Aventuras de Diófanes/VI

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Continuando Climinéia, e Hemirena a caminhar ainda como Delmetra, e Belino, conforme costumavam, se recolheram a um bosque, onde acharam a Diófanes, que se lhes deu a conhecer, e com inexplicável alegria continuaram a viajar juntos; e estando para concluírem as suas jornadas, se encontraram com Arnesto, que fazendo completo aquele gosto, foram todos para Tebas. Os tebanos com infinito prazer festejaram os seus soberanos, e Arnesto se recolheu para Delos com sua consorte Hemirena, que com iguais demonstrações de afeto, e contentamento foi recebida, e principiaram nos descansos a colher os frutos de tão agigantados trabalhos.}}

Tendo caminhado Belino, e Delmetra com o vagar, que requeria declinação de forças, que lhe faziam sentir os anos, e trabalhos, pois ou já violento o espírito o animava, ou as destruídas forças não a deixavam andar mais, que muito poucas horas do dia, uma tarde se recolheram a um delicioso bosque, onde determinavam demorar-se, vendo-o agradável, e solitário. Sentadas junto a uma fonte, que docemente corria, recordavam seus passados infortúnios; depois de noite sentiram um rumor, como que da espessura saía uma grande gera; ouviram uma voz suave que cantava os louvores de Ceres, e Pomona, que fertilizam a terra; as glórias de Astréia, que sustentara a justiça; a origem de Minerva, que com sua sabedoria vinha a instruir os mortais; os cultos de Diana, que castigou a Acteon; e os horrores do Reino de Plutão; e querendo fugir de um vulto, que vinha buscando a fonte, foram sentidas, e lhes disse aquela fantasma com voz alta, e rouca: Quem sois, que a esta hora vos atreveis, a entrar na minha morada sombria? Não se animaram a responder-lhe, porque de medo quase perdiam os sentidos, pois entre as sombras o mais que podiam ver era um vulto preto, que lhes parecia ser de espantosa estatura, e que em uma das mãos trazia um curvo cajado; depois de um pequeno intervalo, continuou em cantar os sustos de Galatéia, que desdenhava a Polifemo; a desgraçada morte de Pocris, a quem Zéfalo tirou a vida, e os receios de Siques, tendo em seus braços Cupido, e finalmente invocava a poder de Júpiter, queixando-se dos homens; assim chegou à fonte, e encostando-se a uma pedra, adormeceu.

Quando o princípio do dia desterrava os horrores da noite, viram (daquela distância para onde se retiraram) um homem todo coberto de peles de ursos, menos os braços, que tinha nus, crespa, e branca a barba, e de aspecto venerando: muito devagar chegaram a vê-lo; e quando observavam a muita semelhança, que tinha com Antionor, despertou, e assustando-as com o repente de se erguer, não as deixou fugir; e fazendo um pequeno reparo em Delmetra, lhe disse: Esposa amada, que favorável acaso te conduziu aos meus braços? Graças a Júpiter soberano, que chego a ver-te sem as prisões, que me obrigavam a negar-me ao teu conhecimento. Delmetra emudecida de gosto ficou por alguns minutos, sem que a sua alegria se explicasse, e só com demonstrações de imenso prazer se saudavam os amantes consortes, até que Belino, lançando-se aos pés de Antionor, ou Diófanes: Aqui tens, Senhor, (lhe disse) a tua filha infeliz, que os Deuses compassivos, depois de tão repetidos trabalhos, encaminharam impensadamente à tua presença. Diófanes tão gostoso, como admirado, advertindo ser Hemirena o chamado Belino, parecia que em seu peito não cabia prazer tão desmedido; e olhando para a consorte, e para a filha, mostrava não dar crédito à grande consolação, que estava recebendo. Depois de dar graças aos Céus, por tão especial benefício, disse a Hemirena, lhe contasse os sucessos de sua peregrinação. Ao que respondeu até o tempo, que na gruta fez liga com Climinéia ignorando os vínculos da natureza. Climinéia lhe disse desejava muito saber, como se tinha livrado da morte? Já sabeis (lhe respondeu Diófanes) os trabalhos, que padeci por acudir ao bem público, e boa administração da justiça. Também não ignorais quais sejam os inconvenientes, que se seguem a ser o Rei frouxo, e de ânimo inconstante; os Deuses me livraram da morte por uma guarda, que afetando compaixão, me pôs em liberdade, jurando-lhe eu pelas frias águas da Estígia não ser visto, e guardar sempre o segredo, de como tivera liberdade naquele Reino. Passando às vizinhanças daqueles domínios, uma fresca madrugada, querendo refrigerar os ardentes efeitos do cansaço, cheguei a uma fonte, e juntamente uns serranos, que falando em mim, sem me haverem nunca visto, me contaram a minha mesma história; tendo eu levado impresso na memória aquele, que me livrara com tão rara compaixão, cheguei a conhecer que tudo foram máquinas da maldade, para se não averiguarem as falsidades, com que me queriam tirar a vida; e como agora já nos favorecem tanto os altos Deuses, parece que com este mimo querem mostrar-nos, que se aplacou a sua indignação.

Assim continuou Diófanes os mais dias, que tomaram para o descanso, pois com a sua agradável conversação divertia a consorte, e filha, por quem tanto havia suspirado, e as fazia ouvir os deliciosos frutos dos bons documentos, e gozar com alegria o mimo das flores: entoavam suavemente as três vozes os louvores da primeira causa de todas as coisas. Climinéia lhe contou os trabalhos, de que fora perseguida no largo tempo da sua ausência, dizendo: já em Corinto ouviste meus estranhos infortúnios, e agora direi, como depois de Hemirena me persuadir a deixar as brenhas, fiamos as vidas à rústica sinceridade, e ficamos em uma aldeia, servindo a uma serrana, que me encarregou o cuidar de sua mãe velha paralítica, e a Hemirena os seus rebanhos. Ali recordamos quanta semelhança tem com os bem aventurados campos do descanso o saudável retiro das montanhas; a maior parte daqueles rústicos viviam de seus gados, e colheitas, e eram de gênios dóceis, compassivos, livres de malícia, e naturalmente alegres; as mulheres tinham amável sinceridade, eram honestas, e cuidadosas. A proporção do conhecimento, que, iam tendo de nossos gênios, crescia o afeto, e respeito, com que nos tratavam, e em nós a compaixão de sua mal empregada rusticidade, porque, desejavam acertar, e não era invencível a sua ignorância; as horas, que são destinadas para o descanso em alguma parte do dia vinham buscar-me para uma sombra perto da minha assistência, onde as Pastoras cantavam as mais inocentes canções, e os Pastores alegremente prosseguiam em tocar os seus rústicos instrumentos entre as flores, e fragrâncias, que difundem a primavera, assim me lisonjeavam, para que os instruísse no conhecimento do quanto é feliz a vida rústica; uns discorriam sobre o Favônio agradável à vida humana; outros com termos próprios, e inocentes figuravam as fadigas, de quando a terra sequiosa espera que o inverno a satisfaça; outros com mais engenho discorriam nos frutos, com que o outono enxuga o suor dos lavradores; e outros com mais graça se lembravam, de como no inverno se recolhiam molhados, e descansando ao fogo, cantavam em desafio; assim se regozijavam com o gosto do que é mais admirável nas obras da natureza. Eu instruía as donzelas a contemplarem na modéstia, e recato, dizendo ser nelas tão igual a glória da sisudeza, quanto prejudicial, e desprezável qualquer descuido; às outras advertia, que a mulher, que mais estimação merece, é a que menos faladora se ostenta; porque os mesmos, que celebram as graças, e desembaraço, as murmuram de chacorreiras; e que é tão delicada a nossa gravidade, que não só devemos conservá-la nas obras, e em não falar o indecente, mas em não admitir a conversação do ilícito. Acabado este melhor divertimento, iam continuar o seu trabalho, e eu me recolhia a ver minha enferma. Hemirena na fresca madrugada saía com seus rebanhos, e cantando suavemente, louvava a sabedoria ditosa, que interrompeu a glória dos delitos, as virtudes dos heróis, e a sublime grandeza dos Deuses; acudiam a ouví-la as pastoras, que também cantavam com agradável singeleza, e as instruía para entenderem as poesias heróicas, em que se exercitava.

A bela Atília, filha de Leda, a quem servíamos enganada pela gentileza da que supunha ser Belino, lhe comunicou amantes pensamentos, determinaram com ela seus desposórios; e como eu não era sabedora daquele disfarce, Hemirena me comunicou o que se lhe havia dito, dizendo, que recusava a aceitação daquele favor, porque não queria sujeitar a liberdade aos contínuos cuidados do consórcio; e que para se livrar do perigo, a que podia condizí-lo a afto de Atília, seria conveniente fazer um retiro repentino; o que executamos logo aquela noite, deixando o amável sossego, antes que o amor tomasse mais forças.

Com os costumados incômodos de fugitivos fomos até Esparta, onde Hemirena, por entrar em um jardim, foi lavada para servir na campanha dos Corintos, a quem os Espartanos ajudaram antes do sítio (que os fingimentos ainda quando são precisos, não deixam de dar trabalho), daqui por diante sabes o que passamos, até que fomos presos. Eu te não tinha conhecido; e quando Hemirena me disse quem eras, o que ela também não saberia, se lho não dissessem os bárbaros Ministros de Corinto, novamente chorei os nossos infortúnios; e Hemirena conhecendo as maiores razões, que lhes acresciam para valer-me, conseguiu por um escravo a minha liberdade; passamos alguns dias sem descanso, nem alívio, chorando sempre a tua morte; embarcamos com o projeto de buscar-mos a pátria, pois já não tínhamos esperança de que tu nos buscasses; e como por ter estado Hemirena em Atenas era preciso que tivéssemos grande cautela, fazíamos aquele embarque para mais depressa fugirmos aos cuidado, e susto, com que ali devíamos estar; um naufrágio me conduziu a um lugar, onde perdia a esperança do socorro; mas como Hemirena havia escapado, me tirou daquele sítio infausto, onde os esqueletos da morte eram fiéis espelhos da minha pouca vida; continuamos no antigo projeto; e quando temíamos o que em ti se nos representava, e recordávamos os nossos contínuos infortúnios, o conhecer-te parece que acabou de afugentar a desgraça.

Assim acabou Climinéia a sua larga história, e Diófanes determinou com a Hemirena contasse o que lhe tinha sucedido, ao que obedeceu com a graça, e suavidade, com que costumam explicar-se; e muitas vezes os pais com lágrimas de sólido gosto ouviam como a filha se desembaraça de lances apertadíssimos. E acabando a narração de tantos trabalhos, e combates: Os Deuses te defenderam (lhe disse Diófanes) e têm tomado à sua conta a nossa felicidade; eles jamais desampararam aos que sabem glorificar as suas obras. Quem dissera, que esperando eu neste lugar solitário, que a cada instante me chegasse o último trago da morte, me esperava o primeiro prazer da minha vida?

