, já marcada ignobilmente: ficando pois, na cidade de... Liberato determinou provocar Dermany, e vingar-se dele, aproveitando para isso a ausência de seu pai, que sem dú­vida o teria contido.

O irmão de Cândida abandonava-se aos ímpetos de sua natureza exal­tada; felizmente, porém, Dermany a medo de diligências da autoridade já se achava oculto, graças ao generoso aviso de Frederico.

Liberato descobriu o asilo protetor do francês criminoso; mas estacando diante do infortúnio, seu furor desarmou-se, e fazendo espiar Dermany, para não perdê-lo de vista, adiou sua vingança.

Alguns dias passaram e de súbito Dermany desapareceu, sem que se soubesse para onde se retirara.

Liberato espalhou dinheiro a mãos cheias, empregou todos os recursos de uma polícia hábil e acabou por saber que Dermany seguira para a cida­de do Rio de Janeiro, onde estava.

Nestas pesquisas, a vingança tinha gasto dez dias.

Liberato sobressaltou-se: Dermany na capital era a conspiração contra Cândida e contra sua família: o alvoroçado mancebo imediatamente des­pachou um portador levando cartas a seus pais e a Frederico, nas quais os prevenia da partida do francês para a cidade do Rio de Janeiro; mas, deixando-os ignorar suas próprias disposições, entregou a casa e os negócios de Florêncio da Silva ao guarda-livros, honradíssimo velho, que merecia bem tal confiança, e seguiu apressadamente para onde julgava perigar a felicidade e a honra da irmã e da família.

Arrojado, violento e iracundo, Liberato, anelando encontrar Dermany para insultá-lo e coagi-lo a bater-se com ele, segundo os costumes que aprendera na Europa, queria escapar à ação dominadora de seu pai, e à influência prudente e fria de Frederico, que se oporiam às suas idéias de desforço e vingança.

Chegando à capital, o mancebo impetuoso, foi alojar-se em um hotel de segunda ordem, onde condenou-se ao mais desagradável encerro du­rante o dia, indo à noite passear de sentinela pela frente da casa ocupada por seu pai.

Liberato estava certo de que ali havia de encontrar o homem que pro­curava; amanheceu, porém, três vezes, passeando diante da casa, sem que lhe aparecesse Dermany, e tendo apenas visto nessas três noites Frederi­co, que se retirava do teto amigo, e, além de Frederico, duas vezes nessas noites, um lacaio que fora conversar com o pajem de seu pai.

Mas o irmão de Cândida teimou, como Dermany tinha teimado, espe­rando Frederico, para, seguindo-o, aprender a casa de Florêncio da Silva: entretanto o caso não era o mesmo, e Liberato esquecia as suspeitas, os re­paros e desconfianças que devia despertar o seu passeio constante de todas as noites sempre pela mesma rua e em idas e vindas freqüentes até o rom­per da aurora.

O exaltado mancebo procedia insensatamente, e ainda pela quarta vez voltou a rondar pela frente da casa de seu pai.

Todavia, não era só Liberato que se abalava com a estada de Dermany na capital: Frederico, certificado desse fato por algumas palavras que con­seguira arrancar a Cândida, achava-se inquieto; mas preferia com razão tor­nar sua irmã adotiva ou já suposta noiva defendida por sua própria virtu­de, que ele trazia alerta com a luz de sábios avisos e com a evidência da desgraça e da ignomínia que Dermany lhe preparava, a empregar espiões e cautelas que são quase sempre estéreis, quando a mulher quer ser má.

Ainda assim, porém, Frederico desde duas noites observava cuidadoso da janela da casa de Florêncio da Silva, o desazado passeador que tão mal disfarçava algum intento premeditado: pela imprudência do proceder e pela figura, logo se convenceu de que não era Dermany; mas desconfia­do, apesar disso, despedindo-se da família amiga e quase sua, saiu às ho­ras do costume, e não mostrando reparar no homem suspeito, que nesse momento seguia pelo lado oposto da rua, caminhou tranqüilo e sem olhar para trás, e dobrando a primeira esquina, parou e ficou à espera.

