Aventuras do Dr. Bogoloff/IV
(A primeira lauda dos manuscritos deste capítulo não foi localizada)
Graças a ele, vim a conhecer muita coisa dos bastidores da política e tive ocasião de incomodá-lo em pequenos obséquios. Após ter pintado a batalha da Salamina, cujo sucesso excedeu à minha expectativa, resolvi descansar e gastar com parcimônia o dinheiro que o quadro me rendera. Vivi retirado muitos meses e pouco apareci nos lugares públicos e quase nenhuma visita fiz.
Aluguei nos arredores da cidade uma chácara e lá passei o dia a plantar couves.
Certo dia, estando deveras aborrecido, tomei a resolução de vir até a cidade.
Desembarquei cedo e como tivesse fome, procurei um restaurante.
Ao entrar, encontrei já sentado à mesa o deputado Numa que me chamou para junto de si. Antes de mais nada, ele me perguntou:
— Não vais à manifestação de Sofônias?
— Quando é?
— Amanhã;
Disse-lhe que não; Numa, porém, insistiu, expondo curiosas doutrinas com abundância de fatos concretos, doutrinas que eu resumo aqui para edificação dos jovens que se destinam à carreira política. Mais ou menos, ele me disse, as belezas que se seguem.
Essas presenças, essas atenções, enfim, este ritual de salamaleques e falsas demonstrações de amizade influía no progresso da vida. Como havíamos de subir, ou, pelo menos, de manter a posição conquistada, se não fossemos sempre às missas de sétimo dia dos parentes dos chefes, se não lhes mandássemos cartões nos dias de aniversário, se não estivéssemos presentes aos embarques e desembarques dos figurões?
Um bota fora, às vezes, decidia uma eleição. Vejam só o que aconteceu com o Batista. Estava nas boas graças do Carneiro, mas, no dia do embarque deste para Pernambuco, deixou de ir. Carneiro notou e, quando o Bandeira quis incluí-lo de novo na chapa, opôs-se tenazmente.
Os chefes não admitem independência, nem mesmo nos embarques.
Os pequenos presentes mantém as amizades; mas, na política, não são só os presentes que mantém as relações; é preciso que os poderosos sintam que gravitamos em torno deles, que nenhum ato íntimo de sua existência nos é estranho, que o natalício dos filhos, o aniversário de casamento ou de formatura, o falecimento da sogra se refletem no movimento e como que perturbam a órbita da nossa vida.
Como nesse ponto, era assim em tudo o mais — acrescentava Numa. Sempre tivera a visão nítida da vida social, jamais a vira pelo lado épico ou lírico. Concebera a existência chãmente e, graças a essa concepção, estava seguro na vida, rico pela fortuna da mulher e deputado pelo Estado de Sernambi, onde dominava seu sogro, o Senador Neves Cogominho.
Desde menino, vendo o seu orgulhoso pai sofrer de todos os seus superiores enfardelados em retumbantes títulos e esmaltados em galões, sentira bem que era preciso não perder de vista a submissão aos grandes do dia, adquirindo distinções rápidas, formaturas, cargos, títulos, de forma a ir se extremando bem etiquetado, doutor, sócio de qualquer instituto, juiz ou coisa que o valha, da massa anônima.
Era preciso ficar bem endossado, ceder sempre às idéias e aos preconceitos sociais. Esperar por uma distinção puramente pessoal ou individual, era tolice. Se o Estado e a sociedade marcavam meios de notoriedade, de fiança de capacidade, para que trabalhar em obter outros mais difíceis, quando aqueles estavam à mão e se obtinham com muita submissão e um pouco de tenacidade? Era assim a vida... Convenci-me de que ele tinha muita razão, tanto mais que, de experiência própria, sabia da verdade das suas asserções. No dia seguinte, fui à casa de Sofônias e encontrei Numa, no vão de uma janela, um tanto triste e apreensivo. Aproximei-me dele, cumprimentamo-nos, mas pouco conversamos.
O palacete do Senador Sofônias, inteiramente aberto e iluminado, fulgia ao fundo de um longo jardim na encosta negra de um morrote. Perdidos na massa escura dos canteiros, glóbulos elétricos brilhavam amortecidos, abafados.
Era dia do aniversário do poderoso Senador Sofônias, um dos prestigiosos chefes da política geral do Brasil.
Auxiliado pelos seus amigos, organizava aquela retumbante festa, para atenuar um pouco os furiosos ataques que vinha sofrendo na imprensa.
Esperávamos a manifestação e, como nós, muitas outras pessoas de importância e hierarquia. Erravam pelas salas dos palacetes de Sofônias os nomes mais em evidência da política nacional. Lá estava o F. J. Brochado, um curioso tipo de político, como quase todos os de sua raça, secos dalma, mas como pouco deles agitado, a fazer praça de honesto, a intrigar, tendo sems, conforme fosse o momento, a ocasião, a vaga, sem atender a saber ou ao que fosse.
Havia também o Carlos Porto, um singular orador, desanimado, mas preso à política, possuindo, entre muitas extravagâncias, a de ser um escritor canhestro, a modelar moldagens de fragmentos de antigas estátuas, numa teima de doido declarado.
Alem destes, também se encontravam o General Júlio César Tupinambá, um crente do nosso misticismo militar, convencido de que a sua qualidade de general dava-lhe capacidades superiores de governo e administração; o Sarmento Heltz, uma mistura de judeu e alemão, fino e frio; o gordo Pieterzoon, o Castelo, o Galvão e outros. A todos ele eu conhecia, mas vi um circunstante cujo nome não sabia. Era um rapaz amulatado, pescoço enterrado no corpo, um queixo a lembrar peixe, mas com uma marcha saltitante de tico-tico à cata de migalhas.