As lágrimas, com que a ternura explicava o seu incomparável júbilo, não davam lugar a continuar com a expressão das palavras: e com a mais elegante frase de um brando coração dizia com os olhos, o que para expressar não chegam a dizer os termos. Depois destes primeiro efeito do gosto, se lembraram de Almeno, que falecerá no combate, e do que haveria discorrido Arnesto sobre a sua desgraça; que não pode haver tão seguro contentamento, que não envolva alguns pesares. Principiavam a caminhar determinados a embarcar, quando chegaram ao porto conheceram ali Albênio, que tinham deixado nas praias do naufrágio; fizeram sociedade aquela noite, em que ele fez as maiores expressões de contentamento a Diófanes, contando-lhe como devera a vida ao que supunha ser Belino, Climinéia, e Hemirena, lembrando-se de seus trabalhos, suspiravam por concluir aquela parte, que lhes faltava para chegarem a Tebas. Albênio, que não podia já encobrir os efeitos da mágoa, deixou cair algumas lágrimas, dizendo: Não seriam tão grandes os vossos trabalhos, não sendo tebanos; eu choro, e poderão corresponder a menor parte dos meus, mas serei contente, se os Deuses se servem do meu sofrimento. Diófanes cheio de curiosidade, que originaram estas palavras, lhes fez diversas perguntas: e vendo que Albênio lhe não respondia a algumas, como o que o oprimia o receio; não temais (lhe disse), ó Albênio vedes, pois sou um desgraçado, que indo a ligar-se com um dos vosso país, fui reduzido a este estado; e como não foi tão forte a pobreza, que pudesse arruinar aquele ânimo, que ainda conservo, se buscais abrigo, eu juro aos Céus amparar-vos, se me restituírem a Tebas. Albênio, mudando inteiramente de semblante, lhe disse: Vós sereis acaso algum dos da comitiva do infeliz Diófanes, que há mais de quinze anos, que foi entregue aos bárbaros? e entendendo-se que fora sepultado nas cavernas do mar os primeiro oito, não fizeram os seus vassalos e confederados mais que chorar a sua desgraçada morte; e depois de se passar todo aquele tempo, havendo indícios de que era vivo (pelo que descobria a sua alta capacidade, sabedoria, e virtudes), se espalharam alguns a buscá-lo. Eu sou (lhe respondeu) o mesmo Diófanes, que depois de tantos anos de letargo, torno a mim, pois já me considero em Tebas, onde há muito poderia estar, se tivera notícia de Climinéia, e Hemirena, que sempre buscava saber, onde as tinha a desventura, para me retirar, e tornar sobre os Argólicos, que mais deveriam fazer entregar, satisfazendo-se como o próprio sangue tão avultadas injúrias. Albênio, dando-lhes os braços, disse: Agora vejo as nossas culpas foram semelhantes na presença dos Deuses, ou estes igualmente nos amam, pois com iguais trabalhos nos purificaram, para que víssemos renascer também aqui igual a nossa esperança de facilidade. Diófanes, que com a maior suspensão ficou admirando o que podiam conter estas palavras, e não conhecendo Arnesto pelo muito, que estava quebrantada a sua gentileza, que também destruíam algumas cicatrizes, deu lugar ao reparo de Albênio, que continuou, dizendo: Como não conheceis o infeliz Arnesto? que depois de haver chorado uma perdida esperança, entendendo (como todos) que a tormenta do infausto dia e vosso embarque vos teria dado no mar a sepultura, sabendo que em Esparta havia quem dava notícias vossas, e que vos acháveis com vossa família em uma cruel servidão, fui consultar o luminoso Deus para sair a buscar-vos, o qual me respondeu, como Júpiter, quando saíste paras Delos, conforme se divulgou: vai, que o silêncio, e a fortaleza te hão de dar a vitória. Ajudando mais esta causa a meus bem nascidos extremos, para oferecer de cada vez mais vivos sacrifícios, embarquei em Atenas encoberto, indo para Esparta; como os que a impulsos de seu amor desprezaram as vidas, deixaram as pátrias, e abandonaram Impérios: cheguei a Esparta, onde gemiam os povos oprimidos com uma cruel fome, e peste. Achava-se aquele porto guarnecido de gente, que indo logo às embarcações, alistavam a todos os que vinham por seus nomes, e pátrias; quando foram à minha, perguntaram, donde eu era o Antreo, meu especial confidente, que lhes disse era Cretense; e principiando a desgraça a tomar-me os passos com fatalidades, apenas o ouviram, trataram de meu desembarque, e me levaram a Palácio com festivas demonstrações, acompanhado de sonoros instrumentos, e inumerável povo, que cheio de alegria se regozijava, dizendo que estavam acabadas as suas opressões, pois dissera o oráculo, que a fome, e peste se aplacaria com o sangue dos que tinham levado a peste, e que este enigma acusava três Cretenses. Neste cruel conflito invocava eu continuamente os Deuses, para que me inspirassem o salvar a vida. Cheguei à presença da Majestade, que com agradável soberania que disse:

Gentil Cretense, a quem os Céus haviam destinado para salvar ao meu povo, os do teu país trouxeram peste a Esparta; e tendo amanhã sacrificado, nos deixarás saúde, fazendo caminho para os Eliseos bem aventurados, pois foste aqui mandado para vítima de tão importante sacrifício. Não se verificam em mim, Senhor, (lhe disse) os Cretenses, que esperáveis, pois conforme o que dizeis devem ser três. Os Deuses (me respondeu) costumam servir-se de que os mortais dêem princípios a abrandar a sua ira; e como há dias, que observamos que os Céus com auspícios felizes anunciam o nosso remédio, não venha a covardia a disputar-te o merecimento. Vede, soberano Senhor, (lhe repliquei) que os Deuses não só se não servem deste sacrifício, mas com ele será mais crescida a sua indignação, pois são obrigados a defender-me; e que não basta que um astro me esteja prognosticando a morte, e que outros muitos me vejam com igual aspecto, se ao mesmo ponto as Estrelas desconhecidas com opostas influências destroem os que à morte me conduzem. Qual seria a glória de grande Tebas, se não nascera um Epaminondas, que soube melhor livrar de opressões ao seu povo; e se acaso determinais que se execute essa crueldade, vos juro pelos Deuses benignos, que se há de conjurar contra vós os Céus, e virão sobre vós os raios, que forjou Vulcano, para que vejais que o meu sangue não só não aplaca, mas aumenta a sua ira. Estas palavras ouviu o Rei, como que lhe faziam impressão, e mandou aos guardas, que me recolhessem: toda a noite se ouviram vozes acompanhadas de suaves instrumentos. No dia seguinte me foram revestidos para aquele ato, e me levaram para o Templo de Júpiter, onde já se achava inumerável povo, e o Sacerdote venerando, que devia fazer o sacrifício. Em chegando o soberano, não pôde Antreo, suporta aquela violenta dor, a que excita a verdadeira amizade, e lhe disse: Não permitam os Céus, que a minha culpa entregue à morte a Albênio. Eu fui, Senhor, o que disse, que ele era Cretense, eu por ele me ofereço ao sacrifício, não só amigo, como Teseo, mas por ter faltado à verdade, conhecendo ser a minha vida tão inútil, quanto a sua precisa; e assim juro na presença se Júpiter soberano que não é Cretense, como eu disse. Mandou-me perguntar, quem eu na realidade era, donde vinha, e se haveriam ali testemunhas da minha verdade. Ao que respondi em alta voz: Sacro Nume, vós que sabeis que não sou Cretense, que é preciso que eu gire o Mundo em baixa fortuna, sem delito algum, que me acuse, de que não devo descobrir quem sou, que decência soberana me ensinar a calar, a não temer à morte, e a sofrer contratempos, acudi pela verdade, pois sois a melhor testemunha do que sinto, e do que digo. Todo o povo principiando a inquietar-se fazia um tal rumor, que muito me afligia: o Rei, e o Sacerdote estavam suspensos, não sabendo resolver-se. Pouco a pouco foi o Céu cobrindo-se de feias nuvens, que parecendo determinavam acabar o dia, com infinitos relâmpagos, e raios ameaçavam aqueles tiranos. Vendo eu que os Céus se dispunham a favorecer-me, disse: Povo obstinado, como não temeis as vozes dos Céus, que repreendem o que determina executar em mim a vossa inqüidade? Eu não sou Cretense: mas se quereis tirar-me a vida, acabai com meu tormento, pois tenho menos que temer na morte, que vós nos novos castigos, que sentireis. A estas palavras respondeu o Céu com um raio, o qual caindo pouco distante do Templo com as ruínas, feriu três homens, que banhados em sangue, recolheram a ele, porque com balbuciantes vozes pediam que os levassem ao Sacerdote. Sacro Ministro, (disse um dos três moribundos) aqui como nos negávamos a este ato de piedade, principiaram os Céus a executá-lo. Oh povo feliz! que os Deuses se empenham pela tua tranqüilidade!

Assim rendeu aquele os alentos, tendo já acabado os outros, que ali chegaram com poucos vestígios de vida. E inexplicável a admiração, com que todos estavam em caso tão novo, que lhes acendia a curiosidade de indagar quem eu era. Com festivas demonstrações me levaram outra vez a Palácio, onde fiquei, e uns me veneravam, e outros me contemplavam. No dia seguinte me disse o Rei: E tempo, amigo, de me confiares quem és. Eu sou obrigado a favorecer os teus desígnios, e quero conservar a tua amizade, pois vejo que os Deuses te ouvem, e os Céus te defendem. Sou obrigado, senhor, (lhe respondi) a não revelar o segredo, que me tirou do meu país, e espero que não duvideis da pesada obrigação, que mo recomenda. Deixou a empresa, e com demonstrações iguais me tratou o mês, que ali me demorei.

As gentes respiravam já aliviadas, e me reverenciavam, tendo as minhas reflexões por predições infalíveis. Quando vi que já não existia ali quem desse notícias vossas, me ausentei, embarcando para Argos; e era tal a impaciência, com que vos buscava, que em cada minuto me parecia ver extinto o sofrimento, que há esperanças, as quais nas dilações falsamente chamam enganosas. Assim fui sem temer opostas contradições, como o Ateniense Codro rompia esquadrões contrários, buscando a morte; lembrava-me que não sem mistério o meu Nune consentira, que me ausentasse da pátria, pois que as plantas se fazem admiráveis transplantadas; e recordando a sua resposta, que me recomendava o silêncio, e fortaleza, que se figura na pesada coluna, que nos sanguinolentos assédios; antes que se largue, se perde a vida, saí com as mais constante resolução. No segundo dia de viagem uma densíssima névoa nos ocultou o rumo, e depois de alguns dias de contínuo susto deu a embarcação sobre a areia, pois não houveram forças, diligências, ou clamores ao Céu, que nos livrassem daquele perigo, de que só escaparam cinco pessoas. Quando vi que dos criados, que me acompanhavam, só existiam Antreo, e Arcidas, lamentava com a maior mágoa ter sido eu a causa de sua desgraçada morte, e que talvez que os Deuses já se ofenderiam de meus amantes excessos. Quisemos ver onde estávamos, e nos achamos em uma terra montuosa, de que não tínhamos conhecimento; fomos entrando por seu espesso arvoredo, e topamos com gente agreste, e tão inculta, que se sustentavam de caça, e frutos silvestres; abrigavam-se em mal armadas choupanas, e viviam em contínua guerra entre si; os primeiros chegaram com fúria a nós, perguntando quem nos dera licença para irmos ali. E como a sua rusticidade entendia melhor, lhes disse, que tivessem compaixão de nossa desgraça, pois havíamos naufragado, e buscávamos remédio à fome, que nos maltratava. Ao que responderam, que quem ali entrava, ou jurava viver com eles, ou logo se lhe dava morte, pois não queriam que sabendo-se de sua livre habilitação, fosse algum Rei avaro inquietar a sua liberdade, a qual não estavam em estado de defender; eu lhes segurei que viveríamos com eles, ao que me obrigou a falta de armas, e de mais alguma gente. Sem consolação chorávamos o nosso desterro, pois não víamos meio algum, que nos desse liberdade, e com ardentes suspiros me magoava da belíssima Hemirena, vendo castigados os delítos de buscá-la, não sabendo merecê-la; assim passava sem esperar mais alívio, que a morte. A preguiça daquela gente era incomparável; e como a da ociosidade não só se geram os vícios, mas se alimentam moléstias cogitações, Arsidas, e Antreo se ocupavam em tirar a lã de algumas peles, de que eram ali quase todos os vestidos; e os outros, conforme puderam, a ensinaram a fiar às mulheres: eu me aplicava em tristes poesias, e curiosas experiências das plantas, águas, e frutos, que faziamos recolher em estado de servirem de alimento, quando pelo rigor do tempo costumava padecer aquela agreste gente. O trigo, que só recolhiam do que no ano antecedente caía pela terra, guardávamos; e semeando-o no seguinte, a fertilidade o tornava com tanta abundância, que o repartíamos com os vizinhos, que também assim aprendiam. Desta sorte fomos fazendo vida com os pesares, e conciliando tão suavemente aqueles ânimos, que no segundo ano de sua tristíssima companhia já me ouviam com respeito, e me buscavam para tirar as dúvidas, que sempre tinham entre si; e como eu lhes ia fazendo saber quanto é importante a sujeição da gente, que é doméstica pela razão, se foram persuadido de ser mais conveniente sujeitar a uma cabeça, que ponha as outras sem ordem, que terem todas a maior desordem na mesma liberdade absoluta.

