Caiu o Ministério!/I
O teatro representa parte da Rua do Ouvidor. Ao fundo a redação do Globo, a casa imediata, a confeitaria do Castelões e o armarinho vizinho. O interior destes estabelecimentos deve ser visto pelos espectadores. Ao subir o pano a escada que comunica o pavimento inferior do escritório do Globo com o superior deve estar ocupada por muitos meninos, vendedores de gazetas; algumas pessoas bem vestidas conversam junto ao balcão. Em casa do Castelões muita gente conversa e come. No armarinho grupos de moças, encostadas ao balcão, conversam e escolhem fazendas. Grande movimento na rua.
CENA I
[editar]Um vendedor de bilhetes de loteria, 1º, 2º, 3º e 4º VENDEDORES DE JORNAIS, DOUTOR RAUL MONTEIRO e ERNESTO
VENDEDOR DE BILHETES — Quem quer os duzentos contos? Os duzentos contos do Ipiranga!
1º VENDEDOR DE JORNAIS — A Gazeta da Tarde, trazendo a queda do ministério, a lista da loteria, também trazendo a crônica parlamentar.
2º VENDEDOR — A Gazeta de Notícias. Traz a carta do doutor Seabra.
3º VENDEDOR — A Gazetinha.
4º VENDEDOR — A Espada de Dâmocles, trazendo o grande escândalo da Câmara dos Deputados, a história do ministério, o movimento do porto, e também trazendo o assassinato da rua do Senado.
3º VENDEDOR — A Gazetinha e o Cruzeiro.
RAUL MONTEIRO (Que deve estar parado à porta do Globo a ler os telegramas; voltando-se e vendo Ernesto, que sai do Castelões.) — Oh! Ernesto, como vais?
ERNESTO — Bem. E tu?
RAUL — Então? Nada ainda?
ERNESTO — Ouvi dizer agora mesmo no Bernardo que foi chamado para organizar o ministério o Faria Soares.
RAUL — Ora! Ora! O Soares partiu ontem com a família para Teresópolis.
ERNESTO — É verdade; porém disseram-me que ontem mesmo recebeu o telegrama e que desce hoje. Aí vem o Goularte.
RAUL — Homem, o Goularte deve estar bem informado.
CENA II
[editar]OS MESMOS e GOULARTE
RAUL — Oh! Goularte, quem foi o chamado?
GOULARTE — O Silveira d’Assunção.
RAUL — O que estás dizendo?
GOULARTE — A pura verdade.
ERNESTO — Com os diabos! Por esta não esperava eu. Estou aqui, estou demitido.
RAUL — Mas isto é de fonte pura?
GOULARTE — E até já está organizado o ministério.
RAUL — Quem ficou na Fazenda?
GOULARTE — O Rocha.
RAUL — E na Justiça?
GOULARTE — O Brandão. Para a Guerra entrou o Felício; para a Agricultura o Barão de Botafogo...
ERNESTO — O barão de Botafogo?
GOULARTE — Sim, pois não o conheces! É o Ladislau Medeiros.
ERNESTO — Ah! já sei.
GOULARTE — Para Estrangeiros o visconde de Pedregulho; para a pasta do Império o Serzedelo...
RAUL — Misericórdia!
GOULARTE — E para a Marinha o Lucas Viriato.
RAUL — Lucas Viriato?! Quem é?
ERNESTO — Não o conheço.
GOULARTE — Eu também nunca o vi mais gordo, mas dizem que é um sujeito muito inteligente...
CENA III
[editar]OS MESMOS e COMENDADOR PEREIRA
PEREIRA — Bom dia, meu senhores. (Aperta-lhes as mãos.)
RAUL — Ora viva, senhor Comendador.
PEREIRA — Então, já sabem?
RAUL — Acabamos de saber agora mesmo. O presidente do Conselho é o Silveira d’Assunção.
PEREIRA — Não há tal, foi chamado, é verdade, mas não aceitou.
GOULARTE — Mas, senhor Comendador, eu sei...
PEREIRA — Também eu sei que o homem esteve cinco horas em São Cristóvão, e que de lá saiu à meia-noite, sem se haver decidido coisa alguma.
