Aventuras de Diófanes/II

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Com o suposto nome de Belino principiou a fugir Hemirena dos perigos, com que o amor ameaça a formosura, e chegou a admirar as cristalinas correntes de um rio, que resguardava um belíssimo arvoredo; na sua margem achou um velho cego, e leproso, cuja asquerosa figura lhe ocultou a Diófanes debaixo do nome de Antonior, o qual lhe conta parte de seus trabalhos; e Hemirena se retira, temendo ser conhecida.}}

Caminhando de noite, e descansando de dia, continuava Hemirena a sua derrota, sem que se passasse algum, em que os seus olhos não pagassem tributo às memórias de Beraniza. Já àquele tempo não chorava a infelicidade de Climinéia, e Diófanes, porque se havia persuadido que descansavam em Tebas.

Ibério, sabendo da sua fuga, falou frenético a seu pai, descobrindo-lhe as chamas, em que ardia, para que se mandassem fazer diligências, que aos seus olhos restituíssem a Hemirena; e como Rei lhe respondeu que não se devia perseguir aquela discreta resolução: e que em nenhum tempo sofreria que lhe desse a mão para esposa, a que havia sido escrava de Artemisto, porque se na sua escravidão respirava a grandeza, no seu consórcio delustraria a Majestade. Ibério, ouvindo estes últimos desenganos, deixou a Corte; e desprezando a esperança do trono, que renunciou a favor de Argenéia, tão amante, como resignado aos preceitos de seu pai, determinou retirar-se para uma casa de campo a esperar ali a morte, fazendo constantes sacrifícios às soberanas virtudes de Hemirena, que como Belino com o maior cuidado, e susto continuava em fugir; porque onde periga o decoro, equivocam-se as cautelas com os indícios do delito.

Chegando a Corinto, determinou ir com menos incômodo pelos sustos, medos, e horrores, que padecia, caminhando de noite. Em uma fresca tarde já cansado se recolhia em o oco de uma grande árvore, quando ouviu uma voz suave, que docemente cantava; e saindo a buscar a causa de tão suave canto, ouviu o brando sussurro de um rio, que vagaroso se espalhava pela relva: continuou a seguí-lo e por baixo de um frondoso arvoredo foi buscando os pertos daquela voz, que suposto ouvia melhor, parecendo-lhe ali sobrenatural, desconfiava de encontrar a sua origem. Assentou-se a descansar, vendo a glória da causa das maravilhas, que observava; e reparando nos líquidos cristais, dizia: Oh quanto és agradável, belíssima ribeira, que com majestosos movimentos despedes as cristalinas correntes que prendem, e guarnecem este ditoso bosque! E vós, aves inocentes fragrantes flores, e fugitivos desperdícios, gozai do solitário sossego deste ameno bosque. Oh quem pudera trocar convosco a sorte! Aumentando os regatos, corriam de seus belos olhos inumeráveis lágrimas: quando, sendo já quase noite, tornou a ouvir aquela suavíssima voz; e indo em seu seguimento, viu de longe um vulto, que principiava a tremer, não podendo bem distinguir se era humano; e vendo que daquele tal corpo é que saía a doce voz, foi devagar chegando para aquela parte, e observou que tinha figura de homem, e que estava da cintura para cima sem vestidura alguma; o resto do corpo se cobria com uma pele de urso; tudo, quanto tinha descoberto, era vestido de chagas; a barba crespa, e encanecida lhe chegava a cobrir o peito; os olhos, que pareciam sem luz, eram cobertos de carne, a cabeça calva, e da mesma sorte chagada, e as mãos ensangüentadas pela violência com que coçava as feias feridas, sentado sobre uma pedra junto à maior corrente do rio cantava, enquanto descansava de coçar-se. Suspenso Belino de ver o gosto, com que aquele em tão miserável estado se achava com o asqueroso semblante sumamente alegre, chegou a falar-lhe, e lhe disse:

Homem ditoso, que estás gozando desta amável soledade, como cantas tão alegremente, se te falta avista para lograres o mimo destas sombras? Como pode em ti haver alegria, se estás atormentado desse mal, que te consome? que fazes aqui distante de todo o remédio para o que padeces? Se aqui te deixou o engano, ou a tirania das gentes, eu te servirei, pois das gentes fujo. A estas palavras rindo com sossego, lhe respondeu:

