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Aventuras do Dr. Bogoloff/III

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O que se passou comigo no Estado dos Carapicus pode parecer impossível a quem não estiver lembrado da situação de desmando por que passava àquela época a política brasileira. Se até então um resto de pudor faziam com que se disfarçassem as violências e as ilegalidades, apoiados pela força federal, ao serviço de ambiciosos saídos de seu seio ou fortemente protegidos por pessoas influentes nela, os sindicatos políticos faziam o que entendiam e não guardavam conveniências.

Havia exigências terríveis nas leis para as eleições de governadores, como fossem: um dilatado prazo de residência no Estado, não exercer algum tempo antes das eleições cargos de mando e outros; mas, quando se tratava de ajuntar Fulano ou Beltrano para usurparem as governanças regionais, não atendiam a isso e procuravam pessoas que dispusessem da dedicação do Presidente ou de homens que, por sua vez, dominassem o ânimo presidencial.

Entre estas últimas havia um tal Bonifácio, que fora seu copeiro e deixara de sê-lo para se transformar numa espécie de "maitre du palais". Não se sabia bem de onde lhe vinha esse ascendente, mas o certo é que ele fazia e desfazia na República. As nomeações, as mais baixas e as mais altas, eram em geral feitas por sua inspiração; exigia demissões e indicava presidentes de Estado.

Esse Dr. Manoel da Silva, de quem, em tão má hora, me fiz homônimo, era seu médico, e, muito agradecido aos seus préstimos profissionais, Bonifácio, sabendo-o natural dos Carapicus, fê-lo de conchavo com certos ambiciosos de lá, candidatos à presidência de tão obscuro Estado.

Ninguém o conhecia nos Carapicus, pois lá nascera quando seu pai estivera em comissão na respectiva Alfândega; viera de lá com um ou dois anos e desenvolvera a sua vida na Capital, rompendo o caminho comum aos rapazes de juízo e prudentes, isto é, formara-se em Medicina, arranjara um emprego de médico na Marinha e, assim, vivia ignorado, quando Bonifácio lhe acenou com a alta situação de presidente do Estado.

O fato de tomarem-me por ele não proveio absolutamente de qualquer semelhança física. Não lhe era sósia, havia, ao contrário, entre nós dois, muitas dessemelhanças. Era eu alto e ele baixo; era eu pálido, "mate", e ele, corado; eu tinha o rosto comprido e ele, redondo; eu tinha o nariz alto e aquilino e ele, um largo e achatado.

Não fora pois a semelhança, mas unicamente o nome e o fato de sermos ambos louros, coisas que, ajudadas pelo seu total desconhecimento no Estado, convenceram os seus partidários de que eu era o seu "salvador".

Viram os senhores até que ponto os acontecimentos me levaram; mas não lhes pude dizer as conseqüências que tais sucessos determinaram. No Estado, as coisas se explicaram e todos ficaram satisfeitos; mas, conhecida a história no Rio de Janeiro, não tardaram os jornais oposicionistas, que eram quase todos, a explorá-la, a troçá-la em todos os tons e alguns mais ferozes frisaram bem a minha condição de funcionário público e os governistas acusaram-me de ter-me vendido aos oposicionistas para, de tal maneira, desmoralizar o benemérito governo do general Simplício, "o único que até agora tinha sido verdadeiramente republicano".

Quem mais zangado ficou comigo foi o tal Bonifácio, o poderoso heril do presidente fainéaut . Era um tipo de sujeito comum, mas azedado pelos baixos ofícios que tinha exercido e desmedidamente envaidecido pela posição em que a sorte o colocara. Fora sargento de batalhão e trazia para a alta administração a concepção de governo de uma companhia. Não tinha podido ainda formar-lhe na cauda; não se me oferecera ocasião, de modo que fui sacrificado e ninguém se animou a defender-me diante dele.

Ao chegar ao Rio, tive notícia de demissão, a bem de tudo. Não deixava de ser um acontecimento bem importante na minha vida. Ganhava quase dois contos de réis e nada fazia, a não ser despachar licenças para as vacarias e estábulos da cidade.

Tendo vivido sempre na miséria e, possuindo pela minha educação gosto pelas altas coisas, logo que vi dinheiro, comecei a gastá-lo. Comprei alfaias, roupas, móveis e livros.

A minha casa, nas Laranjeiras, era um primor e, tendo bem forte os sentimento da miséria e das necessidades, tive a bolsa sempre aberta aos grandes e pequenos pedidos de dinheiro que me faziam.

Desse jeito, ao me despedirem, eu me encontrava completamente desprevenido. Não desesperei e procurei o Senador Sofônias para ver se ele inutilizava a minha exoneração.

