Aventuras de Diófanes/I

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{{d|Sumário

Embarcando os Reis de Tebas, Diófanes, e Climinéia, com seus filhos Almeno, e Hemirena, que se achava desposada com Arnesto, Príncipe de Delos, que pela ocasião dos jogos públicos, a que devia assistir, as esperava na mesma ilha com prevenidos festejos, para celebrarem as bodas, uma tormenta desbaratou a esquadra, que acompanhava a Diófanes, e o entregou aos de Argos seus inimigos, que no combate mataram a Almeno, e venderam Diófanes para Corinto; Climinéia, a Hemirena ficaram em Argos, ainda que muito distantes; e depois de três anos da mais cruel escravidão venderam Hemirena para Atenas, donde fugiu às estimações, e grandezas, por não desprezar os preceitos do decoro.}}

Determinava Diófanes achar-se na Ilha de Delos, para assistir à função dos jogos públicos, que ali se fariam em reverência de Apolo, em cujo Templo se devia contrair o himeneu de Arnesto, Príncipe da mesma Ilha, com a Princesa Hemirena, funções para que haviam concorridos muitos Príncipes Estrangeiros. Embarcou Diófanes, Climinéia sua mulher, e seus dous filhos Almeno, e Hemirena, levando uma esquadra em sua guarda, conforme pedia a decência. Em uma enganosa madrugada se despediram de Tebas, entregando as velas ao benigno Zéfiro, que aos matizados galhardetes animava com alegres movimentos. Soavam os instrumentos no mar ao compasso, em que as vozes repetiam em terra os viva daqueles Soberanos, que em grande extremo eram amados dos vassalos, porque em seus Domínios davam leis a justiça, e a clemência, e o seu exemplo a melhor direção para os costumes; e ainda que se entendia seguiriam o rumo das felicidades, e não seria dilatada a sua ausência, era grande a tristeza de seus vassalos, que só resignados nas vontades daqueles Príncipes queriam mostrar com cânticos, que as lágrimas eram nascidas do júbilo; mas na despedida se declaram filhas da saudade, a qual consolavam com o Príncipe Bireno, a quem os poucos anos dispensava a assistência daqueles jogos.

Apenas perderam de vista as saudosas praias, quando ensoberbecendo-se as ondas, pareciam que ameaçavam aos navegantes, indo a encontrar-se com eles. Pouco a pouco se foi cobrindo de feias nuvens o céu, se trocou o dia em noite, mostrando-se no furioso vento a formidável imagem da morte. Já aos marinheiros esquecidos das grinaldas de flores, com que haviam saído de Tebas, se representava, que Netuno, apertando o soberbo tridente, vinha contra eles irado, pelo que, dando vozes, queriam mover a sua compaixão. Diófanes com sossego animava a gente, e enxugava as lágrimas da filha, ao mesmo tempo, em que a prudente consorte, não obstante a gravidade do perigo, havia mandado o querido filho a tomar parte na fadiga, lembrando-se de que assim se faz aos servos menos pesado o trabalho, e que parece que os elementos respeitam os Príncipes, que não temem os contratempos, nem se negam aos seus rigores. Quando cessou a borrasca, descansou a maior parte da gente; porque não advertiam que a desgraça faz maior emprego, por andar vigilante nos descuidos; e depois de se haverem rendido a Morfeu, se acharam vencidos de duas naus Argelinas; que como aqueles Soberanos estavam destinados para os mais raros trabalhos, não foi muito que se desbaratassem as da sua esquadra, indo arribar a Tebas, onde com inexplicável sentimento choravam, persuadidos de que as ondas tragariam a seus amados Senhores; e como havia sido mais atrevida a desgraça, quando estes se viram em mão inimigas, querendo defender-se, foi inútil toda a diligência pela vantagem, que já lhes havia ganhado. Climinéia com igual valor, que piedade, animava os que pelejavam, e acudia aos feridos, não bastando a morte do amado filho, que acabara à vista de seus olhos, para dar mais lugar à mágoa, que à fortaleza, e com perda de muita gente os cativaram.

Passados dous dias da sua desgraça, chegaram os bárbaros ao seu porto, para onde o rigor da desventura havia conduzido à Diófanes, e sua desconsolada família, que tendo lugar para os magoados desafogos, choravam a morte de Almeno, suspiravam pela liberdade, e não perdiam a lembrança dos cuidados, e amantes delírios de Arnesto, que com finíssimos extremos havia pretendido a bela Hemirena. Não se ouviam naquele desembarque mais que os lastimosos clamores ao céu, com que uns se lembravam dos que havia deixado, e outros choravam sua triste escravidão. Diófanes e Climinéia (a quem mais magoava a filha, que levavam) com inexplicável conformidade a dispunham, para trocar os descansos pelas fadigas; e Hemirena discretamente aflita animava a mãe, dizendo:

Suspendei, Senhora, as correntes do amargo pranto, se acaso mais vos afligem a meu respeito os pesados grilhões da escravidão: nem seja cruel despertador do vosso cuidado a periga idade, em que me vedes; que eu juro aos Deuses, que me sustentam, fazer sempre ações dignas de quem teve lugar nas vossas entranhas. A este tempo, em que as lágrimas, e suspiros mais vivamente expressavam o sentimento, se repartiram os escravos, negando a filha aos olhos da mãe; e Diófanes, por chegar mal ferido, o venderam para Corinto por preço muito limitado, entendendo teria poucos dias de vida; e como via chegar o tempo da sua separação: Amada filha, (disse) já que a tão miserável estado te reduziu a minha cruel fortuna, conserva sem desmaios as sólidas doutrinas da tua educação, o exercício das virtudes, e a lembrança da distinção, com que nasceste, para sempre serem nobres as tuas ações, teme os Deuses, ama constante o decoro, despreza o ócio, e serve o teu destino. Ao que Hemirena só respondia com o pranto. E voltando Diófanes os tristes olhos para Climinéia: Consorte amada (lhe disse) vive, e conserva na fortaleza do ânimo o melhor instrumento para as vitórias, e resiste fiel aos assaltos da desventura. A estas palavras respondeu a aflita Climinéia, apertando a seus braços ora a Diófanes, ora a Hemirena: Consorte amado, querida filha, filha das minhas entranhas, eu vos deixo; mas não eu, que o fado adverso de vós me aparta. Ai de mim! Vivo, morro, sonho, ou que sinto? O Deuses benigno, o vosso poder me ampare. Chegava suavemente o rosto ora a um, ora a outro, que reciprocamente em lágrimas se banhavam, quando já aqueles tiranos enfadados de tão larga despedida os separaram; e deixando a Hemirena desmaiada, levaram Climinéia, que enquanto o permitiu a distância, voltava em contínuos soluços, buscando com os olhos o seu último alívio. Diófanes se recolheu a uma pequena casa, onde determinaram se lhe curassem as feridas; Hemirena mal restituída aos sentidos, foi levada a casa de Hortélio, Capitão de uma das naus.

Os pesares apostavam ver-lhe extinto o sofrimento, porque também lhe faltava a saúde; e quando a principiava a conciliar, entrou a cruel inveja no coração de Anquísia, filha de Hortélio, que, como de cada vez via resplandecer mais a sua formosura na agradável moderação, com que padecia os desprezos, os castigos, e a fome, excogitava com a sua ferocidade os meios, que podia haver, para quebrantar tanta formosura, e tão amável, como constante virtude. A compaixão, com que Hortélio observava as belas qualidades de Hemirena, lhe reforçava os tormentos, pelos novos trabalhos, que lhe causava a abominável inveja: o como os parentes daqueles bárbaros, e mais pessoas, que a viam, admiravam a sua beleza, e grata severidade, tomou Anquísia o acordo de a mandar trabalhar para o campo, recomendando aos rigores do tempo os desmaios da formosura.

Túrnio, Pastor dos rebanhos de Carmindo, irmão de Anquísia, namorado de Hemirena, pediu a Anquísia quisesse consentir que lhe desse a mão de esposa, e lhe disse: Sabei, senhora, que o amor, que nem perdoa aos Pastores, me traz à vossa presença, para que me concedais para esposa a bela Hemirena; pelo que me ofereço em seu lugar para vosso escravo; porque depois que eu a vi, as ovelhas como de noite o lobo, os cordeirinhos morrem, faltando-lhes o leite, as cabras fogem, e os carneiros se me furtam, porque só me lembro de Hemirena. Anquísia, que com enfado o estava ouvindo, lhe perguntou, qual era a causa de tanto excesso, pois haviam mais belas Pastoras, e Hemirena era soberba? Ao que lhe respondeu com verdadeira sinceridade: Ah, senhora, que vós não a vistes, como eu a vejo, ou creio que estás zombando, pois todos no campo dizem o mesmo, e que sois tirana em o mal, que a tratais. A primeira vez, que eu a vi, estava falando a um homem, que dizia ser seu pai, que aqui perto se curara das feridas, que havia recebido no combate, e que no dia seguinte havia de fazer jornada com seus senhores; e ainda que as meninas dos olhos de Hemirena se estavam lavando em lágrimas, ela estava tão formosa, que ninguém a via, que a não amasse: e vosso irmão Carmindo então mesmo dizia: Aquela beleza sem afetação, nem enfeites, aquela natural, e agradável modéstia, e aquela prudência discreta, em cada palavra das poucas, que diz, parece que dilata o seu império nos corações. E isto dizia ele lá a um da Cidade; mas eu tomei sentido, e não me esquece. Ah que se vós a vísseis no trabalho sem levantar os olhos; e quando o vento, e a chuva sem compaixão a perseguem, fazendo inveja às açucenas; ou sendo a injúria das rosas, quando o Sol, e o trabalho a cansam! Enfim vós me haveis de valer, porque eu morro sem remédio; e ainda que ela não me atende, e por lá todos a querem, eu lhe quero mais que todos: e Carmindo, que sabe quanto eu a estimo, não há de ser contra mim. Vai-te, que já me cansa o sofrer-te, lhe respondeu Anquísia: tu falas como rústico, e Carmindo como néscio.