RAUL (Vendo Anastácio entrar pela direita.) — Ora aí está quem nos vai dar notícias frescas.
ERNESTO — Quem é?
RAUL — O conselheiro Anastácio, que ali vem. (Seguem para a direita, e formam um grupo.)
GOULARTE — Chama-o.
CENA IV
[editar]OS MESMOS, ANASTÁCIO e vendedores
VENDEDOR DE BILHETES (Que juntamente com os outros tem passado pela rua, vendendo ao povo os objetos que apregoam durante as cenas anteriores.) — Quem quer os duzentos contos do Ipiranga!
1º VENDEDOR — A Gazeta da Tarde, a 40 réis.
2º VENDEDOR — A Gazeta de Notícias.
3º VENDEDOR — A Gazetinha. Traz a queda do ministério. (Saem os vendedores.)
RAUL — Senhor conselheiro, satisfaça-nos a curiosidade. Quem é o homem que nos vai governar?
ANASTÁCIO — Pois ainda não sabem?
GOULARTE — São tantas as versões...
ANASTÁCIO — Pensei que estivessem mais adiantados. Ora ouçam lá. (Tira um papelinho do bolso; todos preparam-se para ouvi-lo com atenção.) Presidente do Conselho, Visconde da Pedra Funda; ministro do Império, André Gonzaga.
GOULARTE — Bem bom, bem bom.
ANASTÁCIO — Da Marinha, Bento Antônio de Campos.
RAUL — Não conheço.
ERNESTO — Nem eu.
GOULARTE — Nem eu.
PEREIRA — Nem eu.
ANASTÁCIO — Eu também não sei quem seja. Ouvi dizer que é um sujeito dos sertões de Minas.
RAUL — E por conseguinte muito entendido em coisas de mar.
ANASTÁCIO — Ministro da Fazenda, o barão do Bico do Papagaio.
RAUL — Para a Fazenda?!
ANASTÁCIO — Sim, senhor.
RAUL — Porém este homem nunca deu provas de si. É pouco conhecido... Nas circunstâncias em que se acha o país...
GOULARTE — Não diga isto, e aquele aparte que ele deu ao Ramiro... Lembra-se, senhor Conselheiro?
ANASTÁCIO — Não.
GOULARTE — Um aparte dado na questão do Xingu.
RAUL — Era melhor que o tivessem deixado à parte. Vamos adiante.
ANASTÁCIO — Ministro da Guerra, Antônio Horta.
ERNESTO — Magnífico!
RAUL — Qual magnífico.
ANASTÁCIO — Da Agricultura, João Cesário, e fica na pasta dos Estrangeiros o presidente do Conselho.
RAUL — Lá estão pondo um telegrama na porta do Globo. Vamos ver o que é. (Dirigem-se à porta do Globo, ao redor da qual reúnem-se todos que estão em cena, e depois retiram-se. Ernesto entra no Globo.)
CENA V
[editar]DONA BÁRBARA COELHO e MARIQUINHAS
DONA BÁRBARA (Entrando com Mariquinhas pela esquerda.) — Que maçada. Se eu soubesse que esta maldita rua estava hoje neste estado, não tinha saído de casa.
MARIQUINHAS — Pois olhe, mamãe; é assim que eu gosto da rua do Ouvidor.
DONA BÁRBARA — Tomara eu já que se organize o ministério só para assim ver se teu pai sossega. Encasquetou-se-lhe na cabeça que há de ser por força ministro.
MARIQUINHAS — E por que não, mamãe? Os outros são melhores do que ele?!
DONA BÁRBARA — E vive há três dias encerrado em casa, como um verdadeiro maluco. Por mais que lhe diga — seu Chico, vá para a câmara, contente-se em ser deputado, que não é pouco, e o homem a dar-lhe. Já quando caiu o outro ministério foi a mesma coisa. Passa o dia inteiro a passear de um lado para o outro; assim que ouve o ruído de um carro, ou o tropel de cavalos corre para a janela, espreita pelas frestas da veneziana, e começa a dizer-me todo trêmulo: — É agora, é agora, Barbinha, mandaram-me chamar. De cinco em cinco minutos pergunta ao criado: — Não há alguma carta para mim? Que aflição de homem, Santo Deus! Aquilo já é moléstia! Parece que se ele não sair ministro desta vez, arrebenta!