Recebeu-me o Senador com a cara fechada e uma solenidade grotesca de grande sacerdote de uma extravagância religiosa da África ou da Ásia. Foi-me dizendo logo:

— Menino, não gosto que os meus amigos concorram para a desmoralização do regime.

Apanhei o ar mais humilde que me era dado ter, e disse ao sumo pontífice do regime:

— V. Exa. não sabe como as coisas se passaram. Não tenho absolutamente culpa. O "homem" não era lá conhecido. Quis livrar-me das cacetadas das consultas sobre moléstias de bois, cavalos, cabras e até de cachorros e gatos e dei aquele nome no hotel, sem saber que, por ele, acudia o eminente político que V. Exa. apoia. Não o conhecendo, tomaram-me por ele e, sob ameaças, fizeram-me aceitar o papel a contragosto... Foi assim.

Dei-lhe mais detalhes, narrei-lhe toda a verdade e ainda acrescentei:

— Admira-me que V. Exa. tenha patrocinado a candidatura de pessoa que ninguém conhece no Estado.

— Eu! Isto está tudo de patas para o ar...

Depois, como se quisesse apagar o efeito daquele desabafo, ajuntou:

— Não patrocino coisa alguma. Disseram-me que era o povo, o Bonifácio o quer e eu também o quero. Menino, no nosso regimen, não há patrocínio; há escolha da soberania popular. Este é que é o seu "status quo".

Não deixei e admirar as conseqüências de tal teoria, dando em resultado o advento de um desconhecido ao tal povo e também aquele emprego engraçado de "status quo", mas evitei fazer qualquer comentário e falei-lhe na minha reintegração:

— Compreende V. Exa. que nem tive tempo de dar começo ás minhas experiências. Sinto até remorsos de ter recebido do governo tanto dinheiro e nada ter feito. Desejava muito poder voltar para mostrar de que forma os meus projetos são excelentes.

Sofônias acendeu o cigarro, ergueu-se, pôs uma das mãos à cintura e, agitando a direita com um jeito sacerdotal, aconselhou-me:

— É preciso ter muito cuidado com os pequenos fatos. São os grãos de areia que mudam a sorte dos impérios. Não me posso meter no teu, porque o autor da demissão é o Bonifácio, um rapaz orientado, verdadeiro republicano, respeitador fetíchico do regimen... Deves procurá-lo e, antes, explicar como foi a coisa pelos jornais.

Sentou-se, quando acabou, e eu lhe objetei:

— Mas, Senador, V. Exa. há de anuir que eu não posso confessar que me obrigaram à força a ir ao palácio.

— É verdade, menino. mas tens um bom "desgarro".

— Qual é?

— Afirmas que foi a multidão. Procura por aí um rapazola hábil nessas coisas de escrever e pode ser que arranjes a coisa.

Senti bem que a minha entrevista estava terminado e despedi-me. Segui o alvitre do Senador e imediatamente redigi a explicação que ia dar ao público e aos meus amigos. Publiquei-a nos "a pedidos" do Jornal do Comércio e, nela, eu dizia que, tendo tomado aquele nome ao acaso, para, mais em sossego e segurança, inspecionar os serviços do Ministério, sem me lembrar que era o do eminente político eleito governador dos Carapicus, a multidão, sem verificar identidades, mas apaixonada pelo nome que representava o seu ídolo, que resumia uma sua esperança de farta prosperidade, obrigou-me a ir tomar posse do alto cargo. Quem conhece a psicologia das multidões, dizia eu, sabe perfeitamente como essas coisas se passam e diante delas qualquer de nós tem e se curvar às suas vontades, como nos curvamos diante das manifestações das forças da natureza. Elas são o raio, o vento, a chuva, ao mesmo tempo; elas são verdadeiros cataclismos. Apontava testemunhas, citava episódios, e fiquei mesmo contente com o meu escrito.

No dia seguinte, resolvi-me a procurar o Bonifácio, no palácio governamental. Havia, na sua antecâmara, mais de cinqüenta pessoas, metade das quais eram mulheres, moças bem postas e galantes.

A ansiedade se estampava naquelas caras e, em muitas, havia também o vexame.

O Estado é o mais forte desmoralizador do caráter. Mais que os vícios, o álcool, o jogo, a morfina, a cocaína, o tabaco, ele nos tira toda a nossa dignidade, todo o nosso amor-próprio, todo o sentimento de realeza de nós mesmos.

Muitas daquelas eram pessoas de cultura, de educação; entretanto, para obter isso ou aquilo, se tinham que agachar, que adular um tal Bonifácio que, no fim de contas, não passava de um criado do Sr. Presidente.