Dizendo estas palavras, se retirou, deixando desconsoladíssimo o pobre Pastor, em que a sinceridade competia com o afeto; pelo que determinada buscava quem lhe tirasse a vida. A noite, em se recolhendo Hemirena para casa aflita, e de cada vez mais cansada, achou Anquísia em tal extremo colérica, que, tratando-a muito mal, a fez recolher a uma casa, onde determinava que a matasse a fome. Chegando pouco depois Carmindo, e lembrando-lhe o que ouvira a Túrnio, quis falar a Hemirena; e sabendo da cruel sentença, que ela tinha ouvido, originou tal desordem, que a todos fazia horror ouvir as palavras desconcertadas, e os desordenados gritos, que produziam a raiva, e ódio (disformes partos da inveja). Foi Hemirena tirada do cárcere privado, em que esteve três dias; e vendo a desunião, que ela sem culpa ocasionara, se lançou aos pés de Anquísia, a quem com muitas lágrimas disse: Castigai-me senhora conforme vos ditar a minha inutilidade. Eu vejo que não tenho sabido servir-vos, pelo que é bem justificado o vosso aborrecimento. Eu amo o vosso rigor, pois que o mereço, quanto me aflige que vosso irmão queira valer-me; e se tendes humanos sentimentos, por compaixão me tirai a vida, antes que os Deuses soberanos deixem de fortalecer-me. Ouvindo estas palavras Anquísia, gritou mais alto de confusa, dizendo: Vai-te da minha presença, pois que não sou insensível, como tu: e sabe que já nem quero dar-te a morte, por que nem assim descanses; e para que os teus olhos não dilatem o seu império em os corações, eu tos saberei tirar. E investindo furiosa como a tirar-lhos, Carmindo a deteve; e depois de um largo trabalho consentiu que se vendesse para fora do reino, por lhe ser oculto que a pretendiam uns estrangeiros, que por sua beleza a desejavam oferecer a Beraniza, Princesa de Atenas. Em o dia seguinte se celebrou a venda, indo Hemirena para outro domínio novamente aflita, e assustada. Túrnio, sabendo aquela novidade, e antevendo acabar a sua esperança, se queixava de sua desgraça, dizendo: Ai de mim! Que nome terá este mal, de que eu acabo a vida? Já não vejo a estrela da alva, os rios já correm turbos. Ditosos cordeirinhos, que não sentis o que eu padeço! Onde está a formosura, que fazia o dia mais claro? Eu me queixava pelo que via, agora vejo o de que morro. Não quero guardar os rebanhos, nem já me guardarei a mim, a ver se me matam os lobos. Onde estou? Não sei o que faço. Hemirena, Hemirena. A este tempo, ouvindo o eco, em mais delírios dizia desconfiado: Mais ai que estão zombando de mim outros Pastores! Zombe embora, que eu de todos me hei de rir, quando morrer. Mas que digo? Eu estou louco? Pois não me falam, e eu ouço vozes? Não sei onde está Hemirena; mas eu sinto comigo: e assim louco, ou perdido vou correndo a buscá-la. Chegando o pobre Pastor a casa, e sabendo que fora para os estrangeiros a inocente causa de seus desatinos, caminhou depressa, tomando o acordo de se não separar da porta daquela casa, para onde Hemirena se havia recolhido; e perdendo de todo a pequena parte, que àquele tempo tinha de entendimento, ora tocava na flauta pastoril tão fortemente, que parecia querer perder o alento; ora cantava canções, com que, quando guardava os rebanhos, lhe dizia o seu amor; mas tudo correndo-lhe as lágrimas e era tal a força, com que cantava, que pela muita distância, em que se ouvia, ninguém crera que era uma só voz, se não visse, e o sucesso o não acreditara. Em o quinto dia de seu lacrimoso canto se calou, rendendo o alento nas mãos da morte, sem que até ali pessoa alguma pudesse dele conseguir o tirar-se daquele lugar, ou que deixasse aquele exercício, que a sua amante loucura havia empreendido; pois não crendo na ausência de Hemirena, dizia que a escondiam, e queria que onde quer que ela estava ouvisse que ele se não esquecia, nem queria mais descanso, que em buscar a sua compaixão a qual esperava que a obrigasse a falar-lhe: e isto mesmo respondia cantando, porque nem perdesse aquele tempo.

Hemirena, que logo havia partido para Atenas, ignorando os efeitos de sua cândida beleza, chegou a ser oferecida a Beraniza, que mostrando-se agradecida a Artenisto, a aceitou com mostras de contentamento, e ordenou se lhe desse bom aposento, e fosse bem tratada; e como naquele dia estava para sair à caça, mandou fosse a descansar, e que no dia seguinte tornasse à sua presença, pois queria saber os costumes do seu país. Logo foram vê-la as servas de Beraniza, que com agrado a cumprimentaram, e proveram do preciso, pois não tinha mais que o bom vestido, com que fora oferecida. No dia seguinte foi levada à presença das Princesas Beraniza e Argenéia, e com aquele agasalho, e urbanidade, com que as Majestades fazem docemente escravos os seus vassalos, lhe perguntaram os sucessos da viagem, em que a cativaram: a que logo responderam as lágrimas de Hemirena, que com a melhor retórica faziam a narração de seus infortúnios; e como quem sabe mandar, não ignora a arte de obedecer, lhe disse: Nasci em Tebas; e indo ver uns jogos públicos de país estranho, uma tormenta me negou o porto, que buscava, e conduziu às mãos de bárbaros inimigos; e quando eu descansava, sonhando com a bonança, me despertou a desgraça, para chorar com acordo, que os trabalhos duram sempre, e é falso qualquer pequeno descanso. Os que podiam manear as armas, as tomaram, jurando não largá-las, enquanto lhes durasse a vida: o que sucedeu à maior parte da gente; mas não tiveram todos tanta fortuna, que não fôssemos cativos. Não se ouviam mais que os tristes clamores dos que pedíamos socorro aos Céus, sem que se movessem de nossas vozes, ou para que com horrendos trabalhos nos fizéssemos dignos de felicidades, ou porque não as gozássemos sem os méritos, que nas fadigas se alcançam. De que viviam teus pais? lhe perguntou Beraniza, parecendo-lhe que sabendo Hemirena explicar-se tão agradavelmente, não seria mulher ordinária. Ao que respondeu depois de um pequeno intervalo, em que mostrou a renitência, que tinha em dizê-lo: Duvido, Senhora, se meus pais me ordenaram, que o não revelasse, e assim espero que a vossa grandeza me dispense de responder-vos. Basta (lhe disse) Continua a tua história. Mas dize-me: Como consentiram separarem-se de ti os que haviam sido origem de tanta beleza, e discrição? Muito pediram aos bárbaros (lhe respondeu) que nos não dividissem: mas não quiseram deixar de fazer o primeiro ensaio da sua tirania, ou talvez deveriam fazer assim a cruel partilha. A meus pais naquele triste caso parecia se chegava o último transe, pois na precisa despedida mostravam as mais vivas representações da morte. Desejava eu perder ali os últimos alentos da vida, para diminuir a primeira causa de seu justo cuidado. Ambos com trêmulas vozes mostravam quererem dizer-me Adeus, mas sem acabarem de despedir-se. Nesta incrível consternação, vendo também que os bárbaros nos maltratavam enfadados de tão larga despedida, perdi os sentidos. Tornando à inteira restituição deles, me vi em uma casa sem pai, mãe, ou pessoa alguma de minha nação, e com repetido pranto, e mal articuladas palavras perguntava pelos meus, sem que eu de alguém fosse entendida. Eram contínuos clamores, com que se explicava a minha sem igual saudade; e sem alívio, consolação, ou esperança, perdi o amor da vida, porque só me lisonjeavam as recordações da morte. A luz do dia sempre me pareceu escura, e muito breves as sombras da noite, que me retiravam de ver uns racionais, que temia como brutos ferozes. Muitos dias passei, servindo-me só de alimento a água, que bebia; e principiando a experimentar uma desgraça melhora, me pareceu se faria imenso o meu mal.