MARIQUINHAS — Faz papai muito bem. Se eu fosse homem também havia de querer governar.
DONA BÁRBARA — Pois eu se fosse homem acabava com câmaras, com governo, com liberais, conservadores e republicanos e reformava este país.
CENA VI
[editar]AS MESMAS e FELICIANINHA
MARIQUINHAS — Gentes, dona Felicianinha por aqui!
FELICIANINHA (Com embrulhos.) — É verdade. Como está, dona Bárbara? (Aperta a mão de Bárbara e de Mariquinhas e beijam-se.)
MARIQUINHAS — Como vai a Bibi? A Fifina está boa? Há muito tempo que não vejo a Cocota.
FELICIANINHA — Todos bons. Eu é que não tenho andado muito boa. Só a necessidade me faria sair hoje de casa.
DONA BÁRBARA — É o mesmo que me acontece.
FELICIANINHA — Fui ao Palais-Royal experimentar um vestido, fui depois ao dentista, entrei no Godinho para ver umas fitas para o vestido da Chiquinha...
MARIQUINHAS — Nós também estivemos no Godinho. Não viu lá a Filomena Brito com a filha?
FELICIANINHA — Vi, por sinal que tanto uma como a outra estavam caiadas que era um Deus nos acuda.
DONA BÁRBARA — Andam constantemente assim. E a sirigaita da filha a estropiar palavras em francês, inglês, alemão e italiano, para mostrar aos circunstantes que já esteve na Europa.
FELICIANINHA — Eu acho uma coisa tão ridícula! E o que quer dizer vestir-se a mãe igual à filha!
DONA BÁRBARA — É moda cá da sua terra. Andam as velhas por aí todas pintadas, frisadas, esticadas e arrebicadas, à espera dos rapazes pelas portas dos armarinhos e das confeitarias. Cruz, credo, Santa Bárbara! Só se benzendo a gente com a mão canhota. Olhe, lá em Minas nunca vi disto e estou com cinqüenta anos!
CENA VII
[editar]DONA BÁRBARA, MARIQUINHAS, FELICIANINHA, FILOMENA e BEATRIZ
MARIQUINHAS — Lá vem a Filomena com a filha.
DONA BÁRBARA — Olhem só que sirigaitas!
FILOMENA (Saindo com Beatriz do armarinho do fundo.) — Como está, dona Bárbara? (Cumprimentam-se todas, beijando-se.)
DONA BÁRBARA — Como está, minha amiga?
MARIQUINHAS (Para Beatriz.) — Sempre bonita e interessante.
DONA BÁRBARA (Para Filomena.) — E a senhora cada vez mais moça.
FILOMENA — São os seus olhos.
FELICIANINHA (Para Beatriz.) — Como tem passado?
BEATRIZ — Assim, assim. Çá vá doucement, ou como dizem os alemães: so, so.
DONA BÁRBARA (Baixo a Mariquinhas.) — Começa ela com a algaravia.
BEATRIZ — Não tive o prazer de vê-la no último baile do Cassino. Esteve ravissant, esplendide. O high-life do Rio de Janeiro estava representado em tudo quanto possui de mais recherchè. O salão iluminado a giorno, e a last fashion exibia os seus mais belos esplendores. Prachtvoll, ausgezeichnet, como dizem os alemães.
DONA BÁRBARA (Baixo a Mariquinhas.) — Olha só para aquilo. Ausgetz... Parece que tem um pedaço de cará fervendo na boca.
FILOMENA — A Beatriz causou sensação. Não leram a descrição da sua toilette?
DONA BÁRBARA — Ouvi dizer alguma coisa a respeito.
FILOMENA — Pois saiu em todos os jornais, no Globo, na Gazetinha, na Gazeta da Tarde, na Gazeta de Notícias...
BEATRIZ — O corpinho estava come ci, come cá. A saia é que estava ravissant! Era toda bouilloné, com fitas veill’or e inteiramente curta.
FELICIANINHA — Vestido curto para baile?
BEATRIZ — É a última moda.
MARIQUINHAS — Onde mandou fazê-lo?
FILOMENA — Veio da Europa.
