Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 12

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XII

ANTROPOFAGIA



CUNHAMBEBE além de terrivel comedor de inimigos era um guerreiro de valor. As suas expedições contra os tupiniquins e portugueses eram bem conduzidas e causavam sempre estragos enormes.

Numa outra ocasião Hans Staden encontrou-o sentado á frente de uma grande cesta de carne humana. Cunhambebe estava comendo uma perna, que chegou á boca de Hans, perguntando-lhe se gostava.

Hans repeliu o horrivel assado, dizendo que, se nenhum animal irracional comia o seu semelhante, como podia um homem comer a outro ?

O antropofago cravou os dentes na carne, arrancou um naco e respondeu com a boca cheia :

— “Jauára ichê (sou um tigre). Está gostoso !”

— Realmente, que tigre ! exclamou Narizinho horrorizada, olhando para Pedrinho, que desta vez não teve animo de defender o canibal.

— Depois que Hans deixou Cunhambebe, continuou dona Benta, os indios levaram-no em exibição de cabana em cabana.

Um filho do cacique atou-lhe as pernas em tres pontos e obrigou-o a pular de pés juntos. Todos riam-se e exclamavam :

— “Aqui está a nossa comida pulando !"

Hans desconfiou que aquilo já fossem preparativos para o sacrificio e perguntou a Ipirá se o iam matar naquele dia. Ipirú respondeu que não, mas que era costume tratarem assim aos prisioneiros.

— Faziam como faz o gato ao camondongo, lembrou Narizinho.

— Isso mesmo, confirmou dona Benta, mas notem vocês que havia nisso mais brincadeira do que crueldade. Não ha termo de comparação entre o modo pelo qual os indios tratavam os prisioneiros e o que era de uso na Europa. Lá a “civilização” recorria a todos os suplícios, inventava as mais horrendas torturas. Assavam os pés da vitima, arrancavam-lhe as unhas, esmagavam-lhe os ossos, davam-lhe a beber chumbo derretido, queimavamna viva em fogueiras. Não ha monstruosidade que em nome da lei ou de Deus os carrascos civilizados não tenham praticado. Mesmo aqui na America o que sobretudo os espanhois fizeram é de arrepiar as carnes. Os indios, não. Brincavam com as vitimas, apenas. Assim é que depois da tal dansa de pernas amarradas eles rodearam Hans para escolher pedaços. A perna é minha, dizia um; o braço é meu, dizia outro; eu quero este pé, exclama terceiro.

Em seguida obrigaram-no a cantar; Hans obedeceu e entoou versos religiosos em latim. A curiosidade dos indios quis logo saber o que significavam.

— “São versos cantados em honra do meu Deus”, explicou Hans.

— “Teu Deus é “tipoti” (excremento), exclamaram diversos.

Hans, que era muito piedoso, magoou-se com aquilo e murmurou, olhando para o ceu: “Como podes tu, Deus poderoso, sofrer com paciencia estes insultos ?”

Finda a festa, os indios reconduziram o prisioneiro á taba de Ubatuba. No momento da partida os ariaribenses gritaram-lhe : -

— “Breve lá estaremos para provar da tua carne !”

Não se pode imaginar um botafóra mais sinistro...

Hans regressou a Ubatuba, onde novos dias se passaram sem que os indios se resolvessem a comê-lo. Iam contemporizando sem que ele soubesse por que.

Certa madrugada houve grande reboliço na aldeia.

— “Os tupiniquins !” gritavam os indios, correndo de um lado para outro, em preparativos para a luta. De fato, era um bando de tupiniquins, vindos em vinte e cinco canoas, que rodeavam e atacavam à aldeia a flechadas.


Hans aproveitou-se do ensejo e disse aos tupinambás:

— “Vós me tendes por português, mas vou provar-vos que não sou; dai-me arco e flechas que quero ajudar-vos na defesa da taba”.

Os indios aceitaram a proposta; deram-lhe armas e Hans portou-se como um verdadeiro chefe, gritando para animar os defensores e atirando flechas o melhor que podia. Sua intenção, porém, era saltar a estacada logo que pudesse e fugir para o campo tupiniquim, onde o acolheriam como amigo. Mas aconteceu que em meio da luta os atacantes desistiram do assalto e retiraram-se para as suas canoas. Não pôde, pois, o nosso Hans realizar a fuga que havia projetado e teve que voltar para a cabana que lhe servia de cadeia.

Na noite desse dia os chefes tupinambás reuniram-se ao luar, no centro da taba, e levaram-no para o meio deles por entre zombarias e maus tratos. Iam resolver sobre a época do seu sacrificio. Enquanto os indios conferenciavam, Hans, muito triste, olhava para a lua, a dizer consigo:

— “Oh, meu Deus, ajuda-me nesta aflição e faze que breve me veja livre deste martirio”.

Os selvagens estranharam-lhe os modos e perguntaram-lhe por que olhava tanto para a lua.

— “Noto que ela está zangada”, respondeu ele. E, de fato, a lua lhe parecia terrivel, como Deus lhe parecia terrivel, como tudo lhe parecia terrivel.

Nhae-pepô, que era um dos que mais desejavam o seu sacrificio, perguntou-lhe :

— “Com quem estã zangada a lua ?”

Hans respondeu com ares misteriosos :

— “Ela olha para tua cabana...”

Nhae-pepô enfureceu-se. Para abrandar-lhe a colera Hans remendou o dito:

— “Não será contigo; ela deve estar zangada com algum dos teus escravos carijós”.

O incidente parou aí, mas teve consequencias inesperadas, como veremos depois.

No dia seguinte chegou a noticia de que os atacantes da vespera, ao sairem dali, dirigiram-se a Mambucaba, cuja aldeia assaltaram e incendiaram. Os moradores puderam fugir, com exceção de uma criança que foi capturada. '

— Coitadinha ! exclamou a menina, compadecida. E foi comida ?...

— Não sei, respondeu dona Benta; Hans Staden nada conta do destino dessa infeliz, mas a mim me parece que a não mataram. Os indios poupavam as crianças.

Nhae-pepô tinha em Mambucaba parentes e amigos e ao saber do desastre resolveu ir socorrê-los e ajudá-los na reconstrução de suas cabanas. E para lá se foi com varios auxiliares, levando a provisão de farinha de mandioca preparada para a festa do devoramento de Hans.

Este imprevisto incidente veio retardar o sacrificio e permitir que o prisioneiro respirasse com alguma esperança.

— Que situação horrivel, vóvô, a de um homem no caso de Hans! disse a menina. Saber que vai ser comido e viver assim — é hoje, é amanhã... Seria preferivel que o matassem logo no primeiro dia !

— Se o matassem logo no primeiro dia, não estavam vocês hoje a ouvir a sua historia, respondeu dona Benta.



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.