Depois disso, que sensação delas mesmas poderiam ter? Fossem servidas ou não, sairiam degradadas.

Bonifácio passou por nós e entrou no seu gabinete. Todos nós nos desfizemos em sorrisos e cumprimentos e, quase sem nos corresponder, como se fosse um imperador, foi atravessando aquela chusma de súditos necessitados.

O seu tipo físico não lhe dava majestade, mas arrogância. Era baixo, com o pescoço enterrado nos ombros; a roupa assentava-lhe mal, embora fosse cara de preço e de alfaiate. No seu rosto acobreado com malares salientes, os seus olhos pardos e pequenos morriam sem brilho. Donde lhe vinha aquele poder de Charles Martell? Donde lhe vinha aquela dominação extraordinária? Ninguém sabia. O certo, porém, é que ele se pusera acima de tudo e não havia objeção legal que detivesse os seus caprichos.

Tardei muito em ir à sua presença, pois fui um dos últimos. Quando atravessava a porta do seu gabinete, veio-me ao espírito uma pequena dificuldade. Como devia tratá-lo? Sabia que tinha uma patente da guarda nacional, mas de que posto ignorava. Seria melhor tratá-lo de Doutor e, logo que me pus na sua frente, fui dizendo, sem reflexão:

— Doutor...

Estava quase a arrepender-me, mas notei que ele não se aborrecera. Ao contrário; a sua má fisionomia tomara uma rápida expressão de satisfação. Continuei:

— Doutor, eu sou o Dr. Gregory Bogoloff que...

Bonifácio adiantou-se e interrompeu-me:

— Sei. Li sua explicação. Sente-se, pois preciso falar-lhe demoradamente.

Animei-me com acolhimento tão lisonjeiro e eu mesmo me disputei em baixeza e adulação:

— Vi logo que o esclarecido espírito de V. Exa. ficaria satisfeito com as minhas palavras.

— Não digo que não, mas há um ponto que não está bem explicado.

— Qual é, Doutor?

— Por que você (gostei da mudança) não fugiu?

— Não havia meios. Temi que na estrada de ferro me reconhecessem e...

— Mas podia fugir de canoa para o Estado das Abóboras, que fica perto.

— Perto! São duzentos quilômetros!

— Tanto? No mapa ficam tão juntos!

— Ah! Isto é no mapa.

— Bem. São coisas de astronomia que não entendo. A minha preocupação é não deixar o Simplício ser embrulhado, por isso meto-me nessas coisas... Só quero amigos no governo dos Estados.

— V. Exa. faz muito bem, porque não faltam aí traidores. Aprovo "in totum" o procedimento de V. Exa. O governo e as leis são feitos...

— Leis! Bacharelices! Espoliações!

Expliquei-lhe que desejava a minha reintegração, tanto mais que eu era inocente, como se havia verificado.

— Não posso fazer isso que você pede. O lugar já foi preenchido, mas não faltará ocasião para servir ao amigo. Conte comigo.

Deu-me uma amigável palmada no ombro e eu sai certo de que ele não me arranjaria coisa alguma.

Vendo-me nessa situação, tratei de liquidar a minha casa, apurar o dinheiro que pudesse e viver o mais economicamente possível.

Vivi assim cerca de seis meses folgadamente, mas ao fim desse tempo, começou o dinheiro a escassear e eu passava os dias a arquitetar planos que me fizessem sair do embaraço.

Tinha ainda bastante roupa branca e ternos bons; mas, as botinas e o chapéu começavam a ficar velhos. Influi muito no nosso destino um chapéu ensebado ou umas botinas cambaias e, como eu não desanimava de encontrar uma posição oficial, era-me necessário tê-los novos, para que os políticos não fugissem de mim.

A principal função dos políticos é dar empregos, mas eles não gostam de ser atormentados com pedidos e detestam que os maltrapilhos o façam.

De modo que, para eles, quem precisa de emprego, para viver, deve estar cheio de dinheiro com que pague bons vestuários.

Sabendo muito bem desse ponto de psicologia política, assisti com pesar à ruína dos meus chapéus e o acalcanhamento das minhas botas. Tinha uma cartola que, por pouco uso, estava nova em folha e dei em usá-la comumente.

Sem querer aumentei minha consideração e muita gente que me supunha na miséria, passou-me a tratar de forma mais atenciosa possível. Resolvi, por esse tempo, dar um plano que me trouxesse um chapéu novo, porquanto aquela cartola usada todo dia podia dar a entender que eu não tinha outro chapéu. Não convém usar muito repetidamente a cartola. No começo, faz sucesso; mas, com o correr dos dias, denuncia a miséria em que estamos.