BEATRIZ — E foi feito pelo Worth.
DONA BÁRBARA (Baixo a Mariquinhas.) — Com toda a certeza foi feito em casa, com aviamentos comprados em algum armarinho muito cangueiro.
FILOMENA — Mas não vale a pena mandar vir vestidos da Europa. Chegam por um dinheirão, e aqui não apreciam essas coisas.
BEATRIZ — O que aqui apreciam é muita fita, muitas cores espantadas... enfim, tout ce qu’il y a de camelote.
FELICIANINHA — Não é tanto assim.
BEATRIZ — Agora mesmo acabamos de encontrar com as filhas do Trancoso, vestidas de um modo...
FILOMENA — É verdade, vinham muito ridículas.
BEATRIZ — Escorridas, coitadas, que pareciam um chapéu de sol fechado. Sapristi!
FILOMENA — E onde é que foi a mulher do Seabra buscar aquele vestido branco todo cheio de fofinhos e crespinhos!
BEATRIZ — Parecia que estava vestida de tripas. C’est incroyable.
DONA BÁRBARA — Deixe estar que na Europa também se há de ver muita coisa ridícula. Não é só aqui que...
BEATRIZ — Disto lá nunca vi; pelo menos em Paris.
DONA BÁRBARA (À parte.) — Desfrutável! (Para Mariquinhas, alto.) Menina, vamos embora, que já é tarde.
MARIQUINHAS — Adeus, dona Beatriz.
BEATRIZ — Addio. (Beijam-se todas reciprocamente.)
FILOMENA (Para dona Bárbara.) — Apareça; sabe que sou, fui e serei sempre sua amiga.
DONA BÁRBARA — Da mesma forma. E se assim não fosse também dizia-lhe logo; eu cá sou muito franca.
FILOMENA — E por isso é que a estimo e considero. (Saem dona Bárbara, Mariquinhas e Felicianinha.)
CENA VIII
[editar]BEATRIZ e FILOMENA
BEATRIZ (Vendo Mariquinhas.) — Olhe só como vai aquele chapéu especado no alto da cabeça.
FILOMENA — E a mãe cada vez se veste pior. Não parece que já tem vindo ao Rio. Viste o doutor Raul?
BEATRIZ — Não senhora.
FILOMENA — É singular! Por que desapareceu ele lá de casa?
BEATRIZ — Não sei! Alguma intriga talvez. Sou tão infeliz...
FILOMENA — Pois olha, aquele era um excelente partido. Moço, talentoso.
BEATRIZ — Tout a fait chique.
FILOMENA — E tout a fait, (Faz sinal de dinheiro.) que é o principal.
BEATRIZ — Se papai fosse chamado agora para o ministério...
CENA IX
[editar]AS MESMAS, RAUL e GOULARTE
RAUL (Entrando do fundo com Goularte e vendo Beatriz e Filomena.) — Oh! diabo! lá está a mulher do conselheiro Brito com a filha... Se me descobrem estou perdido.
GOULARTE — Por quê?
RAUL — Por quê? Porque a filha namora-me, desgraçado, julga-me muito rico, e noutro dia no Cassino, caindo eu na asneira de dizer-lhe que era bela, encantadora, essas banalidades, tu sabes, que costumamos dizer às moças nos bailes, o diabinho da rapariga fêz-se vermelha, abaixou os olhos, e disse-me: — Senhor doutor Raul, por que não me pede a papai?
GOULARTE — Pois pede-lhe.
RAUL — Nessa não caio eu! É pobre como Jó, e mulher sem isto (Sinal de dinheiro.) está se ninando. Vamos embora. (Saem.)
CENA X
[editar]FILOMENA, BEATRIZ, MISTER JAMES e PEREIRA
FILOMENA — E Mister James? Não me disseste que ele também?...
BEATRIZ — Faz-me a corte, é verdade; porém aquilo é pássaro bisnau, e não cai assim no laço com duas razões.
FILOMENA — Dizem que é o inglês mais rico do Rio de Janeiro.
BEATRIZ — Isto sei eu.
MR. JAMES (Saindo do Castelões com Pereira e vendo as duas.) — How? Mim não póde fica aqui; vai embora depressa, senhor comendador.
PEREIRA — Por quê?