E ele saltitava de grupo em grupo, dizendo aqui uma coisa, ali outra, como se quisesse agradar a todos e a todos contentar. Perguntei a Numa quem era, mas ele também não sabia.
Quando o Bastos, líder de sua bancada, apareceu, Numa apressou-se em indagar.
— É o Quitério Almada.
— Quem é?
— Não conheces? É um rapaz de muito talento. Escreve artigos maravilhosos.
— Esses talentos...
Numa não gostava dos talentos, não invejava; não gostava mesmo, achava-os prejudiciais à vida, fracos para obter a mínima coisa, orgulhosos e exigentes e, como que a perturbar a existência dos felizes, com a atenção que se devia a eles.
— Não gosta dos talentos? — perguntou-lhe o Bastos.
— São muito pretensiosos, não se submetem a ninguém e não amam ninguém.
— Quem ama alguém?... Aquele que estás a ver, o Quitério, esteve sempre disposto a submeter-se. Muda de senhores, mas se submete...
Numa não insistiu com o colega de bancada. Ele o sabia mordaz na familiaridade, com pequenas ironias, num cinismo de que ninguém o tirava. Afastou-se.
Fora um ato de perversidade a eleição de Bastos pelo Neves Cogominho. Obscuro e pobre, sem nenhum título valioso aos olhos da política, certo dia publicara um pequeno folheto sobre a história que chamara a atenção dele. Neves Cogominho, para mostrar que a sua oligarquia sabia abrir caminho aos jovens talentos, fizera-o deputado estadual e mais tarde federal. Bastos julgou que o melhor meio de manter a posição era apagar-se completamente, não dar na vista e assim o fez. Vingava-se fazendo troças em família, arquitetando ditos e frases.
A manifestação não chegava e aquela gente fria ansiava pela sua chegada e a sua dissolução, para que ficassem à vontade, longe da presença daqueles vagabundos que deviam compô-la.
A política, por esse tempo, mais do que nunca, constituía num jogo de interesses estritamente pecuniários, representados pelos proventos dos cargos e o que se arranja com auxílio deles. Mais atroz e feroz esse jogo aparecia à vista da temporariedade dos cargos e da falta de uma base fixa e forte em que os detentores atuais se apoiassem ou pela bajulação, ou pelo talento, ou pelo sangue, como aconteceria se estivéssemos sob um Império ou numa monarquia qualquer.
A simulação eleitoral nos Estados não bastava, pois havia ainda o reconhecimento nas Câmaras, onde uma maioria audaz e desavergonhada podia tudo fazer e desfazer com o monte de atas falsas que chegavam.
De forma que todo o trabalho dos feudatários estaduais estava em ter sempre ao seu lado essa maioria, para que os descontentes de todos os matizes não se servissem deles para alcançarem os postos de governo.
A grande habilidade dos chefes estava em manobrar essa maioria no Senado, tendo para isso um grande império na Câmara.
Se houvesse algum chefe estadual recalcitrante. a entrada do seu representante no Senado seria cortada; e, como todos queriam essa entrada, faziam os seus homens na Câmara obedecer aos ditames dos chefes coligados.
Sofônias Antônio Macedo da Costa era o diretor da política nacional.
Obtivera esse poder com os meios mais insignificantes, com intrujices de comadre, com abraços e salamaleques e também com certo ascendente de forças que não se lhe podia negar. Ele metia um pouco de medo; medo de quem está em presença de um valentão, mas medo.
Nada, além disso, o fazia notável, nem o saber, nem o talento, nem a ilustração. Nada! Embora bacharel, não tinha aí pelos seus cinqüenta e poucos anos a menor reminiscência das coisas do seu curso e dos seus preparatórios. Certo dia, em face do mar calmo, querendo fazer frase, disse com ênfase: "O mar está no seu "status quo"; em outra vez, num discurso, dissera: "Não posso admirar esses "bonzos" de uma nova trindade védica".
Como estas, contavam-se dele muitas anedotas e ele ia, entretanto, dominando, ora com astúcia, ora com golpes de força, aquelas fracas vontades e aquelas duvidosas inteligências.
A sua história era curta e sugestiva. Mal se formara, internara-se nos sertões de Mato Grosso e vivera a bater-se contra a natureza, criando gado aos milhares de cabeças, sem se dar ao incômodo de leituras e estudos, de sociabilidade e delicadezas. Aprendera a dominar pela força, a se fazer temido se não queria ser roubado e esmagado, a dominar os homens e os irracionais, cujas fronteiras ele não estabelecia nitidamente.
Os peões recalcitrantes, os bandos de salteadores de currais, os rivais na política, ele sabia que só se dominavam com o punhal, com a garrucha, com o bacamarte, assim como os potros e os novilhos a laço, a bridão, enfim à força, e pondo-lhes a morte nos olhos.
Perdera todo o verniz civilizado e tinha da política uma concepção de estância, onde o gado deve ser dominado, marcado a ferro quente e sempre disposto a ser reunido para a venda aos invernadores.
Uma revolução trouxera-o à tona. Armara à sua custa um troço de duzentos bandidos, gente sem fé nem lei, acostumados a essas empreitadas, e à frente deles e de outros que se lhes agregaram, bateu, fuzilou os adversários, talando-lhes as propriedades com uma ferocidade de vândalo.
Ele fez a guerra à tártara, em arremetidas impetuosas e distribuindo tudo o que saqueava entre seus homens. Ganhou prestígio e o governo teve-lhe respeito.