Se me chama ditoso, porque estou gozando desta mágoa soledade, como reparas na minha alegria? Canto, porque já não posso ver as sombras, e só me disponho para as luzes. Como deixarei de estar alegre, se está para acabar o padecer deste mal, que me consome; e quando o que se consome, acaba, estou onde a distância dos remédios é o remédio do meu mal? Não me trouxe aqui o engano, porque aborrece as solidões, e é ocupado nas Cortes. Não me deixou a tirania das gentes, porque eu me resolvi a deixá-la. Quando muito me atormenta o rigor do que padeço, a fresca, e doce corrente me refrigera. Não quero mais cama, que a que me prepara a verde relva, nem mais saborosos manjares, que as ervas, para que me convida a fome. Quando os Pastores destes bosques vêm a socorrer-me, o leite, com que me regala a sua compassiva singeleza, me parece mais saboroso, que o suave néctar dos Deuses. Mas dize-me: Como te não fiz horror, e te atreveste a falar-me? A justa admiração (lhe respondeu Belino) que me causou o achar-se um tão nobre alegria em tão lastimosa figura, me obrigou afalar-te, para ver se aos meus males podia também achar remédio. Eu padeço mais que tu, pois é interno o meu mal; e como o fugir das gentes é hoje o que mais me convém, consentem-me na tua companhia, que a aspereza da vida, que aqui fazes, mais me agrada, que os regalos, de que fujo. Se te não é asquerosa (lhe respondeu) a figura, que em mim vês, repartirei contigo o maior bem na tranqüilidade que logro, e como a noite já estava adiantada, se acomodou Belino para descansar, encostando a cabeça sobre as raízes de um tronco; e para a outra parte o bom velho, que quando o despertavam as dores, principiava a cantar louvores a Júpiter; e invocava os Semideuses dos bosques, para que não consentissem que Esculápio, filho de Apolo, fosse ali a curá-lo, pois desejava que tivesse mais exercício a sua paciência.

Em amanhecendo, vieram uns Pastores, que vendo o belo mancebo, que em Belino se lhes representava, o levaram a ver a sua Aldeia, donde voltou obrigado à sinceridade, com que o trataram; e desejando saber quem era o velho enfermo, lhe disse:

Já a esta hora terás entendido em mim se não oculta algum inimigo teu, e quisera que me confiasses o teu nome, e a causa, que para aqui te conduziu.

Chamam-me Antionor: (lhe respondeu) os meus infortúnios não cabem, nem ainda em larguíssimos discursos, porque têm sido muitos, e os maiores, que até aqui puderam lembrar ao rigor da desventura; mas serás satisfeito com alguma parte deles. Antes que Anfiarau empunhasse o cetro de Corinto, vivia eu entre camponeses em um agradável retiro de Aganimedes seu pai, que lhe cedeu o governo, por se achar adiantado em anos, e falto de forças, pois conhecia as que eram precisas para reger a Monarquia. Quando deixou o governo, lhe recomendou que conservasse o conveniente, e reformasse o pernicioso: e também lhe advertiu que me ouvisse, pois era Filósofo e tinha notícia das melhores leis, e costumes das outras nações. Com este motivo fui levado a uma casa de campo à presença de Anfiarau, que determinou tiranizar assim a minha tranqüilidade, pois a perde quem é destinado para os empregos da Corte. Eu lhe disse, logo que ele me dispôs a deixar o campo:

Permiti, Senhor, que eu continue em guardar os vossos rebanhos, e escusai-me das estimações de valido. Principiaram no Mundo as guerras, por haverem muitos Deuses, muitas leis, e muitos Reis; e antes de as haverem, moravam os homens em os campos, comiam frutas, dormiam em covas, andavam descalços, e viviam do comum; eu quero só servi-vos, como até agora, acompanhando os vossos rebanhos no campo, sustentar-me das frutas silvestres, e reparar-me dos rigores do Inverno debaixo dos rochedos, já que o determinam os Deuses; porque o guardando a melhor lei, pobre, e descalço viverei em paz, que esta sempre nas inquietações da Corte. Oh quanto é melhor ouvir o que lá se passa, que o viver nela! porque os que não podem valer, estão esquecidos; os que muito valem, são perseguidos; os pobres não têm que comam: os ricos, porque o são, não os deixam comer sem sustos; são muitos os queixosos, e poucos os contentes; fazem muitos o que querem, e poucos o que devem; enfim todos murmuram, e quase todos seguem os mesmos erros, que condenam. Bem sei eu que os que procuram introduzir-se para validos, nem merecem ver a Majestade, pois estudam só lisonjeá-la, para fazer o partido de suas dependências; e que os Soberanos não podem com os olhos descobrir todas as luzes da verdade, porque trabalham em escurecê-la os que zelo aparente tratam de seus interesses, fingindo que amam os acertos de seu Rei, quando é certo que só estimam as suas grandezas. Se estes se castigassem com o silêncio eterno em pena do mal, que falam (visto se habilitarem para traidores os que mentem ao seu Rei, concorrendo para que seja injusto, ou em faltar a injustiça, ou em exceder a clemência), não sofreria enganos a Majestade, nem os vassalos descréditos; que ainda que se não descuidam as luzes do Sol em mostrar o que teve oculto a noite, são tão atrevidas as nuvens, que se opõem à verdade, que de seus horríveis defeitos nasce o muito, que temo o vosso preceito. Estas são as razões, por que espero dever à vossa compaixão e sepultares-me no esquecimento. Não foram admitidas as minhas escusas, e fui obrigado a fazer jornada no dia seguinte, dando mais um motivo para estímulo da desgraça. Antes que deixasse aquele amável sossego, chamei os rústicos, com quem vivia contente: despedi-me dos filhos, que comigo principiavam a observar os movimentos dos Planetas desse luzido Firmamento, de outros, que com mais adiantado conhecimento já iam colhendo os doces frutos de suas aplicações; e de outros, que como seus pais, aplicando-se à cultura dos campos, se recolhiam fatigados só para descansarem; e cantando em seu trabalho, esperavam a precursora do Sol, sem que lhes ficasse tempo para as murmurações, ou inquietações dos vizinhos, e com saudosas lágrimas lhe disse:

Eu sou obrigado, ó filhos, a deixar-vos, indo viver onde uns se alimentam do mal de outros; e já que os Céus vos têm mimosos, conservando-os felizmente neste amável sossego, aumentai para glória do meu trabalho o bom exemplo, com que vos hei dito, que os pais deveis persuadir os filhos e bem obrar: fazer que se não esqueçam do que lhes ensinei; e que uns admitam os outros em se aplicarem ao que lhes pedir a inclinação; e que os outros continuem seus trabalhos, temam o ócio, e todos exercitem as virtudes. Rogai aos Deuses que não me neguem as luzes, com que se amam os inimigos; que possa defender os amigos, amparar a pobreza, e tolerar os contratempos.

Logo que cheguei à Corte, fui à presença de Anfiarau, que com muitas honras me recebeu; e perguntando-me donde era, lhe respondi: Não podereis dizer-vos, se sou da grande Tebas, nem da Licaônia, nem da famosa Atenas, como respondeu um grande Tebano; e como ao sacerdote Arquitas vos respondo, que não sou de Tebas, como Tesifonte, nem de Atenas, como Agesilau, nem de Licaônia, como Platão, nem de Lacedemônia, como Licurgo; nasci em o Mundo, e sou natural de todo o Mundo. Como Anfiarau conheceu que tinha repugnância em dizer a minha pátria, não fez maior instância para o saber.

Toda aquela tarde passamos em conversação delicadíssima pela gostosa matéria, que se tratou; e quando foram horas, me conduziram a um aposento dentro em palácio, onde achei tudo com a polidez, que pedia o lugar, e fui servido com especiais distinções. No dia seguinte tornei à presença de Anfiarau, e se continuaram os discursos do que já se havia praticado no antecedente. Quisera dever-te (lhe disse Belino) que ao menos tocasses a matéria, em que se fundaram esses discursos, pois me seguras foram de gosto, e delicadeza. Discorremos (lhe respondeu) nas almas ditosas, que nos Elísios bem-aventurados gozam felizmente a paz, que não interrompe o receio de perdê-la. Nos espíritos desgraçados, que em contínuas penas se banham no triste rio do esquecimento. Na glória que adquirem nas heroicidades, quando se lhes não opõe a vaidade, que as deslustra. Na suave Poesia, e sua origem. Nas felicidades do século dourado, e admiráveis efeitos da razão.

Passados os primeiros dias, já não queria só divertir-se, mas que em a nossa conversação também se tratasse da utilidade pública; e que havendo-lhes satisfeito a curiosas perguntas, queria lhe dissesse em que consistia o melhor governo e obrigações do Soberano. Ao que respondi conforme os Céus me inspiraram. E logo me ordenou que observasse, como iam os costumes dos vassalos, se guardava a melhor ordem para o bem público; e se administrava verdadeira justiça. Eu lhe pedi que me comutasse aquele trabalho em outro, ainda que mais cansado fosse; e não foi possível que os meus rogos o conseguissem: e como saber mandar é mais difícil, que saber obedecer, sujeitando-me a tão pesados encargos, lhe roguei que ouvisse a todos, e cresse a poucos: e que estes fossem introduzidos mais pelo merecimento, que pela confiança, porque assim se evitaria que os comerciantes dos enganos servisse de escudo o seu agrado; e não haveria quem se atrevesse a ofuscar a glória, e candor de suas ações; e aprenderiam as gentes, qual era a verdadeira felicidade do melhor Príncipe.