MR. JAMES — Semana passada, mim estar na baile de Cassino, diz àquele menina, que ele estar bonita; menina estar estúpida, e diz a mim — How? Por que voucê não mi pede a papai?
PEREIRA — Bravo! E por que não se casa com ela?
MR. JAMES — Oh! no; mim não estar vem a Brasil pra casa. Mim vem aqui pra faz negócia. Menina não tem dinheiro, casamento estar mau negócia. No, no, no quer. Eu vai embora. (Sai para um lado, e Pereira para outro.)
FILOMENA (Tirando uma carteirinha do bolso.) — Vejamos o que há ainda a fazer.
BEATRIZ — Vamos à Notre-Dame ver os colarinhos e ao Boulevard do Manuel Ribeiro.
FILOMENA — É verdade; vamos lá. (Saem.)
CENA XI
[editar]ERNESTO e FILIPE FLECHA
FILIPE (Saindo do armarinho com uma caixa de papelão debaixo do braço, a Ernesto, que sai do Globo.) — Senhor Ernesto, vê aquela mulher?
ERNESTO — Qual delas? Uma é a senhora do conselheiro Brito, a outra é a filha.
FILIPE — Aquela mulher é a minha desgraça.
ERNESTO — Quem?... A filha?
FILIPE — Ela sim! Por causa dela já não durmo, já não como, já não bebo. Vi-a pela primeira vez, há uma semana, no Castelões. Comia uma empada! Com que graça ela segurava a apetitosa iguaria entre o fura-bolo e o mata-piolho, assim, olhe. (Imita.) Vê-la e perder a cabeça foi obra de um momento.
ERNESTO — Mas, desventurado, não sabes?...
FILIPE — Já sei o que vai dizer-me. Que sou um simples caixeiro de armarinho e que não posso aspirar à mão daquele anjo. Mas dentro do peito deste caixeiro pulsa um coração de poeta. Não pode imaginar as torturas por que tenho passado desde o instante em que a vi... Vi-a pela primeira vez no Castelões...
ERNESTO — Comia uma empada. Já me disseste.
FILIPE — Mas o que ainda não lhe disse é que por causa dela tenho chuchado as maiores descomposturas dos patrões, e que em um belo dia ficarei na rua a tocar leques com bandurras. A sua imagem não me sai um só instante da cabeça. Estou no armarinho; se me encomendam linha dou marcas de lamparinas; se gritam retrós preto trago sabonetes; a um velho que me pediu ontem suspensórios meti-lhe nas mãos uma bisnaga! O homem gritou, o patrão chamou-me de burro, os fregueses tomaram pagode comigo. Estou desmoralizado.
ERNESTO — Está bom, já sei.
FILIPE — Não pode saber, seu Ernesto.
ERNESTO — Olha, se o patrão te vê de lá a conversar aqui, estás arranjado.
FILIPE — Noutro dia à noite, quando os outros caixeiros dormiam, eu levantei-me, acendi a vela, e escrevi este soneto. (Tira um papel do bolso e lê.) Ouça só o princípio:
Quando te vejo radiante e bela,
Por entre rendas, filós e escumilha
Meu coração ardente se humilha,
E minha alma murmura: é ela!
ERNESTO — Magnífico! Está muito bom.
FILIPE — Mandei-o para a Gazetinha. Pois querem saber o que fizeram? (Tirando a Gazetinha do bolso e mostrando.) Leia. É aqui na correspondência.
ERNESTO (Lendo.) — “Sr. F. F.”.
FILIPE — Filipe Flecha, sou eu.
ERNESTO (Lendo.) — “Os seus versos cheiram a metro e a balcão; o poeta, não passa talvez de um caixeiro de armarinho.” (Rindo.) É boa! É boa!
FILIPE — O maldito filó e a escumilha comprometeram-me. Não leio mais este papelucho. (Sobe.) Lá está ela parada à porta do Farani.
CENA XII
[editar]OS MESMOS, 1º VENDEDOR, 2º VENDEDOR, 3º IDEM, 4º IDEM (Saindo do Globo.)
1º VENDEDOR — O Globo da tarde a 40 réis.
2º VENDEDOR — O Globo, trazendo o ministério e a lista da loteria.