Os dias passavam em contínuas lágrimas, e suspiros; as noites em mil sonhos, que com falsas alegrias me enganavam, crendo umas vezes que me via na suspirada pátria; e outras que encontrava a meus carinhosos pais, a quem dando logo os braços, dizia com incrível alvoroço: Chegou o enfim a ser ditosa a minha esperança, pois alcanço a felicidade de ver-vos. E como o coração, onde são domésticos os pesares, nem consente nas sombras de alegria, logo me advertiu o receio serem seus espíritos bem aventurados, que havendo compaixão a tantos infortúnios, talvez viessem a fortalecer-me dos campos ditosos, onde entre sólidos prazeres estão as almas gozando de suas virtudes: e com um mar de lágrimas se me fingia no desacordo voltar os olhos aos Céus, dizendo: Vós, que sabeis qual é a consolação, que recebo em vê-los, não consitais que eu deles me aparte. E inexplicável a alegria, que eu assim estava recebendo, a qual não era como as que dão os divertimentos, de que sempre ouvi dizer que se envenenavam as gentes, e se geravam os inquietos remordimentos; que como esta era a mais bem nascida filha da razão, tudo era aquela feliz tranqüilidade, que mais arrebata, quanto mais a ela nos entregamos. Nestas suaves considerações acordava, tornando novamente a chorar o terem sido mais ditosas aquelas que estas lágrimas: e então mais vivamente voltando para os benignos Deuses, lhes dizia: Antes me entregai ao poder das Fúrias, que naufraguem no turbo Letes os avisos de meus bons progenitores. Oh quanto são felizes os que chegam a ver todas as luzes da virtude, e lhe sabem dar o verdadeiro culto, deixando de perturbar a paz dos que a amam!

Foste bem tratada nessa casa? lhe perguntou Argenéia. Os primeiros meses (respondeu Hemirena), como a minha larga moléstia me não dava alento para servi-los, me assistia uma velha caritativa: e ali iam todos ver-me, como se fossem bicho de feito estranho, trazido dos mais remotos confins do Mundo; e como Hortélio, antes de ir continuar o seu corso, deixou recomendado a seus filhos Carmindo, e Anquísia, que se eu tivesse inteira melhora, me conduzissem à sua mesa; porque ainda que ignoravam quem eu era, deviam ter atenção à compaixão, e amparo, que se devem aos desgraçados, nos primeiros dias me chamava Anquísia sem repugnância; mas como me principiou a tomar aversão, já não sofria ver-me aquele lugar. Pouco a pouco se foi introduzindo o veneno, que a atormentava, até que chegou a um excesso de braveza formidável, em que furiosa parecia que dominavam nela as filhas de Aqueronte, sem mais razão para a sua loucura, que a compaixão, que Carmindo dizia ter de mim, julgando-me com prendas, que eu jamais havia em mim conhecido.

Franésia, que também ali vivia, por ser mulher de Gilarco, irmão de Carmindo, pelo mesmo estilo se perturbava. Principiavam entre si a desunir-se sobre questão, que altercavam; e continuando a disputa, se iam enfurecendo de sorte que a família nos primeiros dias acudia com susto aos gritos, e nos subseqüentes como a buscar um divertimento: uns se compadeciam do triste estado, em que me viam; outros se retiravam a buscar o desafogo do riso, e tornaram a ver o fim daquela desordem, na qual ordinariamente sucedia, que com a exasperação das fúrias as duas irmãs mordendo-se, e arrancando cabelos, faziam encolerizar tanto a Gilarco, e Carmindo, que com demonstrações da sua intolerância me deixavam entregue ao poder da sem razão. Deixo à vossa prudência o ajuizar os trabalhos, que àqueles se me seguiram.

Mas qual era a causa de tanta inquietação? lhe perguntou Argenéia, que de admirada parecia que imóvel a tinha estado ouvido. Quando eu pude entender bem as frases grosseiras, com que se explicavam (lhe respondeu), soube que em uma obravam zelos indiscretos, e em outra inveja dos louvores, que de mim se lhe diziam (vícios horrorosos bem costumados a alimentarem-se dos corações, que cegamente se deixam possuir deles). Mas eu nunca pude crer que só esta fosse a causa, porque para fundamento se zelos não havia nem o mais leve motivo; e para inveja, (além da vileza, que comunica a quem lhe dá entrada) nunca soube que em mim houvessem virtudes para invejar; porque a formosura, e mais prendas, se são sujeitas ao tempo, que multiplica os invejosos, ele cura o mal, que os atormenta.