Já as mulheres fiavam, e teciam, e tinham gosto de se ocuparem em úteis curiosidades, aborrecendo a antiga ociosidade. Nestes melhores produtos da minha desgraça tinha eu por certo não teriam fim os meus suspiros; e ainda que ali muito me amavam, não havia dia algum, em que eu não procurasse mover a compaixão dos Céus, que viam meus internos sentimentos. Conhecendo aqueles bárbaros os danos da sua liberdade, me buscaram uma noite, e todos ao mesmo tempo queriam dizer-me, que me queriam obedecer, pois me escolhiam para seu Rei; eu lhes resisti a tão pesada incumbência, porque sabia quais eram os seus inconvenientes, e lhes disse: Já que assim vos ofereceis à sujeição, amando tanto a liberdade, não é razão que sejas por mim enganados, pois é certo que só o engano costuma trocar a seu gosto a ordem de todo o evento, a série da idade, e os nomes dos heróis: se entendeis ser este o maior obséquio, com que me agradeceis o ensinar-vos a viver, sabei que se não modera o rigor da contrária fortuna para com aquele, que vive exposto a seus furores, se não ordena essa esfera luminosa, que eu experimento inimiga, sendo obrigado a sofrê-la; e que o motivo cruel das paixões, que fizeram assento em meu desgraçado peito, é e será sempre o único objeto de meu emprego, e que a tormenta de violentos afetos é só o que pode agitar meus tristes espíritos, que para todo o mais exercício estão enfraquecidos. Para se efetuaram vossos justos intentos, careceis de eleger entre vós um sujeito de espírito ilustre, que não sustente o orgulho da soberba, que despreze os iracundos; não alimente as chamas do amor nocivo, que aborreça a vingança; que tema os Deuses, e seja capaz de sustentar a justiça, e amar a clemência, aconselhando pela indústria, que costuma emendar, desprezando os erros, e louvando os acertos; que assim como é objeto das Musas no louvor dos merecimentos convidar a merecê-lo, também há culpas, que de intentar pela violência a sua emenda sucede que em lugar desta se acham maiores ruínas. A virtude costuma ensinar agradavelmente, pois é instrumento oportuno para separar o verdadeiro do falso; e fazendo-se árbitra dos corações, empenha os afetos a obedecer docemente, e assim pelo melhor caminho encaminha, para que o bom não se oprima, nem o indigno se exalte; e levando a habitar com os Numes, a quem dá forças a favor dos costumes ajustados para triunfarem da maldade, o faz que a fortuna ampare aos que não são dominados pelo ócio; pois não pode haver sagrado, que resguarde, a quem a malícia dos ociosos não corrompa: eu conheço que errais no conceito, que formais de mim; e ainda que do louvor injusto alguma vez nasce a mais vigorosa virtude, porque excita a merecê-lo, sempre o deve temer a cautela; porque é tão venenosa a lisonja, que com seu doce encanto penetra os corações, tirando-lhe o conhecimento do muito, que é conveniente o aborrecê-la, e com extraordinária atividade se faz ofensa, que agrada, e engano, que alegra ainda aos mesmos, que o conhecem.

Se quereis viver em paz, ter forças, engenho, fama, e respeito, pedi a Astréia, que vos inspire o que deveis eleger, não vos deixando ao arbítrio da fortuna, que iníqüa, e desigualmente costuma repartir, ainda que também seria danosa a igualdade entre as gentes; porque o que entendemos ser a origem do ódio, e inveja, é o que quase sempre mais fortemente nos liga; porque o muito, que uns dependem dos outros, faz que seja necessidade o nosso afeto, pois carece o forte do sábio, para que o ajude; o sábio do forte, para que o defenda; o pobre do rico, para que o sustente; e este do pobre, para que o sirva; e do que parece interesse nasce a união, porque os créditos, a fé, a paz, e amizade de tais princípios se gerem; e assim como os elementos são entre si diferentes, também somos entre nós discordes; mas desta mesma diversidade se deriva a concorde harmonia, que com a eterna lei da razão nos conserva, e rege, não obstante o fazer-nos a desigualdade réus, loucos, e infelizes; réus, porque o alheio desejamos; loucos, porque entendemos merecer mais do que possuímos; e infelizes, porque não amamos a verdade, e nas adversidades acusamos a natureza, e o Mundo, porque aos nossos danos se conjuram; o que nasce de nos persuadir o amor próprio, a que nos são dívidas as prosperidades; mas este amor, que é assim indiscreto, seguindo o rumo da razão, é a fonte mais limpa de honestos desejos, pois quem a si não ama, a quem poderá amar? Do próprio amor bem ordenado nasce aquele afeto, que propaga tanto, que passa à prole, à pátria, à amizade, e aos conjuntos, o qual em seus motos se alarga; como quando na água se lança a pedra; formando um círculo, outros muitos se lhe seguem; que ainda que o primeiro seja o maior, sempre é tão igualmente nobre, que adorna o espírito; e quanto mais se alarga, tanto é no racional mais próprio. O ódio, a ria, a inveja, e outros afetos são os que nos fazem perversos, e de que nascem as desordens, que nos escondem o mais seguro porto, profanado o tribunal de Astréia, a escola de Minerva, e a palestra de Marte, mas assim como estes afetos com a soltura nos condenam, seguindo-se o rumo da razão, tudo é tranqüilidade, e mais esplendores da virtude, não sendo assim impossível que o homem viva contente da sua sorte, porque aos excessos opostos sabe conservar em paz, e ensinando a tolerar desigualdades, dilata os ânimos, ordena o amor, mostra o semblante da mentira; a maligna inveja, que com a compaixão quer esconder-se, a covardia, a que chamam prudência, a vingança tida por zelo de honra, e o ardil temerário, que como valor se aplaude, pois não há forças para separar os vícios da virtude, se não levam as luzes da razão, que sabem mostrar os danos, corrigir os blasfemos, amparar inocentes, castigar atrevidos, pagar bem a quem serve, defender a verdade, e guardar fé aos amigos. Esta insígne mestra de acertos tanto me assiste, como a vós, para elegerdes outro, que faça estudo de muito bem vos governar. Pois que mais vos pode enganar a pouca experiência, que de mim tendes, que a dos que nasceram dos que entre vós morreram.

Os que por geração, ou doutrinas descendem de Catão em Atenas, de Licurgo em Lacedemônia, e de Agesilau em Licaônia, são privilegiados não só pelo que merecem os vivos, como pelo que obraram os seus, que já são mortos, porque as suas gloriosas memórias são vivos despertadores, que os excitam às heroicidades; e ainda que o blazonar do que obraram os próprios antigos seja vaidade, e das próprias façanhas loucura, o blazonar destas é sofrível, e das outras só tem lugar, se servem de estímulo para os acertos, renascendo os novos créditos dos antigos; porque o trazer sempre à memória o descender de bons, e ser mau, é infâmia, e maior glória o ser bom, havendo herdado as virtudes; assim com os que têm ânimo para não fugir, generosidade para dar, moderação no falar, e clemência para perdoar são os que se habilitam para dignamente subirem ao trono, dos quais deveis procurar em entre os vossos nacionais para vos reger, porque são grandes, e algumas vezes irreparáveis os danos que se seguem de ser o Soberano estrangeiro: buscai quem seja capaz de conceder grandes pensamentos, e tenha constância para os pôr em execução. Dizeis que minha sabedoria é só capaz de governar-vos, a isto como um sábio vos respondo, que não sei cousa mais certa, que saber que pouco sei. E certo que os que na verdade são sábios, costumam atrair a veneração das gentes; porque sempre neles resplandecem as luzes, que por virtude de suas obras não pode apagar a morte; pelo que é tão lamentável nos sábios, como a vida nos néscios, o que nos ensinou Demóstenes, quando o tirano lhe perguntou, por que chorava a morte do Filósofo? sendo-lhe impróprio o chorar. Ai que lhe respondeu: Não choro que de Atenas mais choramos a vida doa maus, que a morte dos bons.

Vós venerais em mim as ciências, que não tenho, e as virtudes, que não exercito, quando é tão arriscada esta aparência, quando seguro tê-las, sem que pareça. Os homens naturalmente são mudáveis nos desejos, vários nos pensamentos, inconstantes nos propósitos, e nos fins indeterminados; pelo que sendo fácil entendê-los, é difícil o conhecê-los; e os que correm Mundo, lamentando descuidos de sua fortuna, se vivem de si descontentes, como poderão ser constantes em contentar os estranhos, pois não suspiram mais, que serem restituídos com honra ao seu país; porque a fortuna é mais cruel com aquele, que não deixa gozar o que tem, que com o que não tem que lhe pede: mereça-vos enfim a compaixão de um desgraçado, que o não façais reduzir aos erros, que costumam introduzir-se nas Cortes, onde as notícias ordinariamente são falsas, as amizades fingidas, sem termo as vaidades, as esperanças enganadoras, e as invejas contínuas; os que mais se visitam, pior se tratam; os que melhor se falam, pior se querem; buscam-se os que fogem, e menos que se paga a quem melhor serve; mas não obstante estes erros da Corte, são maiores os que devem obrigar-vos a buscar quem vos governe; porque não há superior, não há lei, sem esta não há justiça; se não há justiça, não há paz; e onde não há paz, tudo é guerra, e desordem: a autoridade, o poder, e a grandeza do Soberano é a escola de bons exercícios, e é centro de vícios o lugar, que é sem senhor. Não entendeis que eu me escuso à pesada carga de cuidados, desvelos, e mais trabalhos da Majestade, pois sei que não devo voltar a cara aos perigos; e desconhecendo o medo, sempre me lisonjeio dos que fazem maior vulto, e sei que não é alvo dos empregos do magnânimo o buscar aplausos às suas heroicidades, porque para os acertos só busca o ponto de cumprir com o que deve, cuidando mais em merecer, que conseguir louvores, assim com o não viu Aquiles o luzido trono, porque só atendia as suas conquistas.

Com estas, e outras escusas, e reflexões passamos toda a noite; e fazendo repetidas instâncias à minha renitência, se foram desconsolados, deixando-me ainda mais para temer novas prisões da minha tristíssima vida; mas foi inútil toda a minha repugnância, porque muitos dias, noites em disforme alarido procuravam persuadir-me, dizendo que o estranho sucesso de meu naufrágio lhes advertia, que os Céus me mandavam para os governar, e que eu havia de amparar seus desejos, pois lhe insinuara os admiráveis efeitos da sujeição. Com estas, e muitas outras mais razões me obrigaram a dizer-lhes, que lhes faria leis, a que obedecessem, e conforme elas tomariam seu acordo. Com grande alegria aceitaram este princípio do meu tácito consentimento; conforme pude, e me ocorreu, as escrevi; e quando se ajuntaram a ouví-las, com incrível consolação se me lançavam aos pés. Passados os dias, que lhes disse tomassem para se consultarem, vieram buscar-me para o pequeno palácio, que lhes ensinaram a fazer os meus, e outros, que (como nós) desgraçadamente ali se achavam. Com muitas demonstrações festivas me levaram primeiro ao seu oráculo, que era dedicado a Nemesis, e com seus rústicos instrumentos me ofereceram aquela deidade, e lhe sacrificaram cândidas vítimas; em Palácio me esperavam as mulheres, e filhos menores com repetidos vivas, e a proporção do afeto, e respeito, que me tinham crescia a minha obrigação e se aumentava a dor, com que nem lembrava, quanto eram diversos os fins, para que eu encaminhara os meus primeiros passos, e com lágrimas, que eles julgavam expressivas de ternura, exalava pelos olhos a mais viva saudade naqueles produtos de uma perdida esperança.

Assim tomei aquele encargo, a que não pude escusar-me, com a condição de que em os governando quatro anos para os pôr em ordem, largaria o governo a quem eles elegessem; e que acabando o subseqüente, me deixariam retirar. São inexplicáveis os admiráveis efeitos da união, pelo que observei no decurso de tão limitado tempo, todos se aplicavam com o maior cuidado aos empregos, que entre eles reparti: fiz que se transportassem a viver juntos a um delicioso porto de mar; e principiando a chegarem ali embarcações, os enriqueceram de artífices, levando os deliciosos frutos do mar, que a terra fértil lhes dava agradecida à cultura, que principiava a experimentar. Passo por muitas, e admiráveis circunstâncias daquele prodigioso tempo, porque não quero que o incompatível gosto de comunicá-lo degenere em incômodo vosso. Diófanes, que com sua amada consorte, e filha ouviam a Arnesto com inexplicável prazer, não lhes parecendo dilatada a narração daqueles sucessos, lhes rogaram continuasse em dizer-lhes, como se tirara de tão suaves prissões, e deixaria o resto de seus trabalhos para o dia seguinte. Passados aqueles anos (continuou), foi eleito Antreo, que sem dúvida tinha as mais próprias qualidades para a dignidade Real; e conforme havíamos ajustado, consentiram no meu retiro tão magoados, como conformes: eu me regozijava de meus trabalhos, vendo-os sociáveis, laboriosos, aplicados, e concordes. Antreo logo despediu os moços mais capazes a girarem o Mundo, uns para aprenderem costumes, e línguas, outros Naútica, outros as Ciências, outros a Milícia, e outros as Artes mecânicas.