Cantavam aqueles povos desoprimidos, florescendo as artes, e o bem público; mas ainda assim criei infinitos inimigos, ou porque a inveja não sofre alheios louvores, ou porque dos benefícios se gera a ingratidão, pois nasce com os homens, como caráter, que recebam de seu nome, sendo neles gênio antigo entregar as dívidas ao esquecimento. Dentro em palácio me acometeram alguns, de quem me defendi com honra; e quando caí ferido, se retiraram, talvez pensando que me deixavam morto. Fui visitado de Anfiarau, que com ânsia quis saber, se eu havia conhecido os que se atreveram àquele insulto, o que de mim não conseguiu, lembrando-me os padrões de imortal glória, que o Intrusco vinculou à posteridade, quando perdoou a Múcio, que o buscava para lhe tirar a vida. Em o largo tempo de minha doença concorriam as gentes sentindo mais que eu as próprias feridas; e dizendo uns no seu pranto que renasceriam as antigas maldades; outros que se enfraqueceriam as virtudes, e a justiça; e outros que seriam reduzidos às antigas opressões. Neste tempo o tiveram os malévolos para cultivarem o Real agrado; e com o falso zelo, com que os vassalos indignos traçam o engano de seu Rei, fingiram ter grande parte no sentimento do que me haviam feito; em um dia traziam à memória os perigos, a que eu me havia exposto; em outro lhe pediam (como obrigados da amizade, que eu merecia) que acudisse com algum reparo para os inimigos, pois estes nasciam do bem, que eu o havia servido; e discorrendo sobre a providência, que a isso se havia de dar, dizia cada um daqueles o seu parecer, e vinham todos a concordar, que Anfiarau desse a entender, que aquele tempo da minha ausência, me havia apartado de seu coração, e me não admitisse na sua presença, para se mitigar o ardor da inveja, do ódio, e do ciúme.

Acabada a cura das minhas feridas, me achei coberto de lepra, porque os Deuses benignos, que não se esqueciam de amparar os meus desejos, me faziam mimos com repetidas experiências da minha constância; e na presença de que, conhecendo a minha debilidade, me permitiram algum descanso, mandei pedir a Anfiarau, que me concedesse licença, para ir respirar para uma pequena casa de campo, que verias nessa Aldeia, a qual deixei, tanto que pude caminhar para este solitário retiro; e ainda aqui não se me dispensam as inquietações da Corte, pois há poucos dias, que fui consultado para negócio, em que a minha infelicidade fazia novo esforço, para combater o meu sossego; e é tal a força da minha desgraça, que podendo de todo ausentar-me, tendo o tácito consentimento de Anfiarau, o deplorável estado, em que me vês, não permite fazer maior caminho, valendo-me assim da companhia destes inocentes Pastores. Não repito algumas circunstâncias, que na mesma ocasião foram dignas de reparo, porque o mesmo falar me fadiga, nem um pequeno desafogo consente o fado aos perseguidos. Pois sabe que os meus infortúnios (lhe disse Belino) me obrigavam a acompanhar-te neste ameno bosque, tendo por certo que estarias livre dos que vêm feridos do contágio, que há nas Cortes; e como com horror tenho ouvido o veneno, que ocultam os corações, que ainda te ano deixam, eu me resolvo a continuar a minha triste peregrinação cheio de exemplos, que seguir, e documentos para publicar. Como sou quase insensível para alívios (lhe respondeu Antionor), não te persuado a que me acompanhes, mas sim que te retires dos que podem inficionar-te com seus vícios, se o teu ânimo é tão sincero, como se me representa nas tuas palavras. Oh! quanto (lhe disse Belino) é perseguida a virtude, e peregrina a verdade, que ocultam aos Soberanos, pois vejo resplandecer em ti o espírito gentil, que se despreza! Não te admires do que ouves (lhe respondeu), repara no que vês, para que te não enganem a gentileza, e estimações, pois são sujeitas às misérias que padeço. Vai, ó ditoso, e gentil mancebo, que estás em estado de buscar um lugar, que te contente, e descanse. Roga aos Céus que me assistam; que infundam em Anfiarau os acertos, o conhecimento da lisonja, a pureza da justiça, o aumento das virtudes, e ciências, e o resguardar o respeito do trono, sem perseguir a inocentes; e juntamente lhe inspirem o amar sempre os vassalos, para ser deles amado. Adeus, ó feliz Antionor, (lhe disse Belino) que como praça cheia do melhor socorro, não temes o sítio, nem as forças dos inimigos de fora. Os teus rogos mais depressa hão de chegar aos Deuses; e lhes pede que animem o meu desalento, que encaminhem os meus passos, e que antes me entreguem à mais cruel morte, que deixe a honra de reger as minhas ações.

Com esta admirável despedida tornou Belino triste, e aflito a continuar o seu caminho, e trabalhos, sem mais esperança, ou companhia que a razão, e o decoro, que o encaminhavam a temer justamente os homens, e seus venenosos enganos.