Acabada a revolução, circundava-lhe o nome uma auréola de bravura e inumanidade que o levou às culminâncias; e, sentindo bem donde lhe vinha o prestígio, nunca mais deixou que seu halo esmaecesse. Ia às matanças em Santa Cruz, fez tiro aos pombos em casa, não faltava às touradas e, certo dia, numa festa campestre, à vista das damas em faniquitos e dos homens aterrados ajudou a carnear uma rês, que era destinada ao churrasco, à moda dos Estados criadores.
Esse aspecto feroz e guerreiro, que tinha tomado para o seu papel, dava-lhe mais ascendência sobre as consciências fracas e vacilantes do que os discursos mais altamente literários e mais conceituosos que ele pudesse pronunciar.
Oh! diziam eles. O Sofônias! Aquilo é que é um homem. Acerta numa moeda de vintém a cem metros! E de revolver.
Numa tinha por ele o respeito do "sheik" pelo sultão; uma mescla de terror físico e assombro religioso. Nada avançava na sua presença que não soubesse ser de sua opinião; nada dizia na sua ausência que não fosse um quente elogio ao bei.
— O Sofônias é um chefe! Ele sabe manobrar e comandar! Depois, é de uma lealdade...
Como Numa, afora alguns recalcitrantes, que se apoiavam na força transitória do Presidente, todos eram assim no temor àquele emir, aquele kã legislativo.
Vimo-lo passar com o seu passo demorado, numa lentidão vagarosa de monarca em seu palácio, mas a sua solenidade tinha alguma coisa de manequim, era dura, era procurada, como se não estivesse habituado a ela.
O cigarro de palha vinha-lhe meio apagado no canto dos lábios e ele olhava sem expressão a tudo aquilo, com aquele seu olhar sem brilho que parecia ser falso, emprestado.
No seu porte, não havia coisa alguma de dominação. Era vulgar de fisionomia, empastada, sem expressão, rígida; mas apurara-se no vestuário, usando a roupa muito colada ao busto, que parecia modelado num espartilho.
Aproximou-se acompanhado de Quitério, cuja gagueira dava às suas palavras lisonjeiras a lentidão das baforadas de incenso queimado ao turíbulo.
Numa chegou-se ao califa e cumprimentou-o longamente.
— Menino, obrigado — disse com ênfase Sofônias. — Essas coisas agradam muito. Nós, homens da nação, que vivemos "encangados" no respeito às leis e aos princípios republicanos, só temos esses momentos para nos vingar dos nossos inimigos — "embolamo-nos"!
Falava sempre com metáforas e termos de criador e de matadouro.
A sua mulher chegara e o grande senador perguntou com aquela voz em que os "aa" eram demorados e muito abertos:
— Filha, não falta nada?
— Nada, Sofo.
— Quero que os amigos saiam satisfeitos. O "potreiro" deve ser bom para todos.
Aos poucos, ele se viu cercado e todos tinham vontade de mais humilde se mostrarem. O gordo Pieterzoon era o único que falava com desembaraço. O prestígio de sua real inteligência sobre o chefe dava-lhe esse direito; mas os outros, o Brochado, o Sarmento Heltz e até o general Tupinambá só tinham um desejo: rojarem-se aos pés daquela espécie de monarca oriental sem califato nem kanato.
Dentre todos, aquele que dava maiores demonstrações de admiração e respeito a Sofônias era Brochado, não só porque era o mais falso, como queria apagar no espírito do grande chefe as picardias que lhe tinha feito.
Tratavam dos últimos acontecimentos políticos. O caso em questão era a formação de um novo Estado com territórios adjudicados por um recente tratado. O projeto era inofensivo, mas Sofônias queria aproveitá-lo para fazer uma demonstração e força ao governo. O procedimento do Presidente não lhe agradava; Simplício parecia não lhe querer obedecer e Sofônias temia que a sucessão presidencial lhe fosse desfavorável. Até agora, não se havia declarado francamente, mas empenhava os seus esclarecedores: os jornais e aqueles dos seus deputados que simulavam independência de pensamento. A imprensa do governo, conhecendo perfeitamente o jogo, não se animava a atacá-lo e a da oposição ajudava.
Alguém, no momento, referiu-se ao discurso terrível que, contra o formidável Sofônias, pronunciara o Albuquerque.
Costale, deputado, adiantou mesureiro:
— Frases! Frases! Retórica e mais nada!
Esse Costale, Raimundo Costale, tinha a mania do americano, do "yankee", e a de que estava destinado a promover o soerguimento da agricultura no Brasil. A mania de "yankee" viera-lhe do gosto de raspar o bigode, moda muito pouco americana, e de ter passado uns meses nos Estados Unidos; e a de salvador da agricultura não se sabia bem donde vinha. É verdade que tinha uma fazenda, como toda gente, mas fazenda de recreio que não lhe dava lá grandes lucros, nem mesmo os comuns.
De fato era rico, mas dos rendimentos das fábricas de tecido que tinha e montara com o produto do caucionamento de títulos sem valor a um banco do Estado.
Foi, portanto, com o desprezo mais "yankee" que pronunciou:
— Frases! Frases! Retórica e mais nada!
Pieterzoon, um grande e grosso homem, gigantesco e desarticulado, holandês de origem, objetou:
— Não há de ser assim, dizendo frases, que vocês hão de desfazer a impressão que ele fez na opinião.
— Ora, a opinião! — comentou Numa. — A opinião somos nós que sabemos por que o Sales é a favor...
Ao que Brochado retrucou:
— Eu não tenho grande conta da opinião, quando sou governo. O povo se fabrica e quando não se fabrica, há chanfalho, bala e pata de cavalo; mas, quando não se está no poder, é preciso cativá-lo.