A questão do chapéu era para mim importante e decidi-me a resolvê-la quanto antes.

Quase sempre nas minhas excursões pelas casas dos políticos, ia tomar uma garrafa de cerveja a uma pequena confeitaria situada num arrabalde. Desde a segunda vez que lá fui, o caixeiro, à falta do que fazer, pôs-se de conversa comigo. Não deixei de dar-lhe atenção e a todas as suas perguntas respondia com o máximo desenvolvimento. Gostou ele muito da minha prosa e apreciou sobremodo a minha erudição. Passei a tomar duas garrafas em vez de uma e fui estreitando a amizade que tinha com ele.

Certo dia, estava eu conversando com a minha recente amizade, quando fiz reparo que, defronte à confeitaria, havia uma chapelaria. Notei ainda que os chapéus não eram maus e, não sei bem por que, veio-me a idéia de que aquele era o estabelecimento destinado a fornecer-me o chapéu. Eu queria um chapéu bom e os meus cobres não chegavam para isso. Pensei e achei um excelente plano para obter um.

Creio que a coisa se passou numa sexta feira. Cheguei muito cedo à confeitaria e disse ao caixeiro, meu amigo:

— Tenho que dar uma festa lá em casa e preciso de doces. Fui a diversas confeitarias e não puderam aceitar-me a encomenda, pelo simples motivo de que já têm muitas. Você podia servir-me?

— Pois não, Dr.

Tinha com jeito dado a entender ao caixeiro que era doutor, mas não lhe disse o meu verdadeiro nome.

— Bem. Então você me manda preparar isso e mais cinqüenta pastéis.

O caixeiro já ia correr aos fundos para fazer a encomenda, mas eu o detive e intimei:

— E mais cinqüenta pastéis! Não se esqueça!

O amigo foi à cozinha. voltou e eu disse-lhe então:

— E mais cinqüenta pastéis! Veja bem!

— Estão encomendados.

— Logo mais, quando vier buscá-los, pagarei.

— Não há dúvida, Doutor.

Saí muito contente e entrei na chapelaria como um rei. Pedi um chapéu e o caixeiro não tardou em servir-me. Escolhi com todo o vagar, mirei-o no espelho e disse com todo o garbo:

— Quanto custa?

— Vinte e cinco mil réis.

Aprumei-me todo e disse com toda ênfase:

— Não tenho aqui o dinheiro bastante; mas não há dúvida. Deixei ali, na confeitaria, cinqüenta mil, para pagar uma conta e vou ordenar que lhe deem vinte e cinco. Venha cá!

O caixeiro seguiu-me e, ao chegarmos à porta, apontava um bonde.

— Que diabo! — disse eu. — Lá vem o bonde... Não há dúvida. Falo daqui mesmo.

E gritei para a confeitaria, chamando o caixeiro:

— Chico! Chico!

Não tardou que o meu espontâneo amigo aparecesse na porta. Eu lhe disse:

— Daqueles cinqüenta, manda vinte e cinco para o senhor, ouviu?

E apontei o empregado da chapelaria, que estava ao meu lado.

— Sim, senhor! — respondeu o Chico

O bonde chegava, despedi-me do caixeiro da chapelaria, que muito contente me oferecia o chapéu embrulhado.

Tomei o lugar no bonde e não sei do seguimento a aventura, porque nunca mais voltei por aquelas bandas, mas fiquei com o chapéu e não fui perseguido nem pelo confeiteiro nem pelo chapeleiro.

Animado com o sucesso da aventura, planejei logo obter os sapatos, tanto mais que queria procurar o Bonifácio e não me convinha ir com os sapatos cambaios.

Acontecia comigo uma coisa que se dá com todos. Desde que se tem uma idéia feliz, a tendência de nosso espírito é respeitá-la. Por isso, levei alguns dias, pensando em obter os sapatos da mesma forma que o chapéu. Ora, unicamente o acaso me havia protegido, pondo uma confeitaria em frente de uma chapelaria e, ainda por cima, fazendo o caixeiro simpatizar comigo.

Para o caso das botinas, podia não acontecer a mesma coisa, e eu sair-me mal. Resolvi, então, tentar outro caminho. De resto, era ele necessário, pois não tinha nem dez tostões de meu e dos últimos que me restavam, doía-me muito desfazer-me.

Conhecia vagamente um sujeito que tinha numa rua central da cidade um escritório de advogado, creio eu, onde fora duas vezes ver se ele me pagava uma conta que me deram para cobrar.

Escusado é dizer que ele nunca pagou e, certa manhã, resolvido a pregar-lhe uma peça e obter sapatos, fui até lá.

