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Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 11

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XI

O FRANCÊS SEM CORAÇÃO



UM dia surge um selvagem pela cabana de Hans, gritando :

— "Está cá o francês mercador de pimenta; vamos agora verificar se és da mesma raça dele ou não".

O pobre artilheiro exultou de contentamento. Era um cristão que vinha ao seu encontro e que fatalmente o salvaria. Apressou-se, portanto, em comparecer á presença daquele juiz que lhe caia do ceu.

Essa entrevista, meus filhos, é uma cena de tragedia das mais empolgantes. Quem a figura na imaginação não a esquece nunca mais.

Os selvagens levaram-no á presença do francês, nú como ele andava, tendo apenas nos ombros um pano de linho que achara na aldeia.

O mercador de pimenta dirigiu-lhe a palavra em francês. Hans, que mal conhecia essa lingua, atrapalhou-se nas respostas. O monstro, então, voltou-se para os selvagens e disse-lhes em lingua da terra :

— "E' português dos legitimos, meu e vosso inimigo. Matem-no e comam-no !"

— Que horror ! exclamou Narizinho. Que monstro de crueldade ! Como podem existir no mundo creaturas assim ?

— Realmente, minha filha, custa crer que possam existir no mundo almas tão duras. E se o efeito da sua resposta é em nós o que você sentiu, imagine qual não foi no misero prisioneiro que depositara nesse cristão todas as suas esperanças !...

Hans insistiu ainda, pediu-lhe por misericordia que o salvasse da sanha dos selvagens. Tudo inutil. O francês era de pedra.

Desesperado de todo o socorro, Hans repetiu uma imprecação do profeta Jeremias: "Maldito seja o homem que nos outros homens confia" e retirou-se com a alma espedaçada.

Em caminho arrancou o pano dos hombros — pano que usava para abrigar-se do sol que muito o castigava.

— "Se tenho de perecer, para que resguardar esta carne em proveito dos indios?"

Os indios levaram-no de novo á cabana da sua prisão, onde Hans se atirou ao solo, a chorar em aflição extrema.

Os indios murmuraram logo :

— "E' português legitimo : está agora a lamentar-se de medo da morte".

O francês demorou-se dois dias na taba; no terceiro partiu. Ipirú, então, resolveu que se fizessem os preparativos necessarios ao devoramento do prisioneiro.

Uma desgraça nunca vem só. Para cumulo de tanta miseria, Hans amanheceu com uma dor de dentes que quasi o pôs louco e que, como era natural, não o deixava comer coisa nenhuma.

Ipirú-guassú veio indagar por que motivo não comia; ao saber da causa saiu, voltando logo depois com um instrumento de pau para lhe extrair os dentes.

— Que instrumento seria esse? indagou Pedrinho, que mostrava certa vocação para a arte dentaria.

— Não sei, respondeu dona Benta. Mas devia ser um instrumento de meter medo, porque o pobre Hans, logo que o viu, declarou sem demora que a dor já havia passado.

Mesmo assim o indio insistiu em arrancar-lhe os dentes, muito custando a Hans fazê-lo desistir da ideia. Ipirú-guassú, então, ameaçou-o de matá-lo antes do tempo, caso persistisse em não comer.

— Por que, vóvó? indagou a menina.

— Porque, não comendo, emagreceria e os indios queriam comê-lo gordo...

E assim o pobre Hans, para prolongar um pouco mais a sua triste vida, teve de comer á força, embora a estalar com a sua horrorosa dor de dentes.

Alguns dias depois os indios o levaram para a taba de Ariariba (lugar das ostras), onde morava o grande chefe tupinambá Cunhambebe, um dos poucos selvagens que deixaram nome em nossa historia.

Havia lá uma grande festa, na qual os de Ubatuba queriam exibir o prisioneiro como se fosse um animal raro.

Hans foi. Ao aproximar-se da taba ouviu forte rumor de cantos e trombetas, e viu defronte das cabanas quinze cabeças espetadas.

Apavorou-se com o horrivel quadro e disse consigo: "Amanhã, talvez, estará lá tambem a minha"...

E foi neste doloroso estado de alma que penetrou na taba sinistra, rodeado de guardas que iam gritando :

"Aqui vos trago o escravo pero que caçamos na Bertioga !"

Os indios correram a examinar a bela peça de caça loura e de olhos azues, e depois o conduziram á presença do grupo de chefes, que estavam a beber cauim. Os chefes olharam-no desconfiados e disseram:

— "Vies como inimigo ?"

Hans respondeu :

— "Vim, mas não como inimigo".

Os chefes deram-lhe então de beber.

Hans já conhecia de fama o cacique Cunhambebe [1], guerreiro audacioso e habil, que muito mal fazia aos portugueses. Mas não o conhecia pessoalmente. Como ninguem lho designasse, dirigiu-se a um que pelo aparato e truculencia parecia ser tal chefe.


— “E's tu Cunhambebe ? Vives ainda ?”

— “Sim, respondeu o indio; vivo ainda”.

— “Já muito ouvi falar da tua pessoa e sei que és um homem de grande coragem”.

O morubixaba ergueu-se, cheio de orgulho, e pôs-se a passear pela sua frente, qual um pavão. Usava grande pedra verde no labio inferior, e ao pescoço trazia um colar de conchas brancas, de umas seis braças de comprimento. Depois sentou-se de novo e perguntou por que motivo Hans atirara contra eles na Bertioga.

O prisioneiro respondeu:

— "Os portugueses me puseram á força no forte e me obrigaram a atirar".

— "Mas tu és pero, o francês o disse; tu não entendes a lingua dele".

Hans, aflito, respondeu:

— "Sim, é verdade que a não entendo bem; estive muito tempo fóra da terra dos franceses e esqueci a lingua. Mas não sou pero".

Cunhambebe sorriu com incredulidade e disse:

— "Já comi cinco portugueses e todos mentiram”.

Hans estremeceu ao ouvir tais palavras, perdendo a pouca esperança de salvar-se que ainda tinha.

Cunhambebe continuou, perguntando o que os portugueses diziam dele e se o temiam.

— "Sim, respondeu Hans, falam muito de ti e das guerras que lhes costumas fazer; porisso fortificam melhor a Bertioga".

O morubixaba radarguiu :

— "Hei de caçá-los a todos, como os de Ubatuba caçaram a ti".

Hans acrescentou :

— “Teus verdadeiros inimigos são os tupiniquins, os quais preparam vinte e cinco canoas para atacar tua gente".

— "Havemos de vencê-los e devorá-los a todos", foi a resposta do chefe, que se regozijava dos muitos indios e peros que havia comido.

Durante a entrevista esgotou-se a cauim daquela cabana e os bebedores passaram-se para a imediata, terminando assim o primeiro encontro de Hans com o terrivel Cunhambebe.

— Estou com medo, vóvó, disse Narizinho. Esse Cunhambebe me faz tremer...

— Pois eu, contraveio Pedrinho, estou entusiasmado. Gosto de um tipo assim! Ele estava no seu papel. Estava defendendo a sua terra, invadida por estrangeiros. Tinha direito de comer quantos peros quisesse.

Narizinho fez cara de horror ante a bravata do menino, Dona Benta riu-se e continuou.


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Gago, lingua arrastada.