Sofônias ouvia um e outro com olhar distraído, aquele olhar torvo de agonizante, onde havia uma única e mortiça luz. Por fim, tirou uma fumaça, e disse:
— Não é assim também. Querem saber de uma coisa: eu tinha em casa uma vaca mansa que nem um cordeiro. Os meninos faziam dela o que queriam; montavam na rês, enfeitavam-lhe as pontas, punham-na na carroça. Um belo dia, tanto fizeram que ela se encheu de zanga e deu uma marrada num, quebrando-lhe o braço. É verdade que a matei — rematou com satisfação Sofônias.
Como agora, gostava de afetar liberalismo, tolerância, quando o seu fundo era de déspota, de tirano, de cacique; em presença daquela gente toda, sentindo ao seu redor uma grande cidade mais ou menos civilizada, procurava esconder o seu natural; e, obedecendo a essa ordem de sentimentos, aconselhou que alguém respondesse ao Sales e adiantou mesmo:
— Era bom que um de vocês falasse... Por que você não fala, Numa?
Havia nesse convite um pequeno plano. Sofônias temia que o Neves Cogominho se bandeasse e dessa maneira descobriria logo os seus planos. Se Numa falasse, o homem e a sua gente estavam presos; se não, as baterias ficariam descobertas.
Numa quis fazer ainda algumas objeções, mas, no instante, entrou alguém que propriamente não era da Câmara ou do Senado, era, porém, da política, e de quem já tratei, devendo-lhe até a apresentação a Sofônias.
Chamava-se Lucrécio da Costa, mas com as suas façanhas ganhara o nome de "Barab-de-Bode". Carpinteiro de profissão, depois de alguns assassinatos, julgara mais rendoso fazer-se capanga político.
Era um belo mulato escuro, forte e alto, de cabelos corridos, peito alto e ombros largos. Tinha uma fama de terrível e era muito procurado pelas eleições. Servia de guarda de corpo do Senador Sofônias e propagava a sua celebridade nas classes desafortunadas. Ao vê-lo, o Senador perguntou:
— Que há, Lucrécio?
— V. Exa. podia dar uma palavra em particular?
— Fale!
O capanga hesitou um instante e falou afinal, com timidez:
— Procurei "seu" Bento, mas...
Esse Bento era uma espécie de mordomo do Senador, motivo pelo qual fora nomeado partidor do Distrito. Nos dias comuns, encarregava-se de fazer as encomendas dos gêneros alimentícios para Sofônias; nos extraordinários, organizava as manifestações, os vivas, as aclamações, a tanto por cabeça, quando a polícia não queria encarregar-se da coisa.
O Senador compreendeu o que Lucrécio queria:
— Dinheiro, não é?
— É, Exa. Arranjamos mais dez "partidários" de V. Exa. que querem vir, e V. Exa. sabe que...
O Senador falou com arrogância:
— Fale com a Lala.
Correu à sala de jantar e eu o segui a observar. A esposa do Senador Sofônias, depois de dar o dinheiro a Lucrécio, voltou a conversar com as amigas.
— É mesmo uma maçada — fez ela ao chegar — A política, que coisa! Sofo mal ganha para gastar... Só de "champagne", quanto? e o "chopp"? e os doces? Todo o mundo quer ser político; é porque não sabe quanto custa?
Madame Costale, esposa do Deputado Rodolfo Costale, aventou então:
— Tudo é assim, D. Lalá: visto de fora tudo é fácil, mas cá do lado de dentro é que são elas... O Rodolfo, só em "facadas", gastou no ano passado cerca de três contos... Toda a gente pensa que os políticos ganham mundos e fundos... É um engano! Ganham, é verdade, mas gastam muito. E as subscrições?
— O que mais me aborrece — disse Madame Celeste Galvão, esposa do Deputado Galvão, futuro presidente do Estado de xxs — é essa gente que temos de receber... Que caras! Nem fazem a barba!... Não sou nenhuma rainha, mas suportar sujeitos tão mal vestidos... Qual! É demais.
A conversa demorou-se assim algum tempo e ia continuar quando se
ouviram na rua os compassos da música militar que puxava a manifestação e todas aquelas senhoras dirigiram-se para a sala principal. No corredor ainda, D. Lalá pode dizer a Madame Galvão:
— Amanhã é que são elas! Copos furtados, "bibelots", o jardim estragado... Qual! esta política!
E a banda repenicava um dobrado canalha a todos os pulmões, as lanternas venezianas, nas pontas das varas, dançavam; e parecia tudo uma longa cobra fosforescente e musical que rastejava para o palacete. A multidão vinha premida na estreita alameda principal do jardim
—Viva o senador Sofônias! Viva!
Por entre vivas foram entrando, e Sofônias, no fundo da sala, cercado dos amigos presentes, já esperava a manifestação com sua majestade de manequim e a sua cabeleira untada de óleo, a reluzir.
Na frente dos manifestantes, vinha o tribuno Canto Ribeiro, celebridade dos "meetings" e manifestações. Era um tipo da cidade, teimoso orador do Largo de São Francisco, cuja oratória consistia em berrar a todos os pulmões as mais gastas chapas do Orador Popular . E ele tinha uns pulmões valentes e cada berro seu retumbava pela praça toda e era ouvido em todos os cantos.
Era também empreiteiro de manifestações, e, como todo o empreiteiro que se preza, tinha o seu pessoal. Além de um núcleo forte de capangas, possuía a seu serviço moços limpos: estudantes, pequenos empregados, aspirantes a empregos — gente disposta ao vivório, iludida com promessas de empregos e promoções.
Havia em Canto Ribeiro um pouco de especulação e um pouco de sinceridade. Supondo-se orador, julgava-se com um alto destino político e não pejou de ser o orador de praça pública, para chegar aonde queria. Os meios...