No fim de um quarto de hora, Frederico ouviu os passos de alguém que se aproximava, e avançando oportunamente para dobrar outra vez a esquina, esbarrou cara a cara com a insensata sentinela, e reconheceu Liberato, pela exclamação que escapou a este.

– Liberato! – exclamou Frederico, abraçando o amigo.

E logo olhando-o com atenção perguntou:

– Por que semelhante chapéu, e esse trajo que não são os do teu cos­tume?

Liberato, confundido, respondeu:

– Porque eu não queria que tu e meu pai me conhecêsseis.

– E que pretendias?

– Já o adivinhaste: encontrar Dermany e esbofeteá-lo.

– Assim, Dermany de um lado e tu de outro, conspiráveis para desacreditar Cândida!

– Frederico!

– Desde quando estás na Corte?

– Há quatro dias.

– E portanto já quatro noites

– É verdade... tenho velado à espera do miserável...

– Por fim de contas só uma queixa temos dele: é ter querido desposar Cândida, sendo criminoso e estando condenado.

– Achas pouco?

– Não; mas na sua desesperada situação é explicável, embora não desculpável, que ele tentasse obrigar uma proteção poderosa.

– E a sua ameaçadora insistência, pois que ousou vir para a capital?...

Frederico procurava desarmar os írnpetos do furor do amigo; apertado, porém, pela última pergunta, disse o que não pensava:

– Tens certeza dessa insistência? Dermany não se atreve por certo a mostrar-se de dia, e tu mesmo asseguras que ele não tem sido encontrado de noite na rua em que mora tua família.

– Mas... quem sabe se uma correspondência secreta...

– Não creio: há providências tomadas; somente poderia haver correspondência, se ele pudesse penetrar no saguão da casa, e entender-se, com algum escravo; e tu dizes...

– Nestas quatro noites, somente duas pessoas têm entrado na casa, tu e um lacaio...

– Que lacaio? – perguntou Frederico.

– Não sei; um lacaio.

– E por que dizes que é lacaio?

– Ora! Pela libré e porque se senta na soleira da porta ao lado do pajem, com quem conversa.

– E depois se retira sem entrar...

– Não; pelo contrário, entra sempre com o pajem e demora-se até fechar-se a porta; já duas vezes e pela terceira vez hoje...

– E hoje? Saiu antes de mim?

– Frederico! É um raio de luz...

– Mas... responde...

– Ei-lo aí vai! – disse Liberato, mostrando um lacaio, que passava a pequena distância, seguindo a Rua do Lavradio.

Frederico tinha o braço do amigo preso em suas mãos.

– Seguiremos de longe este lacaio – disse ele.

– Deixa-me livre – murmurou trêmulo de cólera Liberato. – Tu és apenas irmão adotivo e eu sou irmão legítimo e natural de Cândida.

Frederico para dominar o amigo, respondeu-lhe:

– Sou mais do que irmão adotivo de Cândida, sou seu noivo des­de quatro dias.

– Ah! Frederico!

– Silêncio, acompanhemos o lacaio.

Os dois amigos caminharam, medindo seus passos e sem perder de vis­ta o lacaio que, tendo-os percebido, nem por isso apressou a marcha.

Frederico estava contrariado pela companhia de Liberato; mas não po­dendo esperar que este o deixasse só, dobrou-se às circunstâncias sem ma­nifestar o seu desagrado: desconfiava, tinha quase a certeza de que o la­caio era Dermany e ardia em desejos de ir franca e diretamente tomar-lhe o passo, de apoderar-se dele pelo terror que abate o criminoso persegui­do, e de forçá-lo a aceitar o favor de retirada segura do Brasil; tendo porém, a seu lado Liberato, e conhecendo seu gênio violento, resolveu limi­tar-se nessa noite a assegurar-se da morada do francês.