3º VENDEDOR — O Globo.
4º VENDEDOR — O Globo a 40 réis.
ERNESTO — Vejamos se já há alguma coisa de novo. (Compra. Para Filipe.) Não queres saber quem foi chamado para o ministério?
FILIPE — Que me importa o ministério? O meu ministério é ela! Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no Castelões. Ela comia...
ERNESTO — Uma empada, com os diabos, já sei; não me amoles. (Sai.)
CENA XIII
[editar]FILIPE e VENDEDOR DE BILHETES
VENDEDOR DE BILHETES — A sorte grande do Ipiranga!... Quem quer os duzentos contos!
FILIPE — Oh! Como te amo!
VENDEDOR (Para Filipe.) — Não quer os duzentos contos?
FILIPE — Deixa-me.
VENDEDOR — Fique com este número que é o último.
FILIPE — Não quero.
VENDEDOR — Eu tenho um palpite de que o senhor apanha a taluda.
FILIPE — Homem, vá-se embora.
VENDEDOR — Veja só o número.
FILIPE (À parte.) — Quem sabe se não está aqui a minha felicidade?!
VENDEDOR — Então, não se tenta?
FILIPE (À parte, tirando dinheiro do bolso.) — Lá se vão os últimos vinte e cinco mil réis, que me restam do ordenado deste mês. (Alto.) Tome. Não quero ver o número. (Sai o vendedor.) Lá seguiu ela para a Rua dos Ourives. (Sai correndo.)
CENA XIV
[editar]MISTER JAMES e RAUL
RAUL (Saindo da direita e lendo o Globo.) — “À hora em que entrou a nossa folha para o prelo, ainda não se sabia...” (Continua a ler baixo.)
MR. JAMES (Que vem lendo também o Globo, entrando por outro lado.) — “Os últimos telegramas da Europa anunciam... (Continua a ler baixo, encontrando-se com Raul.)
RAUL — Oh! Mister James! Como está?
MR. JAMES — How, senhor Raul, como tem passada?
RAUL — Então sabe já alguma coisa acerca do ministério?
MR. JAMES — Não estar já bem informada. É difícil este crise. Neste país tem duas cousas que não estar bom; é criadas e ministéria. Criadas não quer pára em casa, e ministéria dura três, quatro meses, bumba! Vai em terra. Brasileira não pode suporta governo muite tempo. Quando ministra começa a faz alguma cousa, tudo grita — No presta, homem estar estúpida, homem estar tratanta...
RAUL — Infelizmente é a pura verdade.
MR. JAMES — Quando outra sobe diz mesma cousa, muda presidenta de província, subdelegada, inspetor de quarteirão, e país, em vez de anda, estar sempre parada.
RAUL — A verdade nua e crua.
MR. JAMES — Voucê escusa, se mim diz isto. Tudo quanto faz neste terra não é pra inglês ver?
RAUL — Assim dizem.
MR. JAMES — Pois então mim estar inglês, mim estar na direita de faz crítica do Brasil.
RAUL — A maldita política é que tem sido sempre a nossa desgraça.
MR. JAMES — Oh! Yes. Vem liberal, faz couse boe, vem conservador desmanche couse boe de liberal.
RAUL — E vice-versa.
MR. JAMES — Oh! Yes.
RAUL — E os republicanos?
MR. JAMES — How! Não fala em republicanas. Estar gente toda very good. Mas mim não gosta de republicana que faz barulha no meio da rua; governo dá emprega e republicana cala sua boca.
RAUL — Mas no número destes que calam a boca com empregos não se compreendem os republicanos evolucionistas; aqueles que, como eu, querem o ideal dos governos sem sangue derramado, sem comoções sociais.
MR. JAMES — Oh! Republicana evolucionista estar a primeira de todos republicanas. Espera de braço cruzado que república aparece; e enquanto república não aparece, republicana estar ministra, deputada, senador, conselheira, tuda. Republicana evolucionista estar partida que tem por partida tira partida de todas as partidas.
RAUL — Não é nos partidos que está o nosso mal.
MR. JAMES — Sua mal de voucês está no língua. Brasileira fala muito, faz discursa very beautiful, mas país não anda pra adiante com discursa.