A sua oratória era feita de berros, de mugidos e rugidos; e, além de qualquer apuro literário, faltava também a ela uma voz musical, numerosa, com inflexões. Ele só sabia berrar e, quando se cansava, guinchava.
A sala era vasta, mas não pode conter todos os manifestantes. Uma grande parte ficou pela escada e pelo jardim.
Havia de toda a gente; pobres homens desempregados, que vinham ali ganhar uma espórtula; vagabundos notáveis, entusiastas sinceros, curiosos e agradecidos. Todas as cores. Os vestuários eram os mais engraçados e inesperados. Havia um preto com uma sobrecasaca cor de vinho, calçado com uma bota preta e outra amarela; um rapaz louro, um polaco do Paraná, com umas calças bicolor, uma perna preta e outra cinzenta; fraques antediluvianos, calças bombachas, outras a trair a origem reuna, coletes sarapintados.
Vendo essa gente miserável, esfaimada, degradada física e moralmente, o que se sentia era um imenso nojo pela política, pelo sufrágio universal, pelas Câmaras, pelos Tribunais, pelos Ministros, pelo Presidente, enfim, pela poderosa ilusão da Pátria, que criava, alimentava e se aproveitava de tamanha degradação
Toda essa gente comprimiu-se, arredaram-se os móveis e Canto Ribeiro começou a falar. Berrou vinte minutos, dizendo as mais sórdidas banalidades sobre o povo, a República, os méritos de Sofônias, etc.
Numa, que estava ao meu lado, ouvia-o atentamente e como que senti nele que havia uma ponta de inveja pela facúndia do orador.
Era conhecido como "silencioso" e, tendo recebido aquela intimação do chefe para discursar, não era difícil adivinhar o seu estado dalma.
Havia no seu olhar muito espanto, muita admiração pela torrente de banalidades que Canto Ribeiro berrava; e, de onde em onde, como se adivinhava que Numa dizia com os seus botões: Ah! Se eu fosse como ele!
O tribuno deu por finda a arenga e Sofônias ia preparar-se para responder, quando uma moça saiu do meio das outras e começou a pronunciar um discurso.
Fiquei admirado, não muito do seu discurso, mas da sua elegância, do seu langor, da tração fortemente sexual que ela possuía. Ao meu lado, o genro de Neves Cogominho perguntou ao Bastos quem era:
— É a filha do Henocanti, a Clódia. Há muito que "cava" uma cadeira para o pai. O Castrioto podia já ter arranjado isso, mas está "cavando" a filha primeiro...
A moça falou ainda um pouco e, no olhar mortiço de Sofônias, ao influxo do capitoso da dama, houve um brilho desusado. Acabou de falar e ofereceu-lhe um bouquet de flores.
Sofônias respondeu a Canto Ribeiro, dizendo ser simplesmente como um "muezzin" da Catedral da República, cuja voz estava sempre pronta a lembrar aos fiéis os seus deveres para com a República; e à Clódia, que se enternecia por aquela homenagem da gentil patrícia, cujas belezas ofuscava as famosas Lucrécia Borgia e outras. Bastos não deixou de dizer baixinho ao colega:
— Esta é demais.
Por fim foi oferecido "chopps" aos circunstantes. Quase houve briga, quase houve bofetadas. As mãos passavam por cima das cabeças, por entre os corpos, e os copeiros tinham um imenso trabalho em servir toda aquela gente sequiosa. Canto Ribeiro vendo que a coisa podia degenerar em conflito, pois já havia um bate boca em um canto, resolveu levar o seu pessoal. Gritou:
— Vamos, rapazes! Os bondes vão partir!
Foram-se a um tempo e na sala, encostado ao balcão improvisado de "buffet", ficou unicamente Barba-de-Bode. Encostou-se e disse com gloriosa satisfação:
— Sim, agora posso beber. Não sou desses "avançadores" que só vêm às festas para beber.
Em seguida, voltou-se para o copeiro e fez familiarmente:
— Ó amigo! Dá-me aí uma coisa dessas!
Sorveu o copo quase inteiramente de um trago, e foi cheio de loquacidade para os copeiros que disse:
— Vocês sabem, eu cá sou de casa. Não preciso de manifestação para entrar... O "homem" é meu só... Todos esses tipos são engrossadores.
Bebeu o resto que estava no copo, e pediu:
— Mais um "chopp".
E continuou loquaz e jovial, jovialidade e loquacidade a que não era estranho o álcool que já engorgitara durante o dia todo. Continuou:
— Quando aquele velho caduco do Mendes (o antigo Presidente) lhe andou fazendo fosquinhas, quem é que vinha aqui? Um ou outro. Eu cá não, sempre estive a seu lado. Mais um "chopp".
Os copeiros serviram e ele aduziu sentenciosamente:
— Esses homens são muito adulados, quando estão por cima; mas, logo que rosna qualquer coisa, tudo foge. É isto. Vamos beber!
Falando e bebendo, Lucrécio sorveu mais uma dúzia de "chopps" e quando ia pelo décimo terceiro, passou pela sala o Sofônias. Barba-de-Bode correu ao encontro do Senador:
— V. Exa. dá licença?
— Que é que você quer, homem? Já bebeste como o diabo, hein?
— Alguma coisa. Queria agora beber à sua saúde.
— Deixa isso para mais tarde. Agora...
Lucrécio deitou sobre o poderoso político um súplice e este não achou mau dar aos seus pares uma demonstração de tolerante bondade pelos humildes. Sofônias disse bonacheiramente:
— Bem! Vá lá!
— Sr. Senador Sofônias — começou Lucrécio. — Neste momento solene...