Em os primeiros tempos, não me podendo capacitar do que entendia, reparava que uns se riam muito, outros com cautela, e que Anquísia, e Franésia investiam comigo; e nesta aflição levantava os olhos ao Céu, dizendo: O Deuses tiranos, de novo gênero de martírio é este? Como me haveis destinado a um tormento sem igual? Se eu não sei em que erro, para que o sofro? Inspirai-me vós os acertos. Tornava outra vez à mesa, e não comia, porque não me deixava o medo, e porque temia ser aquela bulha, porque eu havia comido, então me parecia que mais se acendiam (se pode ser). Outras vezes comia mais do que preciso, procurando com esta experiência o acertar na causa do que experimentava; mas de toda a sorte via quase sempre iguais efeitos; e lembrando-me de que os Céus queriam tirar a mais legal prova do meu sofrimento: Deuses poderosos, (tornava a dizer) que fostes convidados para o banquete de Tântalo, não precipiteis a estas no abismo das penas, a provarem da fome, e sede que eu padeço; e se não quereis tirar-me a vida, nem livrar-me da sua crueldade, a vossa grandeza me assistia. Não se animavam aquelas duas irmãs a sairem de casa pelos desprezos, que por aquela causa experimentavam; porque uns as tratavam mal de palavras; outros buscavam o modo de persuadi-las a que conhecessem a sua sem razão; e outros lhes fugiam, dizendo haverem enlouquecido, e estarem furiosas. Roguei à velha caritativa, que me havia assistido, que lhes pedisse me não admitissem à sua mesa, com o pretexto de evitar o reparo público: o que vim a conseguir depois de prolongados tormentos, ficando bastante causa para o meu cuidado na comiseração, que me mostravam os homens, e banhada em lágrimas me parecia ouvir no coração as últimas palavras de meu prudente pai, que retumbando dentro da triste esfera de meu peito, recomendavam ao meu cuidado os resguardos do decoro. Ouvia juntamente as primeiras, e sólidas instruções de minha discreta mãe, que não menos me lembravam os indispensáveis preceitos da modéstia; e depois de tão penosas considerações, dizia aflita:

Ai de mim! O fado tirano, que ordenaste o desamparo, em que padeço, executa os estragos da tua impiedade, que ou me queiras conservar a vida para emprego de teus golpes, ou com ela queiras lisonjear os de Parca, nunca poderás conseguir que me falte fortaleza para defender-me dos inimigos das virtudes; e assim me entregas às violências do ódio, mas não me renderá o teu poder às crueldades do amor.

Suspensa, e já aflita estou (lhe disse Beraniza) de considerar-te entre Cila, e Caribdis. E não te davam nesse tempo ocupação, em que empregar-te? Nos primeiros meses (lhe respondeu) em os empregos de servir a casa, de que eu não tinha nem a mais leve notícia, padeci inexplicáveis contratempos, porque haviam sido outros os meus exercícios, e não sabia servir em o que ali me mandavam. Que prendas tens? lhe perguntaram. Fui, senhoras, instruída (lhes respondeu) em a Música, Poesia, e alguma parte da Astronomia; mas quem renasce em novo ser tão desgraçado, perdendo de vista o gosto, se conserva as prendas na memória, é obrigada a vontade a desprezá-las como ruínas do tempo. Tornaste a ver teus pais? lhe perguntou Argenéia. Ao que respondeu Hemirena: Sim, senhora; porque como nos empregos, que em casa me dava Anquísia, eu não sabia servi-la, ordenou que eu com outras escravas, e mais gente do campo fôssemos aprender a cultivar as terras; o que ou seria porque a minha desgraça lhe dispôs o ânimo para aborrecer-me, ou porque a minha inutilidade não soube granjear o seu afeto, pois não tem lugar as melhores artes entre os rústicos: eu a servia onde me não maltratava a chuva, ou o frio, não me afligia o calor do Sol, nem me fatigava o trabalho, porque só me oprimia o ver-me entre homens rústicos, abatida até ao último grau da desventura. Enquanto me não costumei a ouvi-los, me atemorizavam as grandes, e descompostas risadas, que davam, vendo-me no campo trabalhar entre eles; e como a melhor resposta sempre foi negar-lhes a atenção, eu me empregava em meu trabalho, não só como quem os não entendia, mas como se também os não ouvisse; e se acaso com dissimulação os observava, os via fazer gestos, e ações tão ridículas, que ou fossem explicativas do seu brutal afeto, ou demonstradoras da sua admiração, eram dignas de riso, a quem não vivesse tão cheia de pesares como eu.

Assim ia passando os cansados dias do princípio da minha peregrinação, quando em uma tarde vi que um homem com pressa me buscava; e chegando-se a mim, conheci ser meu pai, que sabendo que eu estava naquela vizinhança, e determinando os que o compraram fazerem no dia seguinte a sua jornada para Corinto, lhe concederam licença, para que fosse a despedir-se de mim. Com muitas lágrimas de consolação, e alegria passamos aquele brevíssimo tempo; e perguntando-lhe por minha extremosa mãe; me disse não lhe havia sido possível saber como se achava, por ser muito distante para onde tinha ido; e assim discorrendo, as que haviam sido lágrimas de consolação, e alegria, se transformaram em nova dor, e mais viva saudade; e como desejava conciliar-lhe algum gênero de alívio, lhe ocultei os meus pesares, bastando para grave causa da sua mágoa o estado abatido, em que me viu; e repetindo as suas acertadas recomendações, me deixou tão fortalecida, quanto novamente magoada.