Para comerciarem com honra, e felicidade, eu lhes havia introduzido o horror à mentira, ordenando que pela primeira vez, que faltassem à verdade, fossem advertidos; pela segunda privados de a metade dos seus bens, que se aplicariam às despesas das escolas públicas; e pela terceira perderiam tudo para o cofre do comércio, ou companhia, obrigada a defender aquele porto com a proteção Real, sendo proibidos de comerciar e tidos por indígnos de sociedade, e só se lhes permitiria agenciar de que se sustentassem em empregos vis. Naquele breve tempo lhe havia feito principiar Colégios para os distintos, pois sem eles não florescem em ciências as Monarquias; e também escolas para os inferiores, cujas distinções tinham princípio, conforme os talentos, virtudes, aplicação, valor, e fidelidade; e Antreo, seguindo as mesmas máximas, mandou conduzir Mestres dos outros países. Quando me despedi no Templo de Minerva, e no de Apolo, que foram as minhas primeiras empresas, lhes disse com lágrimas, obrigadas às muitas, que derramavam: Sabei, amados vassalos, que não sou ingrato em deixar-vos, pois devo ir honrar o próprio terreno, pelo que é preciso de que de vós me aparte: rogai aos Deuses, que me encaminhem, porque se achar o bem, que busco, vos saberei dizer quem sou; e como o afeto, com que me tendes tratado, fez liga ofensiva, e defensiva com a minha obrigação, tereis sempre, como amigos, a todos os que me seguirem.

Quando os casos forem mais que as leis, e máximas, que vos dei, lembre-vos que são tão limitadas as providências humanas, que ainda que muito discorramos, não se podem prevenir todos os eventos futuros; porque a idéia, que buscamos para estabelecer fortunas, muitas vezes em desgraças se transforma, no caminho da prosperidade se encontram adversidades, de alguns conselhos acertados observamos sucessos repreensíveis; o que trabalhamos pela paz, muitas vezes fomenta a maior guerra, pois só as determinações do Céu são inteiramente perfeitas; e tende diante dos olhos, que se alguma vez erra quem se aconselha; raríssima vez acerta o que só pelo próprio juízo se governa.

Lembrai-vos que os sucessos humanos seguem os passos do tempo, e que este como não é estável não são aqueles seguros, nem duráveis; assim o homem é naturalmente mutável, porque de alegre passa a estar triste, de pacífico a irado, de apetecer uma cousa a amar logo a que lhe é contrária, pois não mudou Proteo tantas vezes de semblante, como em um dia muda ao homem de conceitos. Para cumprirdes com os preceitos de vossas obrigações, tende presente que ao instante de nascer se segue o de acabar; que as delícias são inimigas da virtude; que só um prudente retiro de ocasião pode acautelar erros futuros; que entre os inimigos é mais nobre a generosidade, e fidalga a atenção, como com Dario nos ensinou Alexandre; que os que tomam os encargos da amizade, mostram que não há entre dous amigos mais que um só coração, de que devem fazer próprios os interesses da vida, e honra, pelo que os Cretenses pintam Júpiter com três olhos, querendo simbolizar nele a verdadeira amizade. Porque tendo-os triplicados, e dominando o Céu, a terra, e o mar, significam assim que contra o poder da verdadeira amizade não prevalecem os adversários mais fortes. Lembre-vos também, que nas ações dos pais de famílias não têm desculpa os descuidos, porque nos filhos reverbera a luz do vigilante cuidado, como as do Sol nos mais astros; e é tanto o que das boas doutrinas dependem os bons costumes, que muito mais se alegrou o Macedônio, tendo Aristóteles para instruir o filho, que quando vi nascido Alexandre, porque os documentos aperfeiçoam o ser ao homem, que nasce informe; e para gozardes felicidades no bem, que tanto procuraste, ultimamente vos digo, que de um entendimento obstinado, que faz liga com a vontade sem freio, nascem a inobediência, e a soberba, de que são vapores temeridades, e atrevimentos, que chegam a pôr em contingências, e perigos a glória, e tranqüilidade pública; e já que a sujeição, a que vos oferecestes, vos vai mostrando quais sejam as regalias da nobreza, procurai fabricar estátuas, que sejam por vós outros colocadas nos altares da honra, porque das heroicidades nascem os mais ilustres sujeitos, que como a Alexandre fez Magno o querer imitar a Aquiles, e as vitórias de Milcíades elevaram a Temístocles a tão superior esfera, que lhe puseram a coroa entre os melhores de Atenas; não vos desanime para aspirardes a grandes empresas o não procederdes de preclaras prosápias, que se estes são obrigados a se remontarem, como a Aguia, buscando a luz das mais altas façanhas, em vós serão mais vantajosos os créditos, buscando adiantar-vos em tão acreditadas glórias, sendo que no conceito de Homero são poucos os filhos que imitam as proezas de seus pais.

Com estas, e outras muitas advertências, que conservo, na memória, determinava dar fim à minha despedida: porém Antreo com saudosas demonstrações, lançando-se-me aos pés (não como o que era, sim como o que fora), possuído de veemente paixão, que nos ânimos costuma radicar a união da verdadeira amizade, me disse: Amado Príncipe, já que meu oculto destino de vós me aparta, mitigai a minha dor, confortando-me com as vossas virtudes, e soberanas máximas. Eu o tomei entre meus braços, e reciprocamente banhando-nos em lágrimas, lhe disse: Amigo fiel, resguarda os meus segredos, e em a nossa divisão façamos o maior sacrifício aos Numes, pois aqui nos encaminharam para remédio deste povo, que nos ama, e com docilidade te obedece. Bem sabes que eu sou obrigado a deixar-te por aquela decente causa, que eu espero merecer, peregrinando pelo Mundo à custa de trabalhos, ou oferecer-lhe a vida, qual vítima desgraçada nos altares da constância, pois é a ausência o bloqueio decoroso, que rende a fortaleza de um coração nem nascido; como as chamas tomaram forças em matéria epta, se um assopro antes podia apagá-las, hoje em cada minuto de saudade um suspiro as acende. Quem diria a Príamo, que para reduzir Tróia a infuastas cinzas, bastaria pôr os olhos para admirar a beleza de Helena? E quem advertiria a Dido, que a cortesania de tratar o forasteiro lhe havia de dar a sua mesma espada para castigar no próprio coração as culpas da leviandade, porque as nódoas da honra só se tiram com o sangue? Mas já que cheguei a tão infeliz estado, e é preciso que me ausente, não quero perder agora o tempo de ajudar-te, recomendando-te que advirtas a teus súditos, que para exercitarem o bem, se apartem do mal; e os que não caírem em público, repreende-os em particular; e como não tens forças bastantes, procura as da união, que costumam vencer formidáveis exércitos: adverte que haja compaixão dos pobres forasteiros, e vigilância em socorrer a quem buscar amparo; como em defenderem mais a pátria; que os parentes; que os que quiserem a coroa trabalhem por merecê-la; que os que andarem com os prudentes, chegarão aonde quiserem; que quando as inimizades sossegarem, não as despertem; que para refrear paixões, se lembrem de que hão de morrer; que não casem só pelas riquezas, que os que recebem benefícios, saibam que vendem a liberdade; que gastem o preciso, e no que puderem vivam consigo; que não dêem voto, enquanto duvidosos pensam; que para se saberem haver, reparem nas adversidades os que nas prosperidades foram fingidos; que desprezam os interesses, em que o crédito se arrisca; que quando escolherem mulher, vejam a que mais se retira, e se adorna de silêncio; que cerrem os ouvidos à murmuração; que não se alegrem nos males dos inimigo, favorecendo-os, ainda que o não peçam, pois quem quer o mais glorioso troféu, perdoa ofensas, procurando para as injúrias o remédio do esquecimento; que para gozarem os tesouros da paz, não ofendam, a ninguém; que para acabar bem, é preciso não principiar mal; que o calar tem seguro o prêmio, e que os maiores estão destinados para os que no bem persistirem; e não te esqueças que o Rei generoso é o que mais assiste nos corações, sendo mais rico, e feliz o que muito dispende, que o que muito recebe. Manda que o pastor tire a lã às ovelhas, não consentido que lhes tire a pele, nem que os Templos herdem os mortos, porque as casas sagradas não carecem de mais reparos para se sustentarem, que os alicerces da piedade, pois que os santos Ministros mais devem crescer em virtudes, com que edifiquem, que nos bens, com que ao povo enfraquecem; e quando vires resplandecer o efeito dos bons documentos, sentirás aquela incomparável consolação, que se reserva para o que sabe ser pai de seus vassalos, os quais em se julgando seguros no amor de seus Monarcas, tanto lhe juram fé pelos aumentos, com que os premiam, como lhe votam fidelidades, abraçando os grilhões, com que os castigam, para o que traze diante dos olhos, que para conseguir o amor dos súbitos, é preciso amar o bem comum, e não fazer o que proibes, medindo forças, antes que te declares, porque não cai temerariamente quem adiante olha.

Com estes, e outros muitos documentos conclui a despedida de Antreo, e porque era preciso que dali também saísse oculto, no silêncio da noite principiei a caminhar para um porto de mar, levando só Arsidas, e quatro servos paisanos, e como não era razão, que me ausentasse sem as distinções que naquele estado eram precisas, vendo que muitos estavam determinados a acompanhar-me, fingi deixar a partida para o dia seguinte, e antes de ver a Aurora, cheguei a um porto de mar, donde saía uma embarcação para Atenas, em a qual no mesmo dia embarcamos com grande alegria.

A primeira noite de meu embarque, como me ficava todo o tempo livre, pois não pensava em máximas de governo, principiei novamente a vacilar sobre o caminho, que haveríeis tomado, e se seria certa a notícia de estardes no serviço de Anfiarau, conforme publicaram as vozes do vosso engenho, e raras qualidades, pois não sabe o tempo sofrer, que um sábio esteja encoberto: lembrava-me se teríeis falecido, ou vossa consorte, e filha, que arrastava sem desmaios as minhas venerações, ou se vos haveriam separado os contratempos; e discorrendo neste vasto motivo de minhas tristes memórias, adormeci: talvez que Morfeu por compaixão de meu atribulado espírito ordenasse aquele misterioso descanso; mas como não descansa a alma, que vigilante ama, nem dorme o coração amante, sonhei que desembarcava em uma situação solitária, e que seguindo um vale agradável, fora dar a um lugar agreste, onde não se viam aves, nem plantas tomado de fumo de sulfútero, que saía de uma horrorosa caverna, e ouvindo um medonho estrondo, sentia tremer toda aquela terra, de que fora tal o meu pavor, que endurecendo-se-me os cabelos coberto de frio suor, um tremor no corpo me precipitava na caverna, onde me faltava o melancólico velho Caronte, e me diziam que o ter caído naquela escura habitação, não fora sem que o determinassem os Deuses, para ali também buscasse aqueles, por quem suspirava: e ainda que para este fim me oferecia a sua barca, eu não podia ver mais que multidão de mortos, e rogava a Caronte me encaminhasse a ver o trono de Plutão, ao que logo me satisfazia; e chegando a ver o seu pálido, e enrugado semblante, observava que seus úmidos e espantados olhos só empregava sem furor em sua esposa Proserpina, que estava a seu lado; o trono daquele Deus terrível era colocado sobre as vinganças, que vertiam sangue: o ódio cego, a inveja bebendo o seu mesmo veneno; as vontades, que incitam os danados zelos, e os mal nascidos desvelos; a um lado estava a cruel, e pálida devoradora afiando continuamente a foice comas feias companheiras, que não cansavam em seus empregos; as espantosas visões, e horrendas fantasmas, que maltratam os vivos, estavam ao outro lado sempre inquietas; Plutão fazendo-me estremecer com seu furioso olhar, e triste aspecto, me dizia com rouca voz: se os que buscas foram separados dos corpos, só os poderás achar naquela parte do meu Reino, que é destinada aos que foram poderosos; e já que chegas a violar este sagrado, não te demores em meus domínios. Fui com pressa para aquela parte; buscando um rio pelo impetuosos sussurro, que ouvia, cheguei a vê-lo com inexplicável admiração, pois só se compunha de fogo, e incendiadas pedras, e frenéticas serpentes, que ora submergindo-se nas chamas, ora voltando enfurecidas umas com outras, iam levadas do ardente incêndio: eu invocava a Júpiter, Minerva, e Apolo, para que me confortassem, e defendessem. Indo adiante via uma inumerável multidão de atormentados, por haverem procurado as riquezas alheias com enganos, traições, e crueldades; os adúlteros sem distinção de sexo, porque ali eram igualmente castigados; os filhos inobedientes, e os traidores, os quais ainda depois de venderem os preceitos da honra, e violarem os juramentos, padeciam menores penas, que os hipócritas, pois só as destes excediam a todas as outras, que assim o determinavam os três Juízes; porque não contentes os hipócritas de serem tão maus, como os ímpios, procuraram ser tidos por bons, arruinando os créditos das virtudes, e os frutos do bom exemplo; e os Deuses, de quem zombaram, empregavam o seu poder no castigo daqueles insultos. A estes se seguiam outros de culpas, a que o vulgo chama políticas; e os que no Mundo não são tidos por delinqüentes, ingratos, mentirosos, lisonjeiros; e os que julgaram temerariamente, ou falaram fingindo zelo, ou compaixão, arruinando a inocência por paixões particulares; e os que aos Deuses foram ingratos, tinham mais pena que as maiores inqüidades. Via finalmente os atormentados, que abusaram do poder; de um parte uma Fúria lhes representava seus vícios, ali viam as perversas inclinações, com que amaram os aduladores, a excessiva magnificência tirados dos povos; a ignorante altivez, com que maltrataram os homens, que deviam fazer felizes; a insensibilidades, a soberba, e falta de caridade, com que compraram com, sangue ou o terreno alheio, ou o temor dos vizinhos e ocupados só em regalos, não viam de que choravam os súditos. Logo outra Fúria os acusava, repetindo os injustos louvores, que tinham recebido; tudo ali os contradizia, os desprezava, e confundia, e nunca livraram da tristeza, e pavor, que de si tinham, pois não podiam despir a própria natureza, sem que fosse preciso mais para castigo, que os seus mesmos delitos. Outra Fúria lhes trazia presente os condenados, que produziram os seus descuidos, fazendo-os atormentar com as penas de todos eles, e assim estavam desgraçadamente divididos de si, e unidos à raiva, e dor que lhes comunicava a perdida esperança.