E parou como se buscasse palavras, termos, imagens. Esteve um instante calado, com a boca fortemente fechada: houve um imperceptível movimento nos músculos na sua garganta de quem engole alguma coisa. Por esse tempo, começaram a vir da sala convivas, damas e cavalheiros, curiosos de travarem conhecimento com a eloqüência de Lucrécio.
Ao ver tanta gente à sua roda, animou-se e continuou:
— Sr. Senador...
Mas não pode acabar. Veio-lhe um forte vômito e, antes que pudesse correr à janela, despejou-o ali mesmo, borrifando o peitilho do famoso senador e a barra das saias daquelas grandes damas. Lançou, lançou tudo o que tinha no estômago.
Eu estava na sala desde que Lucrécio começara a beber e de lá não arredei pé. O triste final do discurso do "capanga" causou em algumas pessoas indignação e noutras hilaridade. Entre aquelas, houve um que não disfarçou sua reprovação. Dizia ele:
— Tá bebo... Chama aí um poliça... Mete ele no xadrex.
Olhei o homem que me pareceu um tipo acabado de matuto. Tinha um ar de tabajara e umas roupas amarrotadas no corpo. Perguntei a Numa quem era.
— É o Dr. Chaveco, chefe de Polícia.
Reparei ainda o homem. Que triste chefe de Polícia! Tinha um ar de vítima de conto do vigário;
Houve um grande esforço por parte dos presentes para que ele não levasse preso Lucrécio e foi preciso a intervenção pessoal de Sofônias para dissuadi-lo completamente. Convenceu-se, apanhou o chapéu, tomou sua bengala, sem castão nem ponteira, despediu-se:
— Tá bão.... Inté manhã!
Aquele ar bonachão do homem, aquele seu aspecto paternal e simplório, tão em contraste com as suas terríveis funções longe de provocarem a mofa, que eu via estampada em todos os rostos, fizeram-me encarar com ternura o país, em que estava, cuja capital tinha a sua segurança entregue a mão tão débeis e, a julgar pelo aspecto, tão doces.
Recordei-me, não sem calafrios, da famosa 3ª Seção da Chancelaria Imperial da minha pátria, aquela terrível polícia secreta, que seguia um a um os habitantes do Império com seus processos inquisitoriais; lembrei-me também das suas terríveis prisões, das minas da Sibéria, dos cossacos...
O Brasil surgiu-me, então, como um país maravilhoso, liberal por fraqueza, mas liberal; e eu perdoei um instante tudo o que presenciara nele de ridículo e inferior;
As minhas reflexões foram interrompidas por uma nova entrada do chefe de Polícia. Na sala de visitas já se dançava, eu estava na sala de jantar, a um canto fumando e quase na minha frente, na outra extremidade, algumas senhoras cercavam a esposa de Sofônias. O Dr. Chaveco foi entrando, batendo com a bengala no assoalho, ao jeito de um pastor bíblico:
— D. Lalá — disse ele — mi esqueceu uma coisa...
— Que é, Doutor?
— A mode que não levei uns rebuçados pros meninos.
— Pois não, Doutor.
— Tem artéa, siá Dona? O Zeca tá cum tosse.
— Não, Doutor. Quer de hortelã?
— Serve, Dona.
A senhora começou a preparar o pequeno embrulho e eu não sei por que quis travar relações com o Dr. Chaveco. Cheguei-me a ele e fui logo dizendo:
— Então Doutor, já vai?
— Já moço; Drumo sempre cos pintos. É mais bom pra saúde.
— Mas, no seu cargo, nem sempre pode...
— Quá, moço! Tenho os auxiliá que faz minha vez.
A dona da casa voltou com o embrulho; Chaveco agradeceu, levantou-se, despediu-se e disse-me:
— Qué i cô nós, moço? Não paga nada. Intomove tá na porta.
Embora as minhas finanças estivessem em bom pé, lobriguei logo naquela relação com o chefe de Polícia um meio de ganhar dinheiro mais tarde. Na rua, entre outros, o seu automóvel esperava. Sem esperar que o ajudante abrisse a portinhola, Chaveco a foi abrindo e convidou-me:
— Trepe moço !
Entrei no veículo e logo que o chefe de Polícia se pôs ao meu lado, o motorista lhe perguntou para onde queria ir.
— Pra onde vosmecê qué i, ?
Disse-lhe e o automóvel rodou pela rua deserta, cujas palmeiras, de um ou outro lado, dormiam sob o lençol de um belo luar.
Estivemos um pouco calados e, após, ele me perguntou:
— Como é seu nome, moço?
Disse-lhe eu então o meu nome por inteiro.
— Ué! gentes! — fez ele um risinho simiesco — Que nome! é de santo?
Expliquei-lhe então que era russo e o meu nome era, portanto, russo. Ficou muito espantado e afirmou-se naquele seu falar especial, que eu falava muito bem o português.
Afogada no luar, a cidade oferecia um aspecto de paz serena e tranqüilidade satisfeita. Pelas ruas, não havia ninguém e aquelas casas inteiramente fechadas, mudas, tranqüilas, enchiam-nos de uma satisfação suave. Era como se esquecêssemos que, dentro elas, havia muita angústia, muita tormenta, muita paixão e muito ódio. Verificando isso, tínhamos vontade de que todos nós, toda a humanidade, viesse a dormir assim, pelo séculos em fora...
O doutor Chaveco vinha calado ao meu lado, mas não dormia. Os seus olhos pequenos e castanhos brilhavam muito e como que sondavam a noite. De repente senti que estremecia. Não me pude conter.
— Que é doutor?
— A mode que lá em cima anda uma coisa branca.
Olhei a casa indicada e nada vi, mas Chaveco afirmara que vira e até se benzeu:
— Credo! Padre, Filho, Espírito Santo.