Cansada já a minha desventura pelas contínuas aflições, em que estavam Anquísia, e Franésia, pois não se atrevendo a tolerarem aquele mal, a que só elas davam causa, assentaram em vender-me a Artemisto. O pobre Pastor Túrnio, a quem enganava a fantasia, propondo-lhe em mim um objeto amável (que eu nunca fui), com os maiores excessos creu que poderia conseguir que eu lhe desse a mão de esposa; e vendo que achava o ânimo de Anquísia indisposto para favorecê-lo, buscasse quem o comprasse, dizendo que ele venderia a sua liberdade, para comprar a minha. Por aquele inocente sacrifício do rústico sincero se ordenou a sua morte; mas os Deuses, que não quiseram consentir em tão grande crueldade, me destinaram para servir-vos, para que se não executasse a bárbara sentença: e assim deixando o abismo de tantas penas, e cuidados, chego feliz aos vossos pés, pois tiveram os Céus compaixão de tão horrorosas fadigas.

Apenas entrei nos vossos Domínios, tive pelo melhor anúncio ver os campos férteis, as gentes compassivas, sendo as mulheres modestas, e os homens atentos: nas aves se me representava só, a que nestes Domínio pode anunciar-me o triunfar dos trabalhos na vossa presença.

Na verdade (lhe respondeu Beraniza) que me compadeço de ouvir os teus infortúnios; e sabe que o nosso afeto se move a favorecer-te, pois este é o mais preciso efeito da grandeza. Dize-me alguma cousa desejas no estado, em que te vejo, que no que couber nos limites do possível, serás satisfeita.

Eu, Senhora, não desejo a liberdade, (lhe respondeu Hemirena), porque esta perde o preço, quando a servidão é tão ditosa. Não apeteço riquezas; porque os Céus, que sabem dispor melhor o que nos convém, me afastaram de todas, talvez por me ser mais útil o servir-vos, que o possuí-las; nem que seja restituído aos meus olhos aquele a quem a esperança do consórcio havia unido o mais sincero amor; porque onde este é mais constante, quase sempre é a fortuna contrária: se pudera conseguir a liberdade de meus pais, só essa empresa faria feliz os meus infortúnios, ainda que eu de todo perdesse a esperança de vê-los; mas como não estão em Domínios do Rei vosso pai, não posso enganar-me com a esperança que a vossa grandeza podia animar. Como não queres nomeá-los, (disse Beraniza) não se pode intentar a sua liberdade. Descansa agora na minha proteção, que muito pode vencer o tempo. Hemirena, pedindo-lhe licença, se retirou ao seu aposento.

No dia seguinte ordenaram as Princesas que as acompanhasse à caça, divertimento, de que usavam em muitos, e subseqüentes dias. Beraniza se servia com excessivo gosto das gentis prendas de Hemirena, a quem não só folgava de ouvir, como também imitava sábia, instruindo-se gostosa. Passados alguns anos, disse Beraniza a Hemirena, que havendo inteiro conhecimento das suas singularidades , já era tempo para lhe dizer quem eram seus pais; e como Hemirena continuamente suspirava, sem que bastasse todo o tempo para curar-lhe tão viva chaga, se determinou a dizer-lhe:

Sabei, Senhora, que sou filha dos Reis Diófanes, e Climinéia; e que eu era levada a Delos, para se celebrarem os meus desposórios como o Príncipe Arnesto, que devendo assistir aos jogos públicos, (para o que também os meus concorreriam) partiu de Delos e esperar-nos: mas como os Numes não consentem muitas vezes nas felicidades dos mortais, para que purificando-se entre fadigas, se acrisolem para os descansos, eu não quero mais que este bem, que estou gozando; mas os trabalhos de meus pais nunca me deixam enxugar o pranto; e assim, quando parece que descanso, eu lhe assisto, e estou vendo a Arnesto morto, ou louco, e perdido, supondo que nas cavernas do mar nos daria Netuno sepultura; e muitas vezes depois de tristes representações, em mil delírios digo:

Como, ó forte ingrata, me conservas em tão duvidoso estado? Como é possível que com tão molestos cuidados se conserve uma vida frágil? Oh estrela cruel, que não foras tão, que não foras tão adversa, a ter-me criado entre as feras! E logo entrando em mim, torno a dizer: Mas se estes pesares qualificam o meu sofrimento, triunfe a constância, pois a resignação é o princípio da felicidade. Se Arnesto já rendeu o magnânimo espírito, mais breves foram os seus cuidados que os meus; e se vive, conserva com o alento a vida da esperança. Se meus amados progenitores são falecidos, descansam; e se vivem, trabalham para descansarem. Deixa-me pois, ó memória cruel, que sempre intentas destruir as obras do entendimento. Agora vejo (lhe disse Beraniza) que a tua beleza, e nobres sentimentos são ilustrados de tão grandes princípios. Teus pais serão logo buscados com os sinais, que deres; e se forem achados, virão com a ostentação, que merecem, para te acompanharem. Não quero dever (respondeu Hemirena) à vossa compaixão benefício mais estimável, que serem restituídos aos seus estados, ainda que eu de todo perca a esperança de tornar a vê-los; e bem considero o muito, que é difícil encontrá-los; mas aos Soberanos não se atrevem as dificuldades, quando as ações são generosas.


Beraniza cheia de admiração, que lhe causava o saber quem na verdade era Hemirena, se recolheu a falar a seu pai para as distinções, e grandeza, com que dali em diante se devia tratar, e juntamente dar-se providência à liberdade daqueles Soberanos; porque suposto que Arnesto, e os Tebanos os haviam buscado com a maior vigilância, e prometido prêmios importantíssimos a quem desse alguma notícia digna de crédito, como os piratas usaram da prevenção de pôr o fogo à nau, contentando-se com os cativos, e a pressa do preciso, com que se costumam servir tão altos sujeitos; e estes entre si tomaram o acordo de ocultarem quem eram, não só mudando de nomes, mas ordenando aos seus, (dos poucos, que haviam escapado do combate) que em nenhum caso os descobrissem, ainda que naquela Corte se havia também sentido a desgraça, que sucedera a Diófanes, por aquelas mesmas cautelas todos entendiam que a sua embarcação fora a pique.