O pequeno criado, esses pequenos criados maltrapilhos de advogados, varria o escritório quando eu entrava . Perguntei-lhe?

— O Doutor não está?

— Não senhor. Só chega ao meio dia.

O pequeno me conhecia e eu então lhe pedi:

— Você deixa-me experimentar aqui umas botinas? Estou com as meias rotas e não me convém ir a uma loja. Posso?

— Pois não.

— Bem — disse-lhe eu — você vai à casa tal e diz que mande um par de botinas, bons, número tanto.

Dei-lhe o meu último níquel e o pequeno lá foi. Não tardou que viesse um empregado com os sapatos. Experimentei e disse ao caixeiro da loja:

— Estão bons; mas o pé direito aperta-me um pouco. Leva-o e põe-no na forma uma meia hora.

Assim fez e eu, logo a seguir, disse ao pequeno do advogado:

— É bom a gente sempre experimentar. Você vai na loja número tal e pede que mande um par de botinas.

O criado do advogado foi e eu tive o cuidado de esconder o pé que já tinha. Quando chegou o caixeiro da outra loja, experimentei e depois lhe disse:

— Estão muito bons, mas o pé esquerdo aperta-me um pouco. É bom por na forma.

O caixeiro seguiu a minha recomendação, deixando-me o pé direito e eu me vi de posse de um magnífico par de botinas.

Aproveitei a ida do pequeno ao interior do prédio e saí a todo vapor, antes que me surpreendessem naquele casamento de pés de botina de uma e outra casa.

Não sei o que se seguiu, mas o certo é que ninguém me incomodou, tanto mais que, por precaução, deixei-me ficar uns dias em casa, roendo uns restos de pão duríssimo, que ficara abandonado em cima da mesa em que fazia café.

Foram esses os piores dias da minha vida, não só pela fome que passava, mas também por sofrer as maiores angústias. Não tinha mais jóias, restava-me alguma roupa de pano e a primeira coisa que fiz, ao sair, foi vender uma parte delas no primeiro "belchior" que encontrei. Pude então comer e, satisfeita a fome, foram-se de mim todos os tristes pensamentos que me assediavam.

Essa venda de alguns ternos de roupa que me tinham ficado da boa época de Diretor da Pecuária Nacional deu-me apenas alguns mil-réis com que passar uns dias, mas bem cedo vi-me na mais completa penúria e tive que engendrar um plano para obter dinheiro, a menos que não quisesse vender a única roupa que tinha.

No quarto em que morava, cujo aluguel fora pago adiantado, durante um ano, havia um braço de gás, com o respectivo bico.

Agarrei-o. limpei-o convenientemente e saí decidido a fazer dinheiro com ele.

Tomei um trem de subúrbios e saltei, ao acaso, em uma estação. A primeira coisa que fiz, foi procurar uma vendola e nestes termos dirigi-me ao dono:

— Senhorre não quer compra um bico de gaz aperfeiçoado que faz economia?

Sabem que falava bem português, mas iludia melhor falando dessa forma. O dono da venda, do alto do seu protuberante ventre, disse-me:

— Que diabo de coisa é esta, ó homem?

Repeti-lhe eu:

— É uma bica...

— O quê?

Fingi que não lhe entendia a interrogação maliciosa e respondi ingenuamente:

— É uma bica de gaz que luz melhor e economia...

O taverneiro pegou-me na mercadoria e a esteve examinando atentamente:

— Que diabo! — disse-me ele, afinal. — Não lhe vejo nada de novo.

— Senhorre, fiz eu , a questão não está na coisa nova...

— O quê — acudiu ele, rindo às gargalhadas.

Eu não me dei por achado e continuei muito humildemente:

— Questão não está na coisa nova mas "diâmetro" do tubo por onde passe o gaz. Diz fisique ...

— Bem — perguntou-me o crédulo merceeiro — quanto queres por isso?

— Quatro mil réis.

— Muito caro. Demais, não sei se isso presta.

— Senhorre experimenta. Se não prestá pode dá de novo a mim.

— Bem. Fico.

— Bem, senhorre, eu deixa ficar, mas senhorre dá uma garantia.

— Que garantia?

— Pode dá cinco tostões e o outro bico e eu volta amanhã ver senhorre compra.

— Vá lá.

Logo que me pilhei fora das vistas do homem, tratei de arear o bico que me dera e fui à outra casa propor a venda do meu bico aperfeiçoado. Muitos não quiseram, mas doze aceitaram e voltei, à tarde, para a cidade, com um bico.

Continuei a fazer a mesma coisa por outros bairros e assim pude viver cerca de um mês.

