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Caiu o Ministério!/II

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Sala elegantemente mobiliada. Portas ao fundo e laterais.

CENA I

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ERNESTO e FILIPE


ERNESTO (Entrando, a Filipe, que deve estar tomando notas em uma pequena carteira.) — Filipe?! Por aqui?!

FILIPE — E então?

ERNESTO — És também pretendente?

FILIPE — Não; sou repórter.

ERNESTO — Repórter?

FILIPE — É verdade. O amor ou é a minha perdição ou há de ser talvez a causa da minha felicidade. Venho aqui todos os dias, extasio-me diante daquelas formas divinas... Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no Castelões, ela...

ERNESTO — Comia uma empada.

FILIPE — Ah! Já lhe disse?

ERNESTO — Milhares de vezes; já sei esta história de cor e salteado. Mas como diabo te fizeste repórter?

FILIPE — Desde o dia em que tive a felicidade de encontrar essa mulher na estrada sinuosa, espinhosa, lacrimosa da existência, tornei-me completamente outro homem. A atmosfera do armarinho pesava-me, o balcão acachapava-me, o metro desmoralizava-me, e a idéia de ter um patrão encafifava-me... Eu sentia dentro de mim um não sei quê que me dizia: — Filipe Flecha, tu não nasceste para vender agulhas, alfazema e lamparinas marca de pau, ergue a cabeça...

ERNESTO — E ergueste-a.

FILIPE — Não, abaixei-a para evitar um cascudo que o patrão pretendia dar-me em um belo dia em que estava a olhar para a rua, em vez de servir as freguesas, e não voltei mais à loja. Achando-me só, sem emprego, disse com os meus botões: — é preciso que eu faça alguma coisa. Escrever para o público, ver o meu nome em letra redonda, o senhor sabe, foi sempre a minha cachaça. Fiz-me repórter, nas horas vagas escrevo versos, e daqui para jornalista é um pulo.

ERNESTO — És mais feliz do que eu.

FILIPE — Por quê?

ERNESTO — Porque não pretendes sentar-te a uma grande mesa que há neste país, chamada do orçamento, e onde, com bem raras exceções, todos têm o seu talher. Nesta mesa uns banqueteiam-se, outros comem, outros apenas lambiscam. E é para lambiscar um bocadinho, que venho procurar o ministro.

FILIPE — Ele não deve tardar.

ERNESTO — Fui classificado em primeiro lugar no último concurso da secretaria.

FILIPE — Então está com certeza nomeado.

ERNESTO — Se a isso não se opuser um senhor de baraço e cutelo, chamado empenho, que tudo ata e desata nesta terra, e a quem até os mais poderosos curvam a cabeça.

FILIPE — Aí vem o ministro.

CENA II

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OS MESMOS, CONSELHEIRO FELÍCIO DE BRITO


ERNESTO (Cumprimentando.) — Às ordens de Sua Excelência.

FILIPE (Cumprimentando.) — Excelentíssimo.

BRITO — O que desejam?

ERNESTO — Vinha trazer esta carta para Sua Excelência e implorar-lhe a sua valiosa proteção.

BRITO (Depois de ler a carta.) — Sim, senhor. Diga ao senhor senador que hei de fazer todo o possível por servi-lo. Vá descansado.

ERNESTO — Eu tenho a observar a Sua Excelência...

BRITO — Já sei, já sei.

ERNESTO — Que fui classificado em primeiro lugar.

BRITO — Já sei, já sei. Vá. (Ernesto cumprimenta e sai. A Fi­lipe, que deve estar a fazer muitos cumprimentos.) O que quer? Ah! É o senhor?

FILIPE — Humilíssimo servo de Sua Excelência. Desejava saber se já há alguma coisa de definitivo.

BRITO — Pode dizer na sua folha que hoje mesmo deve ficar preenchida a pasta da Marinha; que o governo tem lutado com dificuldades... Não, não diga isto.

FILIPE — E essas dificuldades devem ter sido bem grandes; porque há quinze dias que o ministério está organizado, e ainda não se pôde achar um ministro para a Marinha.

BRITO — O verdadeiro é não dizer nada. Venha cá logo, e comunicar-lhe-ei então tudo o que houver ocorrido.

FILIPE (À parte.) — Onde estará ela?

BRITO — Vá, vá, venha logo.

FILIPE (À parte.) — Se eu pudesse vê-la. (Alto.) Excelentís­simo. (Cumprimenta e sai.)

CENA III

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BRITO, FILOMENA e BEATRIZ


BRITO (Toca a campainha; aparece um criado.) — Não deixe ninguém entrar nesta sala. (O criado inclina-se.)

FILOMENA (Que entra com Beatriz, pela esquerda.) — E as minhas visitas?

BEATRIZ — E as minhas, papai? Voyons. Ça ne se fait pas.

BRITO — Porém, minha querida Beatriz, espero aqui os meus colegas, temos que tratar de negócios do Estado, que são negócios muito sério.