Acabamos a viagem conversando sobre coisas de polícia. De indústria, levei-o para esse terreno; mas aí, como em tudo mais, ele era de uma simplicidade evangélica.
— Quá retrato, Doutor! Quá , nada! Se arguém viu, o criminoso pode sê preso, mas se não viu — quá — só se outro vié contá.
Não havia meio de demovê-lo daí. Expus-lhe tudo o que sabia de métodos de investigação; mas o homem não saía da sua convicção:
— Quá! Se arguém...
Separamo-nos muito bons amigos e eu pude dormir as últimas horas da noite na minha plácida chácara dos subúrbios.
Eu morava numa eminência e a minha casa ficava sobre o "plateau", olhando o poente. À tarde. sob alguma das muitas mangueiras, que me protegiam a casa do calor, eu gostava de ver o sol deitar-se, sumir-se por entre as nuvens de púrpura e ouro; de manhã, eu me erguia em boa hora, regava as minhas couves e lia alguns autores da minha reduzida biblioteca.
Às vezes, pelo correr do dia, eu passeava pelos arredores da minha propriedade e surpreendia a espaços aquela vida dos subúrbios da capital, feita da estratificação de todas as vidas da cidade.
A minha casa velha casa de estilo roceiro, feia a não mais poder, mas sem o casquilho antipático de suas vizinhas modernas e muito mais ampla e ensolarada que elas.
Tinha uma velha preta, que me cozinhava os pratos nacionais, a que se afizera o meu paladar russo, sem violência nem repugnância. Eu comia com prazer o feijão e a carne seca; até ousei entrar pelo vatapá e pelo caruru.
Além da cozinheira, tinha um português, que me servia ao mesmo tempo de chacareiro e de jardineiro; e, em companhia desses dois serviçais, a minha vida nos subúrbios corria mansa, sossegada e obscura.
Tendo chegado muito tarde, na noite em que voltei da manifestação a Sofônias, ergui-me do leito dia alto e, quando abri as janelas amplas e altas do meu quarto, o sol passou forte através delas, com uma fúria de protesto e indignação.
Nesse dia não reguei as minhas couves, mas, antes de almoçar, fui dar uma vista dolhos na horta, cujo viço o meu olhar demorou-se na concentração.
Depois almocei, li os jornais e o dia enchi-o lendo e pensando em coisas graves e sérias. Não havia em mim nenhuma necessidade de movimento, mas não amanheci da mesmo forma na manhã seguinte. Despertei com os músculos a pedir exercício e com os sentidos a pedir impressões outras que não aquelas mesmas que recebia sempre no meu interior.
Logo após o almoço saí, dirigi-me à estação, comprei o necessário bilhete e o trem correu em direção à "gare" da Central.
Li no trajeto os jornais; não tinham nada de interessante, como é de uso nos nossos jornais; mas se estendiam muito sobre um crime misterioso. Como esse crime me houvesse permitido realizar uma das minhas curiosas proezas, vou narrá-lo em poucas palavras.
Em um dos morros da Saúde, morava um velho português que, em tempos fora agiota; segundo corria, vivia de emprestar pequenas quantias aos marítimos, mediante juros exorbitantes.
Uma manhã, custando muito a abrir a porta, a coisa causou desconfiança à vizinhança, que do fato deu conhecimento às autoridades. Arrombada a porta, ele foi encontrado amordaçado e morto a punhaladas. As notícias todas não concordavam na denominação da arma; umas, chamavam "adaga"; outras, "kandjar"; e ainda em outras a arama era chamada de cimitarra.
O instrumento do homicídio foi encontrado junto ao cadáver e outro vestígio do assassinato não havia.
Não sei por que associei a imagem simplória do chefe da Polícia com tão misterioso crime e desembarquei tendo as duas uma ao lado da outra, prestes a combinarem-se em alguma coisa nova.
A minha tenção era vagabundear pela cidade, percorrê-la ao acaso, tomando um bonde aqui, saltando ali, satisfazendo a necessidade de movimento que havia nos meus músculos e de impressões que me havia nos meus nervos.
Era pouco mais de meio dia quando saltei e, antes de me por a vagar, quis tomar alguns "chopps".
Entrei numa casa que eu freqüentava muito ao tempo em que vivia constantemente na cidade. Ficava no centro comercial e era freqüentada por comerciantes e gente de negócios, sobretudo pelos estrangeiros.
Não tinha fartos conhecimentos no Rio e eu mesmo tinha evitado faze-los, para melhor dar aos meus planos. Uma amizade é sempre um cúmplice da nossa consciência e os cúmplices atrapalham.
Mal tinha abancado à mesa forrada de couro, quando se me acercou um conhecido. Chamava-se Gustav Kordenjold, era irlandês e falava russo. De profissão, sabia-o ser dispenseiro de uma galera norueguesa, a "Selma", um lindo barco de três mastros de belo e airoso ar, que se ocupava de trazer de Ragoon para o Rio o arroz excelente da Ásia.
Eram longas e afanosas viagens de quase meio ano, em que a "Selma", com o seu velame alto e amplo, ora dormitava sobre as ondas, ora corria com o vento ao capricho dos temporais de dois grandes oceanos, sem contar as arribações forçadas a pontos obscuros de ilhas e continentes.
Mesmo assim, tal era a barateza do motor, tal era a exigüidade de gastos com salários da tripulação, as viagens eram rendosas e a "Selma" deixava sempre para o seu armador em Transoë, na hiperbólica e glacial Noruega, grandes lucros que o trabalho das gentes dos países quentes lhe dava.
Gustav Kordenjold falou-me prazenteiramente e eu o convidei a partilhar dos meus "chopps". Sentou-se e falou-me em russo. Conversamos muito sobre vários assuntos e ele veio afinal falar-me a respeito de sua viagem.