Também via castigados os que antepuseram as delícias de uma vida afeminada ao trabalho, e desvelo, porque se compram as diginidades, e com este motivo se improperavam uns aos outros, trazendo-se à memória os regalos, deleites, e descansos, em que se tinham persuadido, que eternamente seriam respeitados; e lançando-se as maiores maldições, eram severamente castigados, não pelo mal, que fizeram, sim pelo bem, que deixaram de fazer, imputando-lhes todas as culpas da ociosidade, negligência, e esquecimento da lei. Muito me admiro o ver entre penas os que haviam acabado com boa opinião, uns por se terem deixado dominar de malévolos, e outros males, que se haviam feito com o escudo da sua autoridade. Grande era a compaixão, com que os via, lembrando-me quanto lhes é difícil conhecerem a verdade, e a si mesmos, sendo sujeitos a tão pesados encargos em uma vida tão curta, em que também o foram as invejas, sustos, oposições, e misérias. A vista daqueles espelhos do meu perigo, dizia: Oh quanto é bem aventurada a vida sincera dos que estando perto do trono, não se apressam para subir a ele!

Assim ia buscando uma luz, que de longe via; até que cheguei à bem aventurada habitação dos justos, onde descansavam os bons Soberanos, que sabiamente governavam os vassalos, e separados dos outros justos, gozavam muito maior felicidade, e em deliciosos bosques matizados de belíssimas flores, guarnecidas de líquidos cristais, onde a fragrância, a frescura, e doce harmonia das aves formavam uma inexplicável delícia, assistiam aqueles bons Príncipes; ali parecia não chegar a aspereza do inverno, nem o ardente rigor da canícula. Não lembrava a guerra, pois tudo era paz, nem o dia se acabava, pois eram ali constantes os resplendores. Não se viam vestígios de ódios, vinganças, zelos, temor, ou inveja: junto aos bem aventurados se difundia a agradável luz, que as alimentava, a qual tanto a eles se interna, e incorpora que a respiravam, a viam, e a sentiam, de que nascia aquela tranqüilidade infinita, onde jamais se via a morte, enfermidades aflições, temores, ou remordimentos, nem podiam interromper aquela felicidade as esperanças, discórdias, ou pesares, porque era imutável; a alegria eterna, e a glória Divina, que sempre neles se renovava, recordando o auxílio, e favor dos Deuses, que os fizeram ir pela mão de virtude para acertarem o caminho entre tantos perigos. Todos lhe cantavam louvores, e faziam uma só voz, uma só felicidade, e um só pensamento: admirava-me ver os poucos, que descansavam, o que entendo será, porque poucos resistem ao poder, e desprezam adulações.

De uma parte para outra vos buscava; e vendo cheio daquela ditosa luz a Almeno, dando-lhe os braços, com inexplicável respeito, a regozijo: como te vejo aqui em figura mortal? (me disse) E querendo responder-lhe, não sei que ternura, ou prisão não me deixava pronunciar palavra. Já que os Deuses te amam, os resguardam, (continuou) adverte em seguir o estreito caminho das virtudes, prevenindo lugar nesta morada de interminável paz. Tu nasceste para reinar, e não te entregues ao descanso, e regalo, por não arriscarem o bem terno, e real reputação, porque esta não tem minuto de tempo, que não seja obrigada aos pesados encargos de seu ofício, pois quem o serve é devedor de si mesmo, sendo de infinito peso qualquer pequeno descuido: não basta não fazer mal, porque é preciso fazer todo o bem a favor dos estados; pelo que, amado Arnesto, arma-te de valor contra si mesmo, contra as paixões, e lisonjas, sendo no teu governo um vivo modelo de heróis soberanos, e bom pai dos súditos; porque os que enchem as suas obrigações, gozam aqui os maiores, bens, que lhe podem os Deuses outorgar. Perguntei-lhe quem eram os que estavam apartados dos que gozavam a mais soberana luz? São os heróis, (me disse) que recebem o prêmio do seu valor, e gloriosas empresas; e os mais que estão por esses deliciosos bosques, são os que nunca ofenderam os ditames da paixão; os que deixaram os tumultos, e nos retiros louvaram as Deuses, e não ofenderam as leis; os que choraram seus delitos, e os que a ninguém fizeram mal. O quanto será feliz, se tiveres sempre lembrança das penas, e dos descansos!

Com estas palavras, parecendo-me de que de mim se apartava, fui a dar-lhe os braços; e como a uma sombra, vi que não podia satisfazer meu interno afeto. Com este susto acordei, e tão fora de mim, que me pareceu ver em uma claríssima nuvem a sábia Deusa, que me oferecia palmas e a da beleza, que com o cego filho nos braços de mim se riam. Tornando inteiramente aos sentidos, achei Arsidas, e os companheiros, que com susto cuidavam em despertar-me, parecendo-lhes sombra da morte aquele dilatado descanso: logo me contaram, que um célebre comerciante, que ali ia, lhes dissera que havia tempo, que em Atenas se tinha descoberto a Princesa Tebana em Real serviço; e que o Príncipe Ibério, encantado de sua rara beleza, determinava desposar-me com ela, ao que se seguira desaparecer repentinamente; e que todos diziam, que a mandara matar o Rei, para se malograrem os instintos do filho, mas que a Tebana se achava com Ibério em um retiro; logo interrompi estas palavras com ardentes suspiros; e apartando-me dos que tais notícias me davam, não havia crueldade, que não me lembrasse, transportado em amantes delírios. Já me esqueciam as sombras horrendas, e a luz brilhante dos bem aventurados espíritos, e em meu lastimoso pranto dizia: Oh tirania lei de amor! Qual foi o néscio, que te deu de lei as sagradas forças que se a natural a todas as mais prevalece, e esta manda resguardar a própria vida, e atender ao bem comum, ao mesmo tempo é transeunte à tua essência tirar a paz ao comum, e ter ódio à mesma vida? Chore-se em Delos sem remédio a minha ausência, já que estas cruéis contradições me obrigam a desejar para alívio o instante de expirar neste instante, que respiro. Qual será a serpente, brasilísco, ou crocodilo, que não se encerre em mim, pelo veneno, que introduzem os zelos em um triste coração, pois só exalo furores, respiro vinganças, e mortes fulmino? Mas ai de mim! Se a ofensa não se prova, de que procede o que sinto? Ó vida infeliz, em que os contentamentos passa, como as sombras velozes, que nem os vestígios deixam, e aos tristes pesares só são permanentes! e neste pequeno teatro fazemos papel na tragédia da inconstância, que quanto de repente não acaba, o ter fim é infalível! E se a soledade dos montes é alívio de pesares, que os tristes diverte, os corações dilata, as aflições modera, os espíritos alegra, e os olhos recrea, sairei daqui só a buscar esse último remédio da minha total ruína, onde aprendendo a mais alta filosofia, me exercitarei naquela prática ciência, que conduz para o melhor fim, e ponha-se de todo o parêntesis entre a Majestade, e o associável de homem com os rústicos na sincera vida no campo. E tu, ó Nume infausto, que zombas dos mortais, negando assim as regalias de racional, e os domínios da razão ainda aos que são mais sábios, se te abrandar meu conforme padecer, executarás em mim na primeira ação da tua piedade o último golpe da tua tiranias.

Chegou Arsidas a lembrar-me, que o dia se passara, sem eu tomar alimento algum, ao que me queria obrigar o seu afeto, e cuidado. Bem conhecia eu que aquela notícia não era bastante para sustentar em mim tão veemente paixão; mas é tão ativo o amor, que é verdadeiro, que basta sonhar com a ofensa, para perder o sossego. Cheguei a desembarcar; e determinando esperar a morte nos campos de Micenas, como o mal sem remédio de cada vez tomava mais forças, me persuadirem a fazer viagem para Atenas, onde a verdade acabasse de matar-me, ou curasse os seus delírios; assim fui de cada vez mais magoado, e só tinha alívio em retirar-me dos meus, que quando me buscavam, não podia dizer-lhes mais, que: Retirem-se; pois a tão cruel tormenta era desafogo o meu pranto sucessivo; que os que são feridos de amor, entendem que só é alívio o chorar, e assim com estes indícios covardes me dava a conhecer amante, sem que fosse possível entrar em mim, por mais que em mim refletia, conhecendo que era oposto às minhas obrigações o afeminado afeto, a que me via rendido. Cheguei a Atenas, onde conheci que uma Fúria, para me abrasar o incêndio da ira, outra para acender em mim a vil inveja, que viva dor de perder a suspirada fortuna e outra para acusar impureza, onde assistia inocência, se haviam transformado no comerciante, que de tão falsas notícias, pois era ali indisputável a virtude de Hemirena, e fui informado da causa, porque Ibério declarara guerra a Anfiarau; que ainda era indício de seu rendimento, a fuga de Hemirena me segurava, que não fora correspondido; pelo que tão pouco respirava eu já pelo coração da vingança, que me levava a tirar-lhe a vida, que como aventureiro, fui ao campo, onde (debaixo das bandeiras de Ibério) tomei armas contra Anfiarau; e acompanhado dos meus, busquei satisfazer as vossas injúrias, lavando as armas no sangue dos Coríntios, aos quais me chegavam tão temerário esforço, que matando muitos, também muitas vezes fui ferido; e com ali se observasse o ardor, com que os buscava, entrando o Generalíssimo na dúvida do que faria para concluir o último sítio, e supondo em mim ocultas qualidades, que lhe lembravam ouvir-me, me fez conduzir à Real tenda para dar meu parecer; e depois de atenciosos cumprimento, lhe disse:

São atendíveis as razões, que originam a vossa dúvida; mas os sitiados têm perdido já uma grande parte de gente, pois tem sido contínuo o fogo; e como não têm socorro, ainda que era muito grande a guarnição, por força está diminuta. Bem considero quais são as suas muralhas, e que fazem frente sem resguardo a um exército crescido, mais que valor, será temeridade, e contra o pundonor das nossas armas dar lugar a que entre socorro; e porque poderão julgar ser fraqueza não os servimos desta ocasião, a todo o risco me parece que o assalto se deve dar sem demora. Assim se determinou para a madrugada do dia seguinte, em que os Céus com rios de água parecia que nos despertavam; e vendo eu que havia alguma omissão por causa daquele tempo, fui resoluto à presença de Ibério, (que mal sabia quem eu era) e lhe disse: Os Céus, Senhor, não querem tomar-nos os passos, mas antes nos chamam a tão soberana empresa; porque assim como Júpiter com os soberbos Titões pelejou com raios, e nos nossos corações infunde o bélico ardor, com celestial água, e fogo também nos adverte, que não devemos perder tempo: eu vou à muralha, mandai que me sigam. E tomando a minha bandeira, e espada, e Arsidas uma escada, subindo por ela, reparei que os assediados se tinham recolhido da tempestade. Apenas me vi sobre a muralha, batendo a bandeira, aclamei a vitória por Ibério, e em breve tempo se achou por várias partes coroada da nossa gente. Deixei cair a escada para morrer, ou vencer, os outros me imitaram; e para que o inimigo não desse junto sobre os que demos o assalto, partiram várias esquadras para diverti-lo por outras partes, e a mais gente se empenhavam na brecha, em que muito já se havia trabalhado. Entretanto que se disputava esta empresa, se adorava em Ibério uma animada imagem de Mavorte, pois não resguardando a vida, tomava sempre o lugar, onde havia maior risco era tal gritaria, que aqueles bárbaros faziam, que bastaria para assombrar o ânimo mais forte, se da nossa parte os estrondos marciais das caixas, e dos clarins não nos avivassem o mais ilustre furor, sendo Cupido o Comandante da parte superior do exército: mais de nove horas durou o sanguinolento combate, o inimigo deixando-nos vencer, acudia só à brecha; e os nossos não só com ânimo incrível se empenhavam em continuar na entrada; mas se haviam repartido, como bem disciplinados. Conseguimos entrar vitoriosos; e foi a mortalidade, que andávamos sem reparos sobre os mortos. Celebrada a vitória com reais demonstrações, publicavam dever-se a mim um triunfo: pediram os inimigos os preliminares da paz, e Anfiarau mandou justificar na presença de Ibério, que vós não existieis em seus domínios, e que quando vos conhecera fora depois da vossa fuga; a qual se provou, ficando bem castigadas as vossas injúrias. Na seguinte noite caminhei para seguir meu destino, pois se demoravam os exércitos, para se concluírem as satisfações: querendo sair de Atenas, fui preso, e reduzido a ferros, enquanto não se justificarem as minhas ações: continuei meu caminho, embarcando para Tebas com grande consolação, pois tinha por certo, que já lá estaríeis, por oculta insinuação de Anfiarau. Um naufrágio, que me teve entregue à morte, me deu a conhecer a Belino, a quem devo a vida, e Delmetra vos poderá contar os maravilhosos sucessos daquele contratempo; estes foram alguns de meus trabalhos, que os repito para satisfazer-vos, e não os poderei numerar, nem para agora é justo recordá-los mais, pois já permite o fado, que o prazer tome para si algum tempo, ainda que entendo que Hemirena, e Climinéia acabaram nas mãos dos bárbaros, e sufocado de mágoa ficou sem poder proferir mais palavra. Pois sabei (lhe disse Diófanes) que em Delmetra se oculta Climinéia, e em Belino a que para vossa esposa estava preconizada, que fugindo de horrorosos perigos, se valeu da dissimulação, que vedes. Arnesto com vivas demonstrações de inexplicável alegria, tendo ainda por impossível, que para tanta ventura estivesse destinado, se lançou aos pés de Climinéia, e Hemirena cheio de regozijo, amor, e respeito. O repentino contentamento lhe embargou a voz de sorte, que convertido em admiração, não fazia mais que admirar, como aquela beleza o havia conservado no engano, sem lhe confiar alívio em seu amante cuidado, quando naquelas praias acompanhou: e refletindo nas novas obrigações, que lhe acresciam para adorá-la, pois lhe havia dado a vida, rompendo em discretas expressões de seu júbilo, e justo amor, concluiu com os sentimentos de não ser eterna a sua vida, para com ela lhe renunciar uma felicidade infinita em que recebesse imortais cultos a sua formosura.

No dia seguinte cheios de imenso contentamento embarcaram ainda incógnitos: chegaram a Tebas, onde continuava Diófanes por sua Real sucessão em um filho pequeno, que tinha deixado, ao qual entre os aplausos acharam com dilatada prole. Foram ali os festejos os maiores, que se podiam considerar; já as lágrimas dos que choravam continuamente por aquela amável família tinham cessado; as gentes saíam de suas casas, rompendo os Céus com as vozes dos vivas, com que iam ver aqueles, que choravam sepultados nas margens do turbo Letes; os parentes ofereciam vítimas para os sacrifícios em reconhecimento do benefício, que dos Deuses recebiam; Diófanes, e Climinéia estavam patentes para serem vistos dos que não davam créditos ao que sucedia; ali lhes contavam as repetidas diligências, que por eles se haviam feito; e que não achando alguma, uns diziam que teria a nau ido a pique na tormenta, que naquela ocasião houvera; outros, que teriam dado em mãos de bárbaros, que lhes tirariam as vidas, depois de os roubarem; e as demonstrações fúnebres, que publicamente se haviam feito, ao que acompanharam as lágrimas, e clamores de todo aquele povo. Diófanes com inexplicável consolação vendo tão bem sazonados os frutos da sua ausência nas excessivas demonstrações de gosto, com que o recebiam, e estavam governados por Bireno, lhe recomendava, que para serem conduzidos às felicidades, conservassem nas adversidades a constância do ânimo, e a resignação por se lhes dificultarem, porque só o que é pernicioso não costuma ter muitos opostos; que temessem os Deuses, amando a lei, e aumentando os cultos da justiça, e fidelidade dos Soberanos, que enquanto lhes demoram os prêmios, lhes crisolam os merecimentos, sendo a demora dos aumentos realce da felicidade, que chega quando se espera, ainda que o desejo impaciente os anos transforme em séculos. Foram perdoados os delitos, e postos em liberdade os delinqüentes, menos os que estavam em pena de morte, porque estes foram exterminados; e se ordenou, que apresentando seu passaporte na raia, ou ao sair daquele porto se lhes desse certa porção de dinheiro para continuarem suas viagens, ou jornadas, e que a sentença de morte teria vigor, se algum dia tornassem a entrar naqueles domínios. Repartiram-se pelos órfãos, e viúvas grandes porções de dinheiro: deu-se liberdade a todos os escravos, que ali se acharam, que a uns a compraram os Soberanos, e a outros a deram os senhores com aquele exemplo: pagaram-se todas as dívidas aos vassalos, que mostraram não terem meios para satisfazerem a seus acredores; dotaram-se as donzelas pobres, e os meninos da mesma qualidade foram tirados às viúvas, e repartidos pelos Colégios de artes, e ciências.

Todo aquele mês, em que com um bando se noticiaram ao povo as mercês, que lhes fariam, continuamente estavam entrando na Corte os que viviam distartes, os quais chegavam tocando seus instrumentos, e cantando com agradável suavidade os triunfos de seus Soberanos, e as felicidades de Tebas; e com lágrimas de alegria apostavam expressivas demonstrações do mais terno contentamento. Os rústicos à vista de Palácio formavam com singeleza os seus bailes ao som de suas flautas, e logo depois se encaminhavam para o Templo, levando inocentes ofertas, onde os da Corte haviam oferecido grande parte de seus tesouros, e iam assistir aos cultos, queimando continuamente preciosíssimos aromas. A estas demonstrações gratulatórias assistiam de manhã os Soberanos, e de tarde a Academia das ciências, que em Palácio se fazia, onde eram admitidos homens, e mulheres a darem conta do progresso de seus estudos, sendo premiados conforme a vantagem, que se levavam, a uma parte da noite se passava em outros divertimentos, em que o prazer competia com a grandeza, e luzimento, os estrangeiros concorriam a admirar tão estrondosa festividade. Passados alguns dias, chegaram os de Delos com uma esquadra Real, e com igual admiração, que regozijo viram o seu Príncipe, e concorreram para os aplausos, formando jugos, em que com Marcial destreza, e bizarria levavam os prêmios, e davam os vivas aos seus Soberanos, que acabado aquele mês, foram embarcar acompanhados da Corte, milícia, e povo, que mesclava com a precisa saudade o discreto contentamento; depois de militares movimento, com uma salva geral se conclui a despedida.

Chegando felizmente a Delos, eram esperados com iguais demonstrações de prazer; a marinha não só se guarneceu logo de soldadesca, mas de magníficos carros de triunfo, onde suavemente se cantava, e de bem ordenadas danças, que se compunham de figuras ricamente vestidas: em se fazendo o desembarque luzidíssimo, foram assim acompanhados aqueles Príncipes, formando as vozes dos clarins, dos mais instrumentos, e dos vivas uma tão celeste melodia, que representava o Céu na terra; em iguais distâncias estavam arcos, bem formados, onde parece que agradavelmente as Musas exercitavam, e de alguns, que guarneciam os vassalos, em cujos corações havia Arnesto depositado os mais seguros tesouros, se lançava dinheiro ao povo. Foram ao Templo de Apolo, que com admirável grandeza, e pompa se achava adornado, e iluminado, e por não fazer enfadonha a narração daqueles cultos, e obséquio, se deixam à melhor consideração.

Depois de jurarem os Príncipes, e grandes, que jamais naquela Ilha se consentiria que houvessem escravos, porque seriam restituídos à inteira liberdade os que, como cativos, ali chegassem, se encaminharam para o Palácio, e as mais festas se repetiam todas as que se haviam feito em Tebas, e pelo mesmo tempo todas as referidas mercês. Passado aquele mês, destinado às graças, e festejos, se retiraram para Tebas os que tinham saído a acompanhar os Príncipes, e saiu Arnesto a visitar os hospitais; que ficaram ricos, pois deu o Príncipe generoso exemplo à piedade. Concluindo esta louvável diligência, foi ver os arsenais, onde repreendeu severamente os descuidos, e despertou os negligentes, para que se melhorassem. Quis ver as suas Tropas; e fazendo-as exercitar na sua presença, acrescentou os Militares, e despendeu com eles tanto, que mais parecia pai liberal, que senhor esquecido; pois conhecia com larga experiência, que a grandeza dos exércitos faz indeclinável o respeito das Majestades, a glória dos Soberanos, e a opulência dos vassalos; e a estes suave o peso das armas, o agrado do seu Rei, os honrados adiantamentos, e o soldo, que os sustenta; porque suposto que não haja cousa alguma, que possa ser inteiro equivalente da vida, o supre a honra, e a fidelidade, quando a fome não quebranta, nem o crédito padece.

Depois deste louvável, e mais preciso empenho, ou desempenho de suas máximas admiráveis, ordenou que o ministério devassasse dos Militares, e estes do ministério na sua verdade; e vendo que a vara da justiça muitas vezes se torcera com o peso dos subornos, e que os que se aproveitaram de uma injusta autoridade haviam desprezado os ameaços da culpa, e os vaticínios da razão, ordenou que fossem logo acabar no suplício, pois tinham sido o flagelo dos pobres, o escândalo dos bons, e o terror dos povos; porque como bramam aos Céus os clamores da verdade, ainda que o castigo se desfira, sempre o perverso tem a pena dos seus delitos. Com as cabeças daqueles se guarneceram as muralhas da Cidade, sendo padrões do exemplo aqueles despojos da vida, onde existindo as geladas cinzas da culpa, falava a mudez do horror aos corações compreendidos. Os que tinham dado inteira satisfação às suas obrigações, foram premiados com honras, e riquezas tão avultadas, que parecia querer aquele sobrano reservar para si só o prazer de repartir os tesouros, ou que apostava exaurí-los, depositando-os no amor dos seus vassalos, onde o Rei justo, e generoso tem o mais firme trono, e o Império mais seguro; e assim como contemplando em os aumentos exercitava as vozes, com que o povo pedia aos Numes que lhe eternizassem o seu Príncipe, também se ouviam os vivas, quando pelo patíbulo se desocupava o Mundo daqueles, a quem a ausência da soberano dilatara os castigos; pois é a morte dos maus a vida dos bons, e a prontidão dos remédios o melhor remédio para o mal.

Tendo Arnesto concluído todas as cautelas, com que o seu vigilante cuidado causava admiração aos estranhos, e animava o exemplo dos seus, pois distribuía gloriosos prêmios, e executava justos castigos, chegaram ali três naus vindas da ilha de Náscia, que com vozes de sonoros clarins vinham publicando contentamentos. Logo fizeram aviso da chegada de Isicles, Embaixador que Anteo mandava a cumprimentar Arnesto, e oferecer-lhes ursos, e leões em tributo dos benefícios, de que era devedor àquele povo. No dia seguinte se deu solene embaixada com grande luzimento, e pompa, tornando-se a renovar os júbilos da chegada de Arnesto, porque os vassalos contentes com o seu soberano não sofriam as recordações do mal passado, sem que expressando o bem presente repetissem votos das mais pura fidelidade, e festivas demonstrações do mais vivo contentamento. Depois que as Majestades foram cumprimentadas de formalidade, Arnesto com lágrimas de saudosa consolação recebeu uma carta de Anteo, a qual era escrita na forma seguinte:

“A vós, Príncipe Arnesto, enviamos nosso contentamento, amor, e respeito, pois vos devemos a nossa felicidade, e rogamos aos Deuses consoladores que vos assistam.”