Com imenso prazer recebeu o Rei aquela notícia, e logo determinou, que um dos melhores quartos de palácio fosse ricamente paramentado para assistência de Hemirena: e se lhe nomearam as pessoas, de quem se devia servir, conforme ao trato decente, que merecia. Tudo agradeceu, e recusou; e ainda que se lhe conservou tudo no mesmo estado, sempre dizia, que enquanto seus pais peregrinando pelo Mundo, como escravos, ela também como escrava devia conservar-se.

Passados alguns tempos, quando as interferências a faziam crer que seus pais seriam restituídos à sua pátria com a ostentação, e grandeza, que mereciam, como se havia determinado, mandou o Príncipe Ibério propor-lhe por Miquilenia, Dama das mais graves, que se haviam destinado para servir a Hemirena, que ele desejava contrair com ela o mais feliz himeneu; e que por se não embaraçarem com dúvidas, que poderiam ocorrer, o fariam secretamente, sem que se participasse esta notícia a Beraniza. Ao que respondeu Hemirena:

Dize ao Príncipe, que uma escrava não pode servir-lhe para esposa: que eu não declarei a minha origem para dar a mão encoberta: e que antes quero perder a vida, que mudar de estado, sem que os meus o determinem; assim como o afeto, e amizade, que na alma me imprimiu Beraniza, não consentem que eu admita nem a mais leve insinuação de seus intentos; pois faltarão nos Céus estrelas, e nos campos flores, primeiro que Hemirena, a ser grata, fiel, e soberana. Com esta desabrida resposta deixou confusa a mensageira, e o Príncipe sem esperança.

Continuava Beraniza as suas aplicações, que muito moderada e discreta indústria de Hemirena, pois temia que a delicada Princesa perdesse a saúde como já com reverente afeto, e verdadeiro zelo lhe havia ponderado. Passamos quatro anos, achando-se Beraniza gravemente enferma, principiava a desconsolação de Hemirena a anunciar a sua ruína; e vendo Beraniza que a sua vida não seria dilatada, disse: Amabilíssima Hemirena, não apaguem as tuas lágrimas a luz brilhante de teus belos olhos, temendo desamparos, pois ficas bem recomendada pelas tuas amáveis qualidades: não temas que a minha falta diminua na estimação de tuas prendas singulares, que as mulheres, que com virtudes adquirem o domínio das vontades, assim como à sua beleza se não atreve o tempo, também as respeitam os duros golpes da Parca, porque se imortalizam, não os sentidos da memória, e estimação das gentes, porque o espírito gentil, que não acaba, em cada ano lhes aviva com os méritos a formosura; mas pelo grande afeto que mereces, é preciso que eu deixe padrões para a tua memória, ordenando que te sejam entregues as minhas jóias; e como tão fielmente me tens acompanhado, será razão que a minha falta te descanse: para o que também deixo recomendado a Ibério que te faça conduzir à tua pátria com aquele esplendor, que é decente à tua pessoa.

Crede, Senhora, (lhe respondeu Hemirena) que mais me oprime o que vos ouço, que a separação daqueles, por quem choro: terei sem dúvida por mais severo o castigo da vossa falta, que os tolerei nos contrastes da fortuna. Os céus compassivos para mais esse pesar me não resguardem, porque do mal que passou, só me conservam na memória os vestígios; e para o que ameaça a vossa desconfiança, já desmaia a minha fortaleza: e assim vede, Senhora, que sendo momentânea a vida, que logramos, esta se dilata, quando esperamos com ânimo constante que os Deuses sobre nós determinem; porque é certo que as suas resoluções só são pesadas, a quem não sabe discernir entre o bem, e o mal. O mandarem-me restituir à minha pátria, onde pelas cautelas da vossa grandeza creio que meus pais já descansam, é jóia de tanto preço, quer nas que me oferece a vossa generosidade, aceitarei, por não ser ingrata, despertadores para a minha mágoa, ainda que os Deuses benignos espero que vos dilatem a vida tantos, e tão prósperos anos, como já viveu Nestor.

As muitas lágrimas, negando-lhes os termos, a obrigaram a retira-se, porque também não aumentassem a moléstia de Beraniza.

Passados alguns dias, acabou nos braços de Hemirena, que chegando-a estreitamente ao aflito peito, dizia com infinitas lágrimas: Quem será bastante a consolar-me neste mal, que todo é meu? Se tudo perco, quando tu me deixas, onde verei agradável a formosura, se no teu grato aspecto já não vejo mais que a pálida imagem da morte? Se haverá quem ponha a sua alegria em vida limitada? Se haverá quem deixe de conhecer os enganos de um Mundo inconstante, vendo que tão pouco dura a grandeza, o poder o soberano, e a formosura? Como é possível que à tua vista se possa dar preço a uma vida frágil? O Parca ingrata, como vivo eu, se acabou Beraniza? Ai de mim! Que estrela cruel é a que me segue, e me conduziu ao descanso, para me ser mais violento e desvelo? Que fado mudável me negou à escravidão tirana, e me trouxe a ver-te, para experimentar um desconto dos alívios, que me deste, o trabalho mais sensível em o golpe cruel da tua falta? Imprimam-se meus tristes lábios nesta nevada, e generosa mão, prêmio bem merecido, por te não haverem nunca, lisonjeado. Oh quanto te deram agradáveis os resplendores da verdade, conhecendo discretamente que foge dos Soberanos pelos aduladores que os servem! E como não podem as minhas lágrimas animar a tua formosura, eu me aparto de ti a sentir na tua ausência de cada vez mais perto a minha morte! Mas que digo? Eu deixar-te? Ai de mim! Oh! céus compassivos! Oh bárbara Parca! Adeus, Beraniza adorada. Adeus, minha perdida esperança. Os circunstantes no desacordo da sua pena davam lugar ao largo desafogo de Hemirena: e como ali se achava Ibério, em quem já cupido havia empregado as suas setas, temendo que Hemirena rendesse o espírito nas mãos da mágoa, lhe disse: É tempo de te separares de Beraniza, pois que já não a podem negar à morte os estragos da tua vida. E logo a fez retirar ao aposento, em que o semblante cadavérico era o melhor indício do quando estava gravada no coração aquela dor intensa.