Todos esses planos e expedientes não me davam senão insignificantes resultados, de modos que eu estava sempre a braços com a mais atroz miséria.

Saía de uma semana de necessidades, entrava em outra em que comia, mas levavaassim, sem dar um passo definitivo e seguro.

Muitas vezes pensei no roubo, mas este nunca dá coisa que se possa fazer o restante da vida segura e os riscos são muitos.

Seria magnífico um estelionato, mas, para tal, eram indispensáveis elementos que me faltavam: conhecimento do mecanismo da administração ou do comércio, capacidade para falsificar documentos e outros de igual jaez.

Pensava nessas coisas todas com a mesma frieza com que um general determina tal ou qual movimento, sabendo que as suas ordens vão determinar a morte de milhares de pessoas.

Não me vinha ao pensamento nenhuma impossibilidade moral nem qualquer consideração sobre o julgamento que a opinião podia ter do meu ato.

Sofria necessidades, tinha fome e queria viver de qualquer forma, fazendo só o que os grandes capitalistas, os políticos, os comerciantes e os industriais fazem, baseando-se nas leis e em transações mútuas entre eles.

Se em Odessa não me vieram esses desejos, é porque lá ainda estava moço e tinha dentro de mim essa horrorosa esperança que nos faz escravos desses exploradores todos, disfarçados sob os mais pomposos rótulos. No Brasil, não; já tinha mais de trinta anos e estava vendo a minha vida escorrer sem satisfação, sem sossego e sem ventura.

Demais, lá, se bem que não quisesse, tinha um resto de respeito pelas instituições pátrias; mas aqui o meu desprezo era total, era completo e por mais que me esforçasse por ter alguma veneração pelos senadores, deputados e autoridades restantes, não me era possível.

Eu as tinha visto por assim dizer no nascedouro e sabia perfeitamente como se faziam, o que representavam de fraude, de compressão e corrupção.

Conhecia-lhes, além do mais, a sua ignorância, a sua falta de inteligência e a nenhuma sinceridade deles todos.

Não deixava de influir também nesse grande desprezo que tinha pelos homens do Brasil, uma boa dose de preconceito de raça.

Aos meus olhos, todos eles eram mais ou menos negros e eu me supunha superior a todos.

De resto, eu — eu que era um pobre imigrante — não fora um dia aclamado como "salvador" de um Estado! De resto, eu — eu que não sabia o tempo de gestação de uma vaca — não fora Diretor da Pecuária do Brasil!

Eu desprezava tal terra, desprezava-a soberanamente, olimpicamente, inteiramente.

Para mim, era uma sociedade de ladrões, de mistificadores, de exploradores, sem tradições, sem idéias, disposta sempre à violência e opressão. A Rússia me pareceu mil vezes melhor...

Lá, se Plewnw era um tirano, é porque acredita no czarismo, na excelência daquela espécie de governo, supõem-no capaz de trazer felicidade. Ele não é simplesmente um sócio nos lucros do governo, não é simplesmente governo porque quer proventos; há nele alguma coisa de pensamento, de ideal, de saber.

Na terra em que estava, não havia nada disso, não havia nada de superior naqueles homens todos que tão de perto conheci. Eles queriam os subsídios, os ordenados e as gratificações e a satisfação pueril de mandar.

Falavam em princípios republicanos e democráticos; enchiam a boca de tiradas empoladas sobre a soberania do povo; mas não havia nenhum deles que não lançasse mão da fraude, da corrupção, da violência, para impedir que essa soberania se manifestasse.

De resto, esse povo do Brasil metia-me um ódio terrível. Eram de uma fraqueza e puerilidade revoltantes. Viviam à beira dos caminhos de ferro, quase nus, com fome, sem terras em que plantassem um aipim, deixando-as como propriedades de terríveis senhores feudais, que não as aproveitavam por falta de braços!

A verdade é que, no intuito de obterem lucros fabulosos, ofereciam salários mesquinhos e os trabalhadores que podiam empregar preferiam morrer à fome, a revoltar-se a aproveitá-las de qualquer modo. Eles não se associavam, eles não se entendiam, e os mais adiantados não seguiam, não apoiavam os seus raros grandes homens.

Com as convicções que já tinha e um país desses, não podia ter qualquer escrúpulo a respeito do que chama pomposamente a sagrada propriedade.

Naquela manhã, levantei-me bem cedo e saí a passear pela cidade. Estava bem lindo o tempo, e a cidade toda tomava um banho de azul.

Cansado, comprei um jornal e entrei num jardim, para descansar enquanto lia. Corri todas as seções da folha meio distraído, sem deter-me em nenhuma com mais atenção.

