Através do Brasil/XI

Wikisource, a biblioteca livre

XI. ORFÃOS...

Felizmente o major Antônio Bento estava na vila. Recebeu com carinho os viajantes, e no mesmo dia forneceu-lhes o que pediam. Agasalhou-os, deu-lhes jantar, e deixou-os às três horas da tarde, numa excelente canoa, confiados a um canoeiro perito, para quem as águas do São Francisco já não tinham segredos. Levá-los-ia a canoa até a casa do capitão Tavares, um velho amigo do major, seu antigo companheiro na campanha do Paraguai; e daí seguiriam na mesma condução até Boa Vista.

Por sete dias viajaram assim os dois rapazes, rio acima, no fundo da estreita canoa que ora navegava impedida pelos remos e pelas varas, ora corria tangida pelo vento, que lhe enfunava o pano das pequenas velas. Só durante uma noite dormiram em terra firme, na casa do amigo do major Antônio Bento, — um bom velho que contava histórias do Paraguai e fazia a todo instante a apologia da vida militar. Mas, nas outras noites, dormiram ali no fundo da canoa, sem comodidade, alimentando-se mal, e contando de minuto em minuto as horas longas e morosas que os separavam do termo da viagem.

Nos dois primeiros dias, ainda os divertia o espetáculo do rio. Uma viagem fluvial é sempre interessante para quem a realiza pela primeira vez. A jornada é monótona, mas tem, a princípio, o encanto da novidade pitoresca. Os rapazes contemplavam o curso do rio São Francisco, — às vezes manso e largo, espraiado como um mar, — outras vezes acachoeirado, dividido em canais, formando ilhas e ilhotas, estas cobertas de vegetação opulenta, aquelas inóspitas e rochosas, opondo-se às vagas que as batiam em fúria. Das ribanceiras ou das pontas das ilhas partiam muitas vezes bancos de areia grossa e branca, planos, como aterros feitos pela mão do homem. Em certos pontos, via-se o gado, que vinha neles pousar, tão serenamente como se estivesse em terra firme. As margens do rio mostravam-se cobertas de matas: viam-se ali os troncos brancos das embaúbas, os altos jacarandás, as baunilhas espinhosas, as palmeiras tucumã.

— De onde vem esse rio? — perguntou uma vez Alfredo.

— Vem de Minas...

— Como é grande o Brasil!

— E como nós já temos andado! — acrescentou Carlos, com tristeza.

Os últimos dias foram tristes. Aquela uniforme extensão de águas, aquela mesma paisagem selvagem, desdobrando-se sem variedade, davam aos dois meninos uma negra melancolia. Por fim, numa Quinta-feira, às duas horas da tarde, chegaram a Boa Vista. Havia doze dias que tinham partido do Recife! Saltaram da canoa, com uma sofreguidão delirante, gozando o prazer de pisar a terra firme, e ansiando por abraçar o pai...

— Aqui não há hotel — disse o canoeiro. — Com certeza, o pai de vosmecês está hospedado na casa do escrivão, que é onde pára toda a gente boa que passa aqui.

Correram à casa indicada, e tiveram uma decepção:

— Seu pai já não está em Boa Vista — disseram-lhes. — Esteve aqui oito dias, doente; e, como não melhorasse, seguiu para Petrolina... Seguiu há uns dez dias.

Os dois meninos entreolharam-se, com lágrimas... Contavam abraçar o pai, e apenas ficavam sabendo que ele estava pior!

Durante meia hora, Carlos permaneceu num triste abatimento, sem idéias... Mas a sua energia não estava esgotada. Contou o dinheiro que lhe restava, e verificou que apenas tinha no bolso três mil réis... Mas narrou a sua angústia ao escrivão, e pediu-lhe que o aconselhasse.

— Se o senhor quer ir a Petrolina, — disse-lhe o homem, depois de uma curta reflexão, — o que posso fazer é arranjar-lhe uma boa embarcação. É uma lancha a vapor, que navegava de Juazeiro para cima, e veio até aqui; deve partir hoje mesmo. Podem ir de graça até Petrolina.

Partiram. A lancha navegou todo o dia, mas ao cair da tarde parou: era arriscado viajar, com a escuridão da noite por entre as pedras do rio. Mais essa demora!... Na manhã seguinte, a viagem continuou.

Às dez horas estaremos em Juazeiro, que é o mesmo porto de Petrolina; — disse o comandante — Petrolina e Juazeiro defrontam-se, nas duas margens do São Francisco.

O pequeno vapor, arfando, vencia a corrente, ora tomando o meio dela, ora desviando-se para uma e outra margem, fazendo voltas, fugindo das pedras, evitando as corredeiras. Seriam nove horas da manhã. Carlos e Alfredo, sentados sobre uns sacos, à proa da lancha, estavam tão desanimados que não trocavam uma só palavra. Que viagem! Já lhes parecia que estavam no fim do mundo, que tinham percorrido toda a terra de um a outro extremo. Quando findaria aquela angústia?!

De repente, em uma das voltas do rio, avistaram uma canoa, que vinha em sentido contrário. Quando enfrentou com a lancha, a pequena embarcação aproximou-se um pouco, e parou.

— Você vem do Juazeiro? — perguntou o comandante.

— Venho, sim.

— Que há de novo por lá?

— Nada... Ah! É verdade! Conheceu um doutor, um engenheiro que estava doente em Petrolina?

Ouvindo isso, Carlos e Alfredo puseram-se de pé, ansiosos...

— Não... — disse o comandante. — porque pergunta?

— Esse engenheiro morreu, coitado! Enterrou-se ontem em Juazeiro...

Ouviram-se dois gritos, e depois um soluçar agoniado. Os dois meninos choravam abraçados, confundindo as suas lágrimas. O comandante e os tripulantes da lancha, compreendendo tudo, olhavam comovidos aquela cena horrível... E o resto da viagem foi triste, tão triste como se ali fosse realmente um cadáver.

Duas horas depois, a lancha aportava em Juazeiro. Tontos, sem saber para onde iriam, tão alucinados de dor que nem podiam ter uma idéia. Carlos e Alfredo desembarcaram como dois autômatos ... Andaram sem destino, mudos, aterrados e foram ter ao cemitério. Pediram que lhes mostrassem a cova em que o engenheiro fora na véspera enterrado, e ficaram ajoelhados junto dela, chorando longamente...