As Vítimas-Algozes/III/XXII

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Frederico amava Cândida: o seu amor era uma sublime mistura de de­dicação fraternal e de paixão de amante extremoso: o seu amor era um monumento, em cujas bases entravam Leonídia, que lhe dera o leite de seus peitos e o cuidado maternal de seu berço, Leonídia, sua segunda mãe; Florêncio da Silva, que na sua infância o igualara a Liberato, no zelo da educação e nas carícias; Florêncio da Silva, seu segundo pai; Liberato, seu irmão colaço, seu irmão na escola, no colégio, e no coração; Cândida, menina, a idolatria de seus inocentes amores de irmão mais velho, Cândida moça, a beleza peregrina e a celeste virtude, que devia e podia fazer-lhe da vida paraíso.

Frederico amava Cândida com o mimoso culto da gratidão, com o nobre culto da virtude, com as puras magias da infância, com as poesias da mocidade, com as flamas ardentes do amor que inspira a formosura.

Era um amor em que se identificavam todos os grandes amores do homem.

Em Frederico, tinha Cândida dois enérgicos e poderosos amores, o amor do coração e o amor da razão, ambos igualmente fortes e generosos pelo caráter do virtuoso mancebo.

Frederico sabia que era desagradável de figura e receava por isso não ser amado por Cândida: esse receio atormentava-o: ver Cândida amante e esposa de outro homem, era a apreensão de uma noite perpétua na sua vida; mas para ele, o sacrifício da filha de Leonídia e de Florêncio da Sil­va, da irmã de Liberato, da sua amada menina da infância, o sacrifício de Cândida sua esposa, por obediência e sem amor, era um crime de ingratidão, um sacrilégio que lhe tornaria a vida pior do que noite perpétua, re­morso perpétuo. Ele sentia-se capaz de defender o coração de Cândida contra si, embora perdido para si esse coração, o mundo se lhe antolhasse insuportável .

Na grandeza e na generosidade do seu amor, o prudente mancebo não se confundira com os indiscretos apaixonados, que dão em espetáculo a donzela que amam, obrigando-a à pública ostentação de afetos que ainda não têm a sagração que os autoriza à face da sociedade, nem, em suas conversações com a adorada moça, ofendera a santidade do seu sentimento, procurando exprimi-lo e fazê-lo sentir por meio desses ademanes artificiais e vulgares, e dos discursos bombásticos e do dilúvio de juramentos, que são a eloqüência sublime dos namoradores de oficio e dos namorados ridículos.

Zeloso, porém, anelante e completamente cativo dos encantos de Cândida, Frederico a acompanhava de contínuo com os desvelos do coração com a vigilância do receio, e com aquela visão do espírito que acha luz nas próprias sombras do disfarce, e penetra os véus da dissimulação, adivinhando a verdade escondida.

Assim foi que, antes de todos, suspeitou ele do galanteio ou do amor nascente de Cândida e Souvanel: não podia dizer qual era o fundamento real da sua suspeita; mas em seu ânimo como que pressentia galanteio ou amor naquelas lições de canto, na atmosfera que cercava o mestre e a discípula, e na própria serenidade que ambos afetavam.

Frederico quis duvidar; mas a suspeita o perseguia indômita. O dueto de Torquato Tasso veio indiciar nas lágrimas de Cândida o sentimento que ela já abrigava no coração.

O nobre e amoroso mancebo tocava quase a certeza do seu infortúnio; nas ânsias tormentosas do seio, cavou silencioso a sepultura do seu magnífico amor; sofreu como sofrem as grandes almas; refletiu, porém: ou Cândida amava realmente Souvanel ou se prestava à comédia sacrílega do fingimento de transportada paixão: em ambas as hipóteses, era lamentável a leviandade com que a donzela se comprometia, prendendo-se ou simulando prender-se a um estrangeiro, cujo passado ninguém esclarecia, e cuja moralidade se patenteava negativa por essa mesma solicitude amorosa, que era ingrato abuso de confiança: em ambas as hipóteses, portanto, Cândida perdera muito na estimação que lhe merecera: na segunda hipótese, não podia mais ser sua noiva, pois que nunca tomaria por esposa quem tão fácil se abandonava à indignidade do galanteio: na primeira do mesmo modo, o seu casamento se tornara impossível, pois que outro homem enchia com a sua imagem e suave domínio a alma dessa mulher que ele tanto adorava.

Que lhe cumpria fazer?... Fugir de Cândida, apressar sob qualquer pretexto sua viagem para a América do Norte?... Frederico repeliu idéia: à força de muito refletir e talvez ainda tendo o seu amor agarrado a uma tênue esperança, pensou que bem pudera o ciúme ter iludido o seu espírito, inventando o que não existia, e caluniando inocente donzela: quando tudo fosse verdade, quando a paixão mais louca estivesse incendiando o seio da pobre moça, ele tinha o direito de não a querer mais para sua noiva; tinha, porém, o dever de velar como amigo, pela filha de Leo­nídia, sua segunda mãe, pela filha de Florêncio da Silva, que em seus pri­meiros anos lhe fizera as vezes de pai extremoso, pela irmã de Liberato, seu colaço, e seu fiel amigo.

Nesse melindre de sensibilidade, nessa poética aspiração de pureza, de angélica virgindade de coração na mulher com quem tivesse de casar-se, nessa grandiosidade de sentimentos que lhe impunham o religioso dever de dedicar-se ainda a Cândida, como amigo, depois de senti-la amesqui­nhada na sua estima, Frederico obedecia às inspirações de sua natureza heróica, e à virtude de seu grave e admirável caráter.

Amando extremosamente Cândida, reconhecia-se capaz de tomá-la pela mão, e de levá-la ao altar, para aí ver com os seus olhos o sacerdote abençoar os laços de sua união com outro homem, que fosse digno dela, e por ela amado. Na imensa dor desse sacrifício, acharia consolação na felicidade de Cândida, e, lamentando a própria desdita, seria amigo leal do esposo da filha de Florêncio e Leonídia, e da irmã de Liberato.

Mas Souvanel quem era? .. Que homem era? .. Frederico também relacionara se com ele na Alemanha; nunca porém o honrara com a sua con­fiança, e mais de uma vez dissera a Liberato, que a pretendida proscrição política, podia ser tão real, como embusteira, e que no suposto proscrito havia a decifrar um enigma, ou de homem exaltado, mas honesto, ou de especulador sem consciência.

O especulador sem consciência principiava a revelar-se à observação de Frederico, que ainda querendo duvidar, porque amava, e convencer-se até a evidência, porque era prudente e justo, depois de triste e longa noite de reflexões, resolveu esperar, ver, e friamente assegurar-se, e ser senhor do fatal segredo, que o ciúme lhe tinha já revelado.

Frederico não precisou esperar muito.