Havia entre as notícias uma que particularmente me chamou a atenção. Tratava-se da chegada do pintor sueco Hans Ingegered, grande artista de reputação universal. Vinha fazer uma exposição e o jornal se alongava em elogios aos seus méritos, afiançados por medalhas e diplomas de exposições universitárias.

Aquela notícia fez-me mossa no espírito e, não sei como, deu-me uma extravagante idéia: intitular-me pintor.

Nada sabia de pintura, mesmo de desenho tinha fracas noções da escola secundária; entretanto me parecia que era pela pintura que sairia daquelas atrapalhações todas. Pensei em fazer uma exposição, convidar o presidente, os ministros, Sofônias, enfim todos os homens poderosos do Brasil, por intermédio dos quais pudesse vender um ou mias quadros ao Estado.

Quando se está na miséria, surgem essas idéias extravagantes; são as visões radiantes que o afogado tem nas portas da morte.

O pensamento não me deixava e eu o julgava a coisa mais exeqüível desse mundo. Passeei ainda muito e vim ter ao centro da cidade. Encontrei um rapaz que tinha tido, no meu tempo de Diretor, um pequeno emprego na minha diretoria. Não o reconheci e foi ele quem me falou:

— Dr. Bogoloff, como vai o senhor? Onde tem andado?

Disse-lhe com certa reserva as minhas dificuldades, porque o meu aspecto ainda era bom; mas ele farejou que eu passava necessidades e fez-se mais efusivo. Contou-me que estava próspero, pois, além de ter tido dois acessos, ainda era redator de um jornal. Dei-lhe parabéns e ele me disse:

— Estimo encontrá-lo, porque tenho uma obrigação com o senhor.

Não me recordava mais que lhe emprestara cem mil réis; e, dando-me todas as desculpas pela demora, fez com que os aceitasse. Convidou-me para almoçar, mas não aceitei e fiquei de procurá-lo no jornal em que trabalhava.

Deixando-o, a idéia de fazer-me pintor voltou-me e continuou a perseguir-me até o quarto. Pensado melhor, resolvi tentar a crítica da arte e, pretextando a chegado do pintor sueco, escrevi um artigo sobre as artes plásticas no Norte da Europa, que eu não conhecia absolutamente. Levei o artigo que foi publicado, mas no dia imediato saiu-me pela frente um contraditor.

No calor da polêmica, excedi-me e, além de desenvolver considerações gerais, fiz uma crítica severa à arte brasileira. Afirmei que ela não tinha interpretação, nem julgamento; que era simplesmente fotográfica.

O meu contendor caiu-me em cima cheio de fúria e ele e mais outros desafiaram-me a que eu definisse o meu ideal artístico.

Respondi-lhes mais ou menos nestes termos: "que a pintura devia ser intensiva e psicológica; que um quadro devia ter não só aquilo que ele queria dizer objetivamente. mas também subjetivamente; que pintar a batalha de Salamina, por exemplo, não era grupar mais ou menos bem soldados gregos e persas; mas era oferecer ao espectador a súmula de todos os pensamentos que lhe sugerisse a lembrança dessa pugna. Era evocar o heroísmo grego, o seu amor à beleza, a sua influência na civilização humana, o gênio especulativo, sem esquecer que ali, naquela batalha, se havia jogado o destino da civilização."

Havia dito isso a esmo, para sair-me da embrulhada e mesmo com certo entusiasmo, porquanto os meus artigos começavam a fazer sucesso e as minhas teorias a obter adesões. Apesar disso, não mas pagaram absolutamente.

O meu adversário, porém, ao ler tão curiosas afirmações, levou-me ao sério e desafiou-me a que eu pintasse a tal batalha da Salamina.

A princípio quis fugir, mas vi tanta gente convencida da verdade das minhas teorias que eu resolvi levar a coisa até o fim. Retruquei afirmando que a pintaria e, em breve, teria o prazer de convidar o meu contraditor a ver o meu quadro.

Graças à larga publicidade dos jornais em que se travara, a polêmica tinham repercutido em meios em que absolutamente não se cuidam dessas coisas.

Bonifácio, a quem vim a encontrar em certo dia na rua, falou-me a respeito dela com o interesse que a sua cultura lhe dava:

— Li os seus artigos. Magníficos! Essa gente por aí não sabe o que é uma batalha... Você, sim, Bogoloff, mostrou que as conhece. Faça a sua exposição que lá iremos... O Presidente irá também; você não sabe como ele se interessa por essas coisas...

Além de Bonifácio, muitas outras pessoas das altas regiões oficiais falaram nas minhas teorias estéticas, entre as quais o ilustre Sofônias.

— Menino — disse-me ele — você é o diabo. Não sabia que você entendia dessas coisas de quadros.