— Levamos quase oito meses. Na altura se Singapura, apanhamos um temporal de oito dias e só fomos arribar nas Filipinas. Quase não nos podíamos ter em pé; os mastaréus vieram abaixo, o leme perdeu-se e, quando o tempo amainou, foi um imenso trabalho para colocar os sobressalentes. Estou aborrecido dessa vida... Se arranjasse uns quinze mil francos, voltava para a Noruega e ia estabelecer-me com uma serraria. Tu que tens tantos conhecimentos por aqui, podias bem arranjar-me um negócio em que ganhasse essa quantia... Estou deveras aborrecido! Não posso mais!...
Não sei por que veio à lembrança o crime que os jornais noticiavam e lhe disse:
— Podia arranjar-te o dinheiro, mas o meio é um pouco arriscado...
— Como?
— Não leste nos jornais o crime que houve, ontem à noite?
Gustav teve um pequeno estremecimento, mas logo disse naturalmente:
— Não li; sabes perfeitamente que mal falo o português. Mas que tem o crime com a minha necessidade de dinheiro?
— Ouve: estou em boas relações com o chefe de Polícia daqui. Anda muito em moda as deduções com verniz científico para a descoberta dos crimes. Vou a ele; arranjo umas de modo que te acusem, os esbirros te prendem; tu negas; mas as minhas deduções acusam-te, o chefe fica contente, dá-me alguns contos de réis, eu tos passo. Sais absolvido e vais para a Noruega. É questão de alguns meses de repouso na Detenção. Queres?
Kordenjold esteve a pensar e disse:
— Aceito. Tanto mais que esta noite não sai de bordo.
Contratamos bem a coisa e eu saí em demanda do chefe de polícia na sua respectiva repartição.
Não me foi difícil falar ao Dr. Chaveco. S. Exa. não tinha chegado e eu fiquei na antecâmara do seu gabinete. Ao entrar, ele deu de ombros comigo e veio logo falar-me:
— Oh! "Seu" barão!
Julguei que ele confundisse com outro, mas não havia tal. Os brasileiros estão sempre dispostos a ver no estrangeiro bem vestido um fidalgo; e nos pobres, um animal desprezível. Como que compreendeu o meu embaraço e aduziu:
— Não tá alembrado que viajamo junto no intomóvel?
— Sim, Exa.; mas não sou barão.
— A mode que pensei. Que há de novo?
— Venho a respeito do crime.
— Ah! O assucedido na Saúde?
— Sim, Exa.
— Que pretende fazê?
Expliquei-lhe, entrando com ele no seu gabinete, as minhas idéias. Seguiria a diligência, tomaria nota dos mais ínfimos detalhes e aplicaria o método do doutor Sherlock Holmes, de Londres.
— Vancê cunheceu ele?
— Muito.
Por esse tempo, ele se havia sentado à sua ampla mesa e delegados e mais policiais cercavam-no de todos os lados.
— "Seu" doutô Praxedes — disse a poderosa autoridade — tá aqui o dotô... Como é?
— Bogoloff — disse eu.
— Tá aqui o dotô Bogoloff que acunheceu o Cheloque em Londres. Ele vai acompanhá e vê se descobre os assassino do assucedido na Saúde.
O dr. Praxedes olhou-me com certo desdém, e quis objetar alguma coisa; mas o chefe confirmou a ordem e eu segui.
Ainda não tinham feito a primeira inspeção, de forma que pude acompanhá-la. A minha lábia desarmou a repugnância dos policiais profissionais e lá cheguei na melhor camaradagem com eles.
Tomando aquele ar, ao mesmo tempo de perdigueiro e de inspirado, de que fala Conan Doyle, ao tratar das pesquisas do seu herói, andei apanhando pontas de cigarro; com o auxílio de uma lente examinei o assoalho e, por fim, dei-me por satisfeito, depois de todos os trejeitos, que me vieram à cabeça. A arma de fato era esquisita; absolutamente, não a podia denominá-la e, muito menos os policiais. Fui para casa e apresentei o meu relatório, em que: tendo em vista a quantidade de potassa contidas nas cinzas dos cigarros encontrados, denunciadoras de fumo filipino; a fibra do tecido, com que fora amordaçado o agiota, de natureza perfeitamente malaia; a arma, que era um "kriss" malaio; a proporção entre as pegadas encontradas e a altura do homem; e os fios dos cabelos que encontrara — o assassino devia estado em alguma das ilhas do arquipélago malaio, ter um metro e oitenta de altura e ser europeu, pois não podia ser dessa raça oceânica, porquanto os cabelos louros denunciavam um origem européia.
O meu relatório foi acolhido com os maiores gabos pelos conselheiros do chefe e, indagando-se daqui e dali, soube-se da entrada da galera "Selma" e foi entre a sua tripulação que se procurou o criminoso.
Gustav foi o mais fortemente suspeitado, porquanto eu havia organizado os indícios de forma a recaírem sobre ele todas as suspeitas.
Ele se defendeu valentemente, dizendo que não viera à terra naquele dia; mas um indício surgiu forte contra o finlandês; a arma, o "kriss", era dele, pois quase toda a tripulação o atestou.
Restava um álibi, mas um marinheiro contou que ele viera disfarçado ente os estivadores e entre a meia noite e uma hora da madrugada voltara, regressando mais tarde à terra.
Continuou sempre à negar, mas as presunções eram muitas e ele foi pronunciado, sendo mais tarde absolvido.
O chefe deu-me dez contos de gratificação e, logo que Gustav saiu a prisão, eu lhe dei mais da metade dessa quantia.
Confessou-me que havia sido ele e, por um instante, senti-me de fato Sherlock Holmes.