O lacaio depois de algumas voltas e de um longo caminhar, tomou pela Rua de... e foi seguindo até que hesitou, como querendo parar; mas voltando os olhos e vendo os dois vultos que a distância o acompanhavam pelo outro lado da calçada, continuou sua marcha morosa e imper­turbável.

– Passemos adiante dele, e não o olhemos – disse Frederico.

E ambos, acelerando o andar, deixaram logo atrás o lacaio que também foi prosseguindo.

Frederico dobrou a primeira esquina e, sempre com o ouvido atento, parou com Liberato no canto da outra rua: o ruído das pisadas do lacaio ti­nha cessado; mas evidentemente ele tinha voltado.

Não se ouvira bater em porta alguma.

Frederico levou o amigo quase a correr em volta do quarteirão e foi outra vez entrar na mesma Rua de... por onde ambos tinham já entrado seguindo o lacaio.

Todas as casas estavam fechadas, exceto um sobrado, onde havia dança e música.

Algumas carruagens achavam-se paradas à porta do sobrado.

Frederico tinha pouco antes passado junto dessa casa sem atender aos sinais de reunião festiva que havia nela; ainda então seguiu para diante; mas indo e vindo nada descobriu que o orientasse sobre o desaparecimen­to do lacaio; começava já a impacientar-se, quando reparou em um muro enegrecido, no meio do qual se destacava rude e velho portão largo, e lembrou-se de que exatamente ali o lacaio quase interrompera a marcha, em que aliás continuara depois de olhar para trás.

O portão estava aberto e a flama do gás, em grande e tosco lampião, iluminava a entrada...

Dentro o espaço se alargava e no fundo se distinguia como a frente de imensa casa, onde aqui e ali luzes dispersas mostravam portas que se des­tacavam do meio das trevas...

– É provavelmente aqui – observou Frederico.

– Entremos – disse Liberato.

Frederico não respondeu ao estouvado amigo; mas levando-o consigo, dirigiu-se para a casa onde soava a música, e a alegria velava: demorou-se por algum tempo, como apreciando a voz de uma senhora que cantava, e quando terminou o canto, fez algumas perguntas banais aos criados e pajens que conversavam junto das carruagens, e enfim inquiriu ainda:

– Aquele portão e muro são de alguma chácara?

– Como? Chácara nesta tua?... Aquilo é um cortiço – respondeu um criado.

– Ah! Um cortiço... pensei que era chácara de pessoa rica; porque ainda há pouco me pareceu ter entrado ali um lacaio.

– Entrou – disse um homem que estava em mangas de camisa e con­versava com os criados. – Entrou; é um lacaio que mora no cortiço; en­quanto o amo está em Minas tomando águas...

– Que diabo! E não lhe deixou cômodo em casa?... – perguntou um pajem a rir..

– Diz que o amo é unhas-de-fome: alugou a chácara a um irmão, por quatro meses que foi passar em Minas.

Frederico já sabia bastante e afastou-se com Liberato.

– Que moços curiosos! – disse um criado.

– Ora! São como todos – tornou o homem que estava em mangas de camisa. – Nesta mesma noite um outro sujeito e de muito pior cara, veio beber cerveja à venda, e enquanto despejava duas garrafas, fez-me dar-lhe conta dos moradores do cortiço, e achou tanta graça na história do lacaio, que obrigou-me a repeti-la três ou quatro vezes com todos os por­menores.

Frederico levara Liberato para o seu hotel.

Digamo-lo em honra dos dois mancebos:

Frederico tinha planejado obrigar Dermany a deixar o Brasil, e propunha-se a favorecer-lhe e garantir-lhe a retirada ou a fuga.

Liberato queria esbofetear Dermany, calculando indômito e arrojado com as conseqüências dessa extrema afronta.

A nenhum deles, porém, lembrara sequer, por um instante, a idéia de denunciar Dermany à polícia.

Brilhavam nos dois mancebos a altivez e a generosidade do caráter na­tural dos brasileiros.