Ibério, não podendo reprimir os violentos impulsos do seu afeto, foi vê-la, para moderar o seu justo sentimento. Amabilíssima Hemirena, (lhe disse) se o teu entendimento domina em a minha vontade, como é possível que não resista ao que discorre a tua memória? Eu te juro fé, pois com o mais firme rendimento confesso que te adoro; e não pretendo de ti mais que a boa aceitação de meus sacrifícios. Não temas agora novas adversidades, pois te servirá um Príncipe rendido, em quem os teus merecimentos têm o maior império. Não temo adversidades, (lhe respondeu Hemirena) porque só receio as prosperidades, que me prometes: e se queres dar fim a meus infelizes dias, continua com as expressões do teu rendimento; mas sabe que enquanto me durar a vida, não será menor o meu pranto, nem haverá tempo, que baste para as demonstrações do meu sentimento. Adverte, (replicou Ibério) ó bela ingrata, que, quando a paixão está próxima, só convida com a mágoa, a que não poderia resistir o peito humano, se em cada dia, que passa, não experimentara o benefício do tempo. Não desprezes uma vontade fiel, que não quer mais que diminuir-te uma causa para o cuidado: e não creias que eu queria deslustrar a tua estimável modéstia, que isso fora desmentir o soberano: nem te persuadas que no afeto, que te confesso, espero ver finezas agradecidas, porque estas regularmente são desprezadas: mas sabe que para as tuas especiais virtudes só o coração é lugar decente. Vive, e conserva a tua varonil constância; porém não temas os contrastes da fortuna.

Com estas palavras deixou Hemirena, a quem duplicou os cuidados, principiando já a experimentar a falta de Beraniza. Toda aquela noite passou vacilante entre horrores da morte, e crueldades do amor, considerando-se vizinha aos perigos; porque via em Ibério prendas estimáveis, e discrição tão poderosa, que temendo, passar da estimação das boas qualidades a algum desordenado afeto; e refletindo em que as forças do amor só pode vencer quem lhe sabe fugir, determinou ausentar-se em a noite seguinte para dever amparo às sombras, antes que lhe faltassem as luzes; e sem esperar que lhe fossem entregues as jóias, se dispunha para a fuga. Tornou Ibério a vê-la, pois o não deixava descansar um tirano cuidado. Hemirena logo atalhou a suas expressões, dizendo:

Não sei, Senhor, como te agradeça os excessos, com que me fazes mercê, diminuindo na tua grandeza; porque assim como os não sei merecer, também os não sei estimar; e é tão adversa a minha estrela, que quando me seguras os descansos, tenho na tua proteção o maior despertador para as fadigas; pois desde que a pesada mão de Atropos cortou o fio, que sustinha o meu amparo, principiei a combater com a desgraça no improporcionado favor, com que intentas lisonjear-me; e ultimamente digo, que se coubesse em mim maior pesar, que serem os meus braços triste ocaso de Beraniza, só o seriam os teus rendimentos, pois é certo que estes em seu mesmo excesso naufragam, e que nunca jamais serão pagos; porque as mulheres, como eu, nem chegam a agradecer, sem que lhes fiquem escrúpulos no decoro. Se não queres ver-me consternada, deixa-me viver em paz, ou correr com a tormenta do meu destino, que nas prisões de escrava, ou de mim fugindo pelo Mundo, qual pobre peregrina, conservarei sempre na alma a glória de vencer entre tão novos trabalhos os assaltos de meu fado. É sem igual (lhe respondeu Ibério) a admiração, que me causa a ouvir-te; porque quando não é o outro o meu designo, mais quer render cultos à tua formosura, a tua isenção me maltrata. Pois sabe que às tuas prendas sempre tributarei adorações, sem que espero mais ditoso prêmio, que permitires-me o ver-te, porque ao teu decoro levantarei padrões, para lhe gravares letras, que imortalizem o teu severo rigor. Bem sei, Senhor (tornou a dizer Hemirena) que a tua discrição é capaz de conquistar impérios mais poderosos, e que os preceitos da modéstia não dispensam inteiramente as obrigações de agradecida; mas como nasci para trabalhos, não estranhes que eu me negue às estimações, e descansos, que me segura a tua proteção. Se não queres acumular-me aflições, deixa-me agora descansar, porque a presença dos Soberanos é como a luz, que por demasiada também cega; e se queres fazer-me a mercê, que só desejo, não tornes a este pequeno aposento, onde não cabes, sem que se oprima a tua grandeza. Não pode a força da tua desatenção (disse Ibério) conseguir que eu te não veja, e deixe de amar-te; e como no teu sossego interesso, quanto arrisco em a tua ausência, eu me retiro, cedendo o meu gosto só a favor do teu alívio. Com estas palavras se retirou Ibério, deixando Hemirena com o maior empenho no cuidado da sua peregrinação, a que deu princípio em a noite seguinte, em que lavado com lágrimas aquela fúnebre assistência, recomendando ao silêncio da noite o livrá-la dos tumultos da Corte, saiu com vestido de homem, disposta com aquele fingimento a vencer os maiores assaltos de sua cruel fortuna.