“Ouvindo-se aqui as notícias de vossa chegada a Tebas, se revelaram todos os vossos segredos, e que os seus soberanos acharam bem experimentada a fidelidade dos vossos vassalos, e bem crescidos os frutos de os ter governado com amor, paz, e justiça (que tudo Bireno mantinha em boa ordem), e qual fora a vossa entrada em Delos, e a celebridade do vosso suspirado consórcio. Julgai qual seria a consolação, com que eu me lembrava de nossos misteriosos infortúnios, quando este povo agradecido rompia em vozes expressivas do mais fiel contentamento, dizendo na presença da sacra estátua de Apolo:

O Deus luminoso, já vemos que eram vossos influxos, com que amávamos a Arnesto! Já vemos que era imagem vossa a luz, com que nos atraía! Já vemos que eram suaves raios do Céu as vozes, com que nos persuadia a bem obra! Já vemos que era influxo Divino o ardor, com que amávamos as suas virtudes! E quem, senão uma imagem vossa assistida de Júpiter, e Minerva nos faria amar a concórdia, que é origem do aumento, e desprezar a discórdia, que tudo consome? Quem nos faria estimar a brilhante espada da justiça? Quem com a capa de uma desgraça fora argumento da mais elevada virtude? Só o que nascendo para reinar, e nos foi por vós enviado para o remédio de nossas dilatadas tribulações.

Donde viria homem mortal, que sem vislumbres de Divindade nos fizesse tão suavemente obedecer às leis, amar as letras, exercitar as virtudes, buscar a sujeição, contemplar nos soberanos, sujeitar aos trabalhos, e honrar os Deuses, mais que aquele, que concebendo os maiores pensamentos, não perdia instante de cogitar sobre o bem deste povo, que parecia respirava pelo coração de Arnesto? Ó luz eterna! Ó Deuses benignos, assisti-lhe, e defendei da contrária fortuna, para que seja sempre honra da pátria, e glória dos vassalos! — Com estas exclamações saíam do Templo, e não descansavam de cantar louvores vossos, reconhecendo as causas, de que procediam as vossas amáveis circunstâncias.

Muito me alegro, quando me lembro que vos exercitei nas armas, e ciências, que como honrado vos servi e como fiel vos acompanhei; e assim me lisonjeia a fama, publicando as vossas supremas virtudes, e me suavizam o pesado encargo de governar estes vassalos, porque vos reconhecem por senhor supremo; e já que vós me elevaste ao lugar, em que me vejo, é razão que façais felizes as minhas resoluções, pois juro aos eternos Deuses seguir sempre os vossos ditames. Bem sabeis que os varões, que admiraram as gentes, se fizeram dígnos mais pelo pouco preço, que deram aos grandes lugares, que pelas vitórias, que tiveram; porque para vencer inimigos na guerra muito concorre a fortuna; mas para desprezar a própria grandeza só a heróica magnanimidade: pelo que vos peço, senhor, que atendais à opressão, em que vivo, ajudando-me a descer do trono, onde o desvelo é contínuo, é pouco o mais dilatado tempo, o trabalhar é dívida, o descanso é culpa, o acerto é obrigado, o desacerto é sem desculpa, o perigo é sem limite, e é limitada a humana capacidade para o encargo, que finge doces fadigas para o possuir, sendo amargosíssimas para o responder. Oh quanto é indesculpável a vaidade dos homens, pois esta os caminha àquela sublime esfera, onde mais se encontram precipícios do sossego, que firmeza nos favores da fortuna! E quando não houvesse maior causa para fazer horror o falso prazer de reinar, basta ver que ordinariamente do de quem mais nos fiamos são as brechas, por onde se rende a fortaleza do mais justo Monarca, os sentinelas que vigiam os nossos descuidos, os espias do engano, os escudos dos maus, se as armas dos indígnos. E como é possível que resistamos ao fogo, que nos faz a malícia destes, se nos acham descuidados? Com a boa fé nos enganam, e com fingimentos nos prendem, conspiraram contra os nossos créditos lisonjeiros, mentirosos, traidores, e fingidos; porque (entre outros motivos) o degenerar a justa veneração, que se deve às Majestades, produzir o veneno do respeito, que desfigura a verdade em chegando à presença dos soberanos, que a desconheceriam despida, porque se a vêem é com adronos.

“Onde irei, senhor, que encontre quem desconheça a grandeza, e me diga quanto sente? Onde acharei um amigo tão nobre, que me aconselhe sem se haver aconselhado com o próprio interesse? Onde acharei um homem tão leal, que amando só os meus acertos, suspenda o peso, que me oprime, sem que faça maior preso arrastado pelo ódio? Onde acharei um sábio prudente, que creia o muito, que amo a verdade, e que a mentira aborreço? Onde acharei um justo compassivo, que me avise de que choram os pobres, de que se lastimam os que não têm valores, e de que se doem os queixosos? Oh mil vezes infeliz grandeza pois afugenta as luzes da verdade, e consiste em não desatar os laços do engano, em que docemente respira! Eu não posso ver tudo; e os que melhor vejo, menos merecem; os que menos se retiram, mais me afastam de acertar; o que mais amo, melhor me enganam; os mais capazes se me ocultam; e os incapazes os conheço, quando os danos os descobrem.

“As vossas doutrinas, e o meu desvelo tem produzido aqui homens excelentes; mas inteiramente perfeitos ou os não há, ou são raríssimos; porque o sábio soberbo parece quando é mais preciso, menos convém ocupá-lo; o que tem contra si o ódio do povo não sei se é mais útil entregá-lo ao esquecimento, que chamá-lo, para que sirva; o que estuda mais sobre a própria conveniência, que sobre o que convém à República, duvido se é menor a falta, que me faz, que o engano, a que me arrisco; e o que ou há de ser bem visto; ou há de maquinar vinganças, entendo que é mais conveniente buscar meios de contentá-lo, que dar-lhe emprego. Enfim dizei-me, senhor, o que entendeis, que eu desejo trocar a suprema grandeza da Majestade pelo simples sossego do livre pastor, pois que os Deuses nos criaram livres, e é em todos natural o amar a liberdade, ainda que a cegueira dos homens introduziu no Mundo que era mais para apetecer a escravidão mandando, que a liberdade obedecendo. Os Príncipes até a decência os sujeita, pois não consente que estejam, ou andem sem guarda, e assim são docemente prisioneiros dos seus, tendo liberdade para a dar, mas não para a tomar. O quanto é menor o trabalho de obedecer a um, que o de mandar a muitos debaixo dos preceitos de amparar, castigar, favorecer, sustentar, defender, aumentar, e dar exemplo! Mas sendo os homens em tudo inconstante, só o não são me buscar cegamente os Impérios, e procurar aquela falsa liberdade; pois é certo que os que mandam vassalos, passam de livres a escravos de sua pesadíssima obrigação, porque só os abomináveis tiranos pretendem reinar para terem descanso entre os regalos, e põem em esquecimento o cuidado de velarem sobre o bem de seus povos, sendo-lhes assim devedores da fiel obediência, que lhe juram, pelo interesse de que os governem, e amparem; e se aqueles ingratos incitam os Deuses, para que os castiguem, e despertam as gentes, para que os aborreçam, eu vou à vossa presença, clamando aos Céus, para que me descansem; e pois mais desejo servir-vos, do que estimo o ser servido, atendei-me, senhor, e como benigno me ajudai a entregar o cetro, porque é de peso tão excessivo que me faltam já as forças para o poder sustentar; e vos juro sobre os Altares de Minerva conservar a obrigação da mais pura nobreza em vos ser fiel, a honra ilustre em dizer-vos a verdade, e os créditos de bom vassalo em me não afastar dos vossos ditames, pois que os Numes vos assistem, e ireis felizmente a habitar com ele”.

Com estas atendíveis perturbações se mostrava o grande espírito de Anteo, e se enchia de prazer o coração de Arnesto, Isicles se demorou ali por tempo de dois meses, admirando o muito, que floresciam os bons costumes pelo amor, e humilde, com que se obedecia ao Rei; a concórdia, com que viviam os vassalos; a opulência, para que concorria o comércio; e a mais forte coluna de fidelidade em cada soldado contente; porém mais que tudo o admirou a inteireza, com que se administrava justiça, e a brevidade, com que esta evitava as desordens; porque ouvia que se os pleitos duravam mais de um ano, se castigavam rigorosamente os Ministros, que o consentiram, e assim os Advogados, os Solicitadores, e o litigante, que era interessado na demora; e querendo instruir-se, a na boa ordem, com que se defendiam, soube, que quando a causa era tão grave, que no tempo determinado não podia concluir-se, passavam para Tribunal supremo todas as alegações, e documentos de uma, e de outra parte, ao que com admiração dizia:

É possível que parece que venho achar neste pequeno distrito feita a paz entre a verdade, e a mentira, e que sendo estas inteiramente contrárias, se tratem, sem que a confusão dos recursos ponha em dúvida qual tem mais forças, e sem que por muitos princípios possa a mentira opulenta afugentar a verdade, quando é pobre? Sim, porque todo o amargo se adoça, onde um Príncipe prudente sabe amar o seu povo, e este cuida em merecê-lo. Eu tenho girado grande parte do Mundo, e visto admiráveis Monarcas, porém nenhum, que a este se iguale; porque os que são famosos por vencedores, se cansaram para adquirir glória; e os que são pacíficos, se desvelam por descansarem; mas Arnesto soube vencer, sustentar a paz, e moderar a mais danosa guerra, que pode haver, e se permite nas Repúblicas, pela qual as despesas são contínuas, a fadiga excessiva, o fogo cruel, e a fome certa, e quando a honra periga, ou a ambição se interessa, com desordens se acometem os contentores, sendo de toda a sorte prejuízos, ódios, e desaires os despojos daquela guerra, em que rara vez é vencido quem a pode sustentar, e sabe estudar-lhe os lances; nem jamais vi que acabasse, se a parte, que queria eternizá-la, tinha mais dinheiro para sustentar o enredo daquele jogo, que justiça para vencer a contenda (conforme sucede em toda a parte), pois nem o mais reto Ministro pode algumas vezes evitar as dilações, negando-as aqui a vigilante prudência do Soberano para ser o primeiro, que inteiramente mereça os altares, que lhe consagram os seus vassalos, pois são os dilatados pleitos a ruína dos bens, deslustre do brio, e desmaio da honra; porque se nos casos pouco importante é conveniente não mostrar o direito para evitar as despesas, não o permite o brio, não só porque parece frouxidão do ânimo, ou falta de meios, em que a estimação padece, mas também porque se entende, que os que não têm constância para prosseguir, não tiveram razão para negar, ou pedir, e assim pelo muito tempo degenera a carência de justiça em empenho do pundonor. A honra periga, porque os homens se costumam a sofrer que publicamente os trabalhos de falsários, ladrões, mentirosos etc. e se há alguma vez, em que tudo isto se diz com termos colorados, nem assim perdem tais palavras o amargo, que sempre devem os honrados sentir na calúnias, pois todos sabem qual é a valentia do conceito, e naquele prolongado tempo muitos perdem a sua esperança morrendo de cansados, e outros ganham as horrendas cavernas do Cocito.