RAUL — Tem razão.
MR. JAMES — País precisa de braças, de comércia, de indústria, de estradas de ferro...
RAUL — É verdade, e a sua estrada para o Corcovado?
MR. JAMES — Mim estar em ajuste com companhia. Mas quando pretende compra estrada e que tem promessa de governa pra privilégia, maldita governa cai, e mim deixa de ganha muita dinheira.
RAUL — Mas pode obter o privilégio com esta gente.
MR. JAMES — Oh! Yes! Para alcança privilégia em que ganha dinheira mim faz tudo, tudo.
RAUL — Se eu pudesse alcançar também...
MR. JAMES — Uma privilégia?
RAUL — Não; contento-me com um emprego.
MR. JAMES — Mas voucê estar republicana evolucionista, pode alcança. Estrada pra Corcovado vai felicita muito Rio de Janeiro.
RAUL — Dizem que o seu sistema é diverso do da empresa atual?
MR. JAMES — Oh! Yes!
RAUL — Como pretende subir?
MR. JAMES — É um segredo, que voucê depois há de sabe. Se mim não alcança privilégia estar perdida!
RAUL — Por quê?
MR. JAMES — Porque já tem empata muito dinheira, e agora é preciso ganha.
RAUL — Só eu não acho também em que ganhar dinheiro.
MR. JAMES — Voucê não estar rico?
RAUL — Assim dizem; mas só eu sei as linhas com que me caso. No Rio de Janeiro quando um sujeito possui cinqüenta contos, dizem todos, tem trezentos!
CENA XV
[editar]OS MESMOS e FILIPE
FILIPE — Sumiu-se pela rua dos Ourives. Não pude mais vê-la. Não há remédio senão levar esta caixa ao seu destino.
CENA XVI
[editar]FILIPE, MISTER JAMES, RAUL, ERNESTO e GOULARTE
ERNESTO (Correndo.) — Até que afinal.
FILIPE e RAUL — O que é?
ERNESTO — Foi chamado...
GOULARTE — O Conselheiro Felício de Brito!
RAUL — O pai da Beatriz de Brito?
ERNESTO — Isso mesmo.
FILIPE — Magnífico! Magnífico! Magnífico!
MR. JAMES — Conselheira de Brito, que estar pai de senhora Beatriz?
ERNESTO — Yes.
MR. JAMES (Sorrindo, à parte.) — How!
FILIPE (À parte.) — O pai dela!
RAUL — Mas esta notícia é verdadeira?
ERNESTO — Está à porta de todos os jornais. Na Gazetinha, na Gazeta de Notícias...
GOULARTE — Na Gazeta da Tarde, no Cruzeiro... no Jornal do Commercio...
RAUL — Lá estão pregando um papel no Globo (Reúnem-se todos junto ao Globo, menos Raul, Filipe e mister James, que ficam no proscênio.)
RAUL (Á parte.) — Beatriz julga-me rico, ofereço-lhe a mão, que aliás ela já pediu, e apanho um emprego.
MR. JAMES (Á parte.) — Filha de presidenta de conselha estar apaixonada por mim; mim com certeza apanha privilégia.
FILIPE (À parte.) — Eu amo-a, adoro-a cada vez mais. Ah! que se eu apanho a sorte grande!!
RAUL — Está chovendo. (Abre o guarda-chuva.)
MR. JAMES — É verdade. (Abre o guarda-chuva. Todos abrem guarda-chuvas, menos Filipe.)
FILIPE (À parte.) — Lá vem ela!
RAUL (À parte.) — Ela!
MR. JAMES (Vendo Beatriz.) — How! (Ao entrar em cena Beatriz, acompanhada de Filomena, Raul dá-lhe o braço e cobre-a com o chapéu, James dá o braço a Filomena e cobre-a.)
RAUL — Dou-lhe os meus sinceros parabéns.
MR. JAMES — Minhas felicitações.
FILOMENA — Obrigada.
FILIPE (Tomando os embrulhos de Filomena e Beatriz.) — Façam o favor, minhas senhoras!
BEATRIZ — Não se incomode.
FILIPE (À parte.) — Que mão, Santo Deus! Estou aqui, estou-lhe em casa.
(Fim do primeiro ato.)