— Não se recorda V. Exa. que, a princípio, lhe pedi um lugar nas Belas Artes?

— Ah! É verdade. Quando você pretende expor?

— Dentro de seis meses.

— Lá estarei, para ver a derrota dos turcos.

— Não se trata de turco, mas de persas; V. Exa. quer talvez falar na batalha de Navarino.

— Ah! É verdade, menino; esses nomes causam uma certa confusão.

A vista do interesse que tão altas pessoas mostravam pelas minhas aptidões pinturiais, tomei o alvitre de atacar a credulidade pública até o seu entrincheiramento: dispus-me a fazer qualquer coisa na tela e pôr por baixo o título — Batalha de Salamina — para ver no que dava.

Andava de novo em apuros de dinheiro; graças, porém, às minhas novas relações no jornalismo, obtive ser de um velho rico o seu secretário, para os efeitos da correspondência em francês que mantinha com uma certa criatura francesa.

Com o dinheiro que ele me dava, comprei os apetrechos de pintar, mas a minha insuficiência era tal que nem as tintas pegavam na tela.

Não desanimei e, conhecendo um borrador italiano, que vivia de pintar tabuletas e ilustrar quiosques, tratei com ele o auxílio que necessitava.

Sobre uma tela de cinco metros sobre dois e meio de altura, mandei que ele pintasse as coisas mais desencontradas desse mundo. No primeiro plano, pus um "embrulho" de palavra ilegível que mais pareciam caravelas; o mar parecia de um azul tão carregado que tendia para o negro; ao alto pus numa grande desordem a Torre Eifel, a Vênus de Milo, um trem de ferro, um prelo de imprimir, etc. O céu fiz vermelho como se estivesse pegando fogo. Enquadrei coisa tão doida em uma moldura durada e anunciei a minha exposição.

Nas vésperas, por meio de uma "interview" tive o cuidado de explicar a teoria do meu quadro. Afastava-me, dizia eu, das modernas regras de perspectiva, para dar a impressão e antigüidade; a batalha era simplesmente delineada, no intuito de não se obter, com a sobrecarga de detalhes, uma diminuição do símbolo, transformando-a em uma grosseria fotográfica, etc.

Convidei todas as altas autoridades e com quem mais instei que viesse foi com o Bonifácio. era nele que eu depositava toda a minha esperança.

No dia marcado, muito solene e convencido, dentro de uma enorme sobrecasaca, lá estava eu à espera das autoridades.

Não tardaram a chegar e, entre Bonifácio e o Presidente, dirigi-me para o salão em que o quadro estava exposto. Logo que o viu, Bonifácio exclamou:

— É maravilhoso!

O Presidente confirmou:

— É extraordinário!

O Ministro do Interior alongou-se mais:

— É de uma originalidade flagrante.

O Ministro das Belas Artes que até aí se mostrava reservado, não se conteve:

— É uma obra prima!

Os outros convidados não oficiais vieram chegando e, vendo o entusiasmo do grupo "executivo", abundaram nas mesmas considerações.

A Viscondessa de Cinco Pontes veio cumprimentar-me e disse-me:

— Pode o senhor ficar certo que pintou o quadro mais original do nosso século.

Não ficaram aí os cumprimentos e elogios, que foram muitos, mas da maioria dos quais não me recordo mais.

Naquele dia, o sucesso foi absoluto e, nos que se seguiram, não diminuiu muito. Os jornais, em geral, me fizeram elogios, senão rasgados, ao menos gabaram a minha concepção ousada, fazendo restrições sobre a minha técnica; O meu antigo contendor passou-me um deboche em regra, mas a sua opinião não pesou, como não pesaram as dos pequenos jornais e revistas em que fui debochado a valer.

Em resumo: o julgamento de Bonifácio foi vitorioso e a minha extravagante borra teve as honras de obra-prima.

Foram tais os elogios que eu mesmo me convenci de que era um grande pintor e tinha uma vocação perfeitamente "vinceana" que até então não tinha sabido aproveitar.

Tratei de agradecer às pessoa eminentes a honra que me tinham dado e comecei pelo Bonifácio.

— Oh, caro Bogoloff — disse-me ele quando me viu — você tem todas as habilidades. O Presidente gostou muito de seu quadro, achou-o original, e falou mesmo em adquiri-lo para a Pinacoteca Nacional. Você quanto quer por ele?

Pensei um instante e respondi com modéstia:

— Quero dez contos.

— Peça vinte, homem.

— Vai lá.

E daí a dias tinha eu vendido por tal quantia a minha maravilhosa extravagância ao Estado, para ensinamento e edificação dos pósteros.