Assim dizia Isicles com tão viva, quanto justa admiração. Poucos dias antes que se despedisse teve das Majestades um mimo especiosíssimo, e o fizeram condutor de outro, em que Arnesto enviava a Anteo um admirável vestido de armas, onde com o primor da arte estavam abertos ao buril os sucessos das suas peregrinações, a sua efígie, e de Hemirena, Diófanes, e Climinéia, os sacrifícios que celebraram em Tebas; e os carros de triunfo, que houveram em Delos, concluindo tudo no fúnebre espetáculo dos justiçados, para que se acabasse o escândalo, divulgando-se o horroroso efeito dos seus delitos; e também se viam as palmas, que se distribuíam pelos beneméritos, porque quando os conduzisse a morte à mais dilatada vida, se acabassem de viver, não cessasse a Fama de os louvar. Com este vestido de armas iam também de todos os petrechos de guerra, e alguns oficiais capazes para o exercício deles, e também leis tiradas das melhores, que se praticavam em toda a Grécia, proporcionadas ao país, e corretas pela prudente discrição, e experiência de Arnesto, e para a execução delas quatro sábios, que eram nobres, virtuosos, e independentes, que tanto é preciso, para que tenham as leis boa execução. Arnesto satisfazendo as razões de generoso, quis que não ficassem diminutas as demonstrações de amigo, respondendo à carta particular, em que depois dos primeiros cumprimentos continuava, dizendo:

“Já sabeis que os mesmos infortúnios, que me afastaram de Delos, procuraram que as casualidades me restituíssem à amável causa de minhas peregrinações. Logo que de vós me ausentei, ouvi venenosas notícias, que ferindo-me com a seta inflamadora, me reduziram aos delírios de uma invencível tribulação; e com aqueles a quem Deus vendado destina à cruel esfera de fingidos prazeres, tem por lances do entendimento as atrações da vontade, suspirei zeloso, e aflito busquei a morte; mas tomei alento as armas, que por desagravo de Diófanes banhei no indígno sangue dos Coríntios. Encontrei Hemirena, salvando-me de um naufrágio; e ocultando a formosura aos cultos do rendimento, me deu vida, sem saber que eu lhe havia consagrado. Tiramos Climinéia das mãos da morte, mas sem que nos conhecêssemos; porque como é o amor aquele doce tormento da alma, que no desejo consiste, não dispensava nas cautelas o disfarce. Encontramos também Diófanes nas vizinhanças de Tebas, e chegamos a ver quanto interessam os Soberanos em que os amem os vassalos, e que estes nem com lágrimas contínuas acabam de chorar a falta de um Príncipe, que com amor, justiça os governa, pois admirei o imenso prazer dos Tebanos: vi a inexplicável alegria deste povo, e a razão, com que na minha ausência se lamentava enfraquecido.

“As vossas letras me enternecem, e me enternecem, e me admiram vossas resoluções, que sendo filhas legítimas de um espírito puro, também é preciso atender a que, se é grande a glória de adquirir, não é menor a virtude de conservar; e como é precioso que eu vos aconselhe, tendo atenção ao respeito, que me confessam os que vos obedecem, e às doutrinas, que me destes, devo primeiro lembrar-vos que as Estrelas benignas quiseram que tivésseis emprego, para que vos servísseis da sabedoria, despertando os vassalos, para que a amassem; das virtudes, para que fosseis modelo de um Príncipe justo; do entendimento, para que o tempo admire um governo perfeito: da magnanimidade, para que désseis exemplos de fortaleza; e do esforço, para que animásseis os soldados mais com ações de generoso valor, que com palavras de vaidoso capricho.

“Os homens admiráveis, que têm havido no Mundo, quase todos se fizeram com os trabalhos, com os livros, e nos Reinos estranhos, porque os infortúnios dispõem para compadecer, e moderar as paixões: os bons livros fazem que o entendimento abra os olhos, que o homem se veja, e que aprenda a merecer; e a ausência da pátria castiga os ânimos afeminados, ensina com a experiência, faz crescer os homens, para que conheçam, e sejam conhecidos, Sócrates não consentia que os seus discípulos dissessem qual era a sua terra; e os bons insulanos Agitas não declaravam serem nacionais daquela Ilha, enquanto não faziam alguma ação admirável; assim que é mais louvável, que não torneis à pátria trabalhando, para que ela de vós se preze, que como é tão severamente nobre a lei da verdadeira amizade, não permite que vos aconselhe como quero, mas só como devo; reconheço que é maior a grandeza do encargo, que a fausta pompa de reinar; mas onde a empresa é difícil, é mais glorioso o triunfo. A vaidade, a cegueira, e o engano dos homens têm feito no Mundo as maiores guerras, não para obedecer, mas sim para mandar; e por este costume ao que larga o cetro bem possuído, sem que as armas o disputem, o avaliam por demente, ou covarde; e se o deixa, por não cair em erros de um ofício, de que depende a boa ordem de todos os outros, troca pelo descanso de prudente vassalo a glória de bom Monarca. Não penseis em deixar o governo, sim em ser grato aos Deuses, para que vos confortem; liberal com os vassalos, para que bem vos sirvam; prudente no obrar, para que vos imitem; comedido no falar, para que bem falem; e amai o bem comum, para que vos amem; pois que o varão justo não há de perturbar-se, impaciente por não ter tudo no estado, que deseja, mas sim se alguma coisa não obrou como devia; e vedes que os nossos antepassados não adquiriram em descanso a glória, que herdamos, porém servindo na guerra os seus Príncipes; e que sendo mais nobre o mostrar o próprio merecimento, que contar ações alheias, também é mais sublime ornar o palácio com armas ganhadas, que a casa com escudos herdados. Isto vos digo, para que vos não vençam os embaraços, que pensais, pois não experimenta o homem tanto dano, quando a fortuna o desampara, como quando o ânimo lhe falta. Se quereis que não seja o tempo estreito, cuidai muito em reparti-lo, não tirando para vós do que tocar aos vassalos; nem vos perturbe que seja dívida o nosso trabalho; porque assim como a este é obrigada s sujeição, a fidelidade, e os bens dos povos, também não somos devedores mais, que do que permitem a nossa possibilidade, e forças.

“Se o Príncipe não se descuida, o seu descanso é virtude, e não é culpa; e basta que trabalhe por acertar, e vencer as paixões próprias, para que as gentes conheçam, que quando assim desacerta, os Deuses o determinam para castigar os vassalos.

“Não julgueis que só para os Soberanos não tenham limite os perigos, pois é o seu distrito o Mundo, onde todo o racional deve temê-los, mas é certo que é limitada a humana capacidade, para que um se encarregue de responder por muitos; porém os Numes inspiram, as virtudes animam, e os bons ajudam. Estes, se quereis conhecê-los, observai profundamente os homens como falam, se têm nobre lisura no que tratam, se usam verdade, se acompanham com os melhores; e não são orgulhosos, porque rara vez deixará de ser bom aquele, em que resplandeceram estas virtudes.

“Nem vos aflijam os enganos, a que somos arriscados; porque se é gênio antigo dos homens o irem sempre contraminando para bem lograr os seus intentos, também a ingenuidade das virtudes sabe penetrar fingimentos, e conhecer a condescendência dos lisonjeiros; e como sabeis que há este gênero de guerra, mais vezes os haveis de concluir, que eles vencer-vos; porém é certo que todos erram, e não há algum, que não tenha defeitos, por mais sábio, e entendido que seja. Assim como não há senhor tão poderoso, que não possa ser vencido, nem sábio, que não ignore muito, nem benquisto, que não tenha inimigos; pois que todos podem menos do que desejam, têm menos amigos do que entendem, e sabem menos do que presumem.

“Também é certo que o respeito é um inimigo doméstico, de que a Majestade precisa, ainda quando é oposto aos seus acertos. Nós giramos o Mundo, e sabemos o que nos ensinou a plebe, com quem conversamos; vivemos entre os bons, e os maus; observamos os que tinham mais, ou menos nobreza; assistimos com os pobres, e choramos com os perseguidos; e quando agora chegamos a reinar, sabíamos o que ignoram os que como nós obram na face do Mundo. Ah que se pudessem despir por algum tempo a Real grandeza, e a presentânea, veriam os Soberanos provada a identidade da razão! Nós padecemos fomes, frios, sustos, desprezos, injustiças, e imensos perigos; isto conduz muito para servirmos melhor os nossos ofícios, que os que entendem que é fantasia o pranto dos que padecem que todos os homens do Mundo só nasceram para os servirem; que não há mais, que o que podem alcançar com a vista; e assim os haverem trabalhos, desamparos, pobreza, e injustiças, não lhes faz no ânimo impressão, pois alguma vez o ouviram de tão longe dos que apenas lhe chegaram amortecidos ecos de alguns dos que suspiram aflitos; e tudo bem ponderado, não tendes tanto que temer nos cuidados, como eu razão para desejar-vos no trono.

“Bem sabeis que os sábios soberbos, quando eram mais preciosos, maltratavam a gentes, e desfrutavam mais que o Rei a autoridade Real, sem que jamais fossem castigados os seus maus procedimentos; porque o que rodeiam aos Soberanos, o calam por se algum, que despreze o temor pânico, para dizer o que sabe, ou o Rei se desgosta, ou os servos o arruínam; e de toda a sorte melhor serve quem menos presume; se se desvela por acertar, tem bondade nobre; e mais teme os remorsos internos, que os ameaços da morte.

“Os que são mal vistos do povo, também sabeis que fazem ser o Rei suspeito nos erros, que lhe condenam, e que são a causa de que desmaie o zelo, e o fervor, com que os vassalos se empenham nas empresas, quando têm fé nos que dão o conselho; e assim se malogram os bons arbítrios, porque são postos em prática por mãos do ódio; porém estas, e outras muitas circunstâncias são menos ponderáveis, que outros danos, que podem resultar de servir-se o Príncipe (em cousas de alta ponderação) com homens, que são odiosos ao pública, pois não os ocupar não é mais que deixar de aproveitar-se de alguns homens capazes, e de atendê-los algumas vezes têm procedido sucessos lamentáveis.

“Os que estudavam mais a própria conveniência, que em servirem, como honrados, sempre vimos que vendiam tão caro o fruto de seus estudos, que nunca entendiam serem pagos, ainda quanto mais recebiam: estes em toda a parte roubam sem susto, e são como os que no tempo das dissenções procuram agradar a ambos os partidos, que nem a um, nem a outro servem.

“Os que deixando ser bem vistos maquinavam perturbações, lembro-vos que para eles eram reprovados os remédios brandos, e suaves; porque como é duvidoso o seu efeito, em casos graves, sempre obram melhor os que são áspero, e fortes, pois não se deve encomendar ao tempo o que toca à violência. Se assim recordardes o que vimos pelo Mundo, conhecereis os homens, servir-vos-ão os melhores, e vivereis com eles gostoso, tendo cuidado em evitar os danos, antes que sejais obrigado a castigá-los, e obrando como quiséreis que tivesse convosco obrado os Soberanos; advertindo sempre que não honrar a quem o merece, negar o que com razão se pede, e não premiar a quem com desvelo serve, muitos vimos que o sofriam, porém nenhum, que o deixasse entregue ao silêncio: pelo que é também preciso ver a quem dais, para que o tenha merecido; o que dais, por não dar pouco; e quando dais, por não ser tarde; porque ainda que de toda a sorte se aceita poucas vezes se agradece.

“Cuidai em que os vossos exércitos andem bem disciplinados, e os soldados contentes, porque estes são as melhores muralhas das Cidades: fazem a grandeza do Rei, conservam-lhe o respeito, defendem-lhe os domínios, resguardam-lhe os povos, seguram-lhe a coroa, castigam-lhe inimigos, e estão para dar por ela a vida; e quando se admira o bem formado corpo de um exército poderoso, não só se contempla como respira o seu Soberano, mas parece que o respeito chega a ver com assombro o grande espírito da Majestade.

“Também deveis pensar na educação dos filhos dos vassalos, pois pelo que servem, mais o são da República, e da vossa esperança, que dos seus próprios pais.

“Vós não procuraste reinar, oprimir, sujeitar, e preferir a todos, como ordinariamente desejam os homens, que tomam aquele vaidoso empenho da soberba, com que destroem a sua felicidade; e suposto que para bem obrar não careceis dos meus ditames, como as paixões costumam escurecer os mais claros entendimentos, vos torno a lembrar que os Deuses vos escolheram, para que fosseis amparo dos bons, terror dos maus, alento das virtudes, e pais dos vossos vassalos, pelo que vos rogo que os animeis como Príncipe virtuoso, pois eu vos respondo como verdadeiro amigo, vos aconselho com expressões de legítimo afeto, vos animo com leis de boa razão, e justiça, com armas, e homens, que vos descansem, e com memórias de meus trabalhos, para que vejais que se as fadigas fazem o descanso, também este entre nós faz guerra às virtudes, que em vós sempre aumentem os Deuses consoladores.”

Assim terminou Arnesto a sua admirável resposta, em que se ostentavam gloriosas as doutrinas de Anteo, para quem se reservaram estes sazonados frutos.

Isicles determinando a sua partida para Nácsia, se despediu das Majestades, e juntamente os Oficiais de guerra, e os Jurisconsultos, que deviam embarcar. Arnesto com suaves expressões, e discretos ditames os enriquecem de admiráveis máximas, que nos vassalos radicaram amor, e nos estrangeiros veneração.

Embarcando Isicles, se repetiram festivas demonstrações, e muitos àqueles Soberanos, até que entre o estrondo das salvas, e as sonoras vozes dos clarins, perderam de vista a Delos, levando a notícia do gosto, e paz, com que ficavam gozando o verdadeiro afeto dos súditos, e os descansos, para que haviam concorrido as fadigas, conhecendo todos, que sempre é vencedora a verdade, e que a formosura triunfa, quando é constante a virtude.