BEATRIZ — Ça ne fait rien.

FILOMENA — Ao menos dê ordem para que deixem entrar mr. James.

BEATRIZ — E o Senhor Raul também.

BRITO — Valha-me Deus! Vocês alcançam de mim tudo o que querem. (Para o criado.) Quando o senhor James e o senhor Raul chegarem, manda-os entrar. (O criado cumprimenta e sai.) Estão satisfeitas?

BEATRIZ — I love you, meu querido papai.

FILOMENA (Reparando a sala.) — E então? A sala já não parece a mesma!

BEATRIZ — E as cortinas estão assorti com a mobília, mas este tapete é um escarro.

FILOMENA — É verdade. Felício, precisamos comprar um tapete. Vi ontem um muito bonito no Costrejean.

BRITO — Não compro mais coisa alguma, minha senhora. A senhora pensa porventura que eu aceitei esta prebenda para ainda em cima arruinar-me?

FILOMENA — Quando se está em certa posição, não se deve fazer figura ridícula.

BEATRIZ — Noblesse oblige, papai.

FILOMENA — Não sei o que quer dizer ser ministro e andar de bonde como os outros, ter uma casa modestamente mobiliada, como os outros, não receber, não dar bailes, não dar jantares, como os outros, vestir-se como os outros.

BEATRIZ — É verdade. C’est ridicule.

BRITO — Mas, minhas filhas, não há ninguém por aí que não saiba que tenho poucos recursos, que vivo apenas dos meus ordenados. A vida de um homem de Estado é devassada e esmerilhada por todos, desde os mais ínfimos até os mais elevados representantes da escala social. O que dirão se me virem amanhã ostentando um luxo incompatível com os meus haveres?

FILOMENA — Se a gente for dar satisfações a tudo o que dizem...

BRITO — E olha que aqui não se cochila para dizer que um ministro é ladrão. O que mais querem vocês de mim? Já obrigaram-me a alugar esta casa em Botafogo...

FILOMENA — Devíamos ficar morando em Catumbi?

BRITO — E o que tem Catumbi?

BEATRIZ — Ora papai.

BRITO — Sim, o que tem?

BEATRIZ — Não é um bairro como il faut.

BRITO — Obrigaram-me a assinar o Teatro Lírico e... camarote.

FILOMENA — Está visto. Havia de ser interessante ver a família do presidente do Conselho sentada nas cadeiras.

BEATRIZ — Como qualquer sinhá Ritinha da Prainha ou da Gamboa... Dieu m’en garde! Eu preferiria lá não ir.

BRITO — Obrigaram-me mais a ter criados estrangeiros de casaca e gravata branca, quando eu podia perfeitamente arranjar a festa com o Paulo, o Zebedeu e a Maria Angélica.

BEATRIZ — Pois não, são frescos, sobretudo o Zebedeu. No outro dia, à mesa de jantar, mamãe disse-lhe: — Vá buscar lá dentro uma garrafa de vinho do Porto, mas tome cuidado, não a sacuda. Quando chegou com a garrafa, mamãe perguntou-lhe: — Sacudiu? — Não senhora, diz ele, mas vou sacudir agora. E co­meça, zás, zás, zás. (Faz menção de quem sacode.) Quelle imbecile. Aquilo é que os alemães chamam — in Schafskopf!

BRITO— Até a minha roupa vocês querem reformar.

FILOMENA — Com franqueza, Felício, a tua sobrecasaca já estava muito sebosa!

BEATRIZ — Papai quer fazer a mesma figura que faz o ministro do Império?

BRITO — É um homem muito inteligente. Tem um grande tino administrativo.

BEATRIZ — Tem, sim, senhor; mas era melhor que ele tivesse um paletó na razão direta da inteligência. E depois, como come, Santo Deus! Segura na faca assim, olhe, (Mostra.) e mete-a na boca até o cabo, toda atulhada de comida. Choking.

BRITO — Em compensação o ministro de Estrangeiros...

BEATRIZ — É o melhorzinho deles. Mas não sabe línguas.

BRITO — Estás enganada, fala muito bem francês.

BEATRIZ — Muito bem, muito bem, lá para que digamos não senhor. Diz monsiù, negligè, bordó, e outras que tais.

BRITO — Enfim há quinze dias apenas que subi ao poder e já estou cheio de dívidas!

FILOMENA — Não é tanto assim.

BRITO — Só ao compadre Bastos devo dez contos de réis.

FILOMENA — E se não fosse ele, estaríamos representando um papel bem triste.

BEATRIZ — Não poderíamos receber às quintas-feiras o high life do Rio de Janeiro.

BRITO — Sim, esse high life que aqui vem dançar o cotillon, ouvir boa música, saborear-me os vinhos; e que abandonar-me-á com a mesma facilidade com que hoje me adula, no dia em que eu não puder mais dispor dos empregos públicos.

BEATRIZ — Papai não tem razão.

BRITO — Pois bem, minha filha, quer tenha ou não razão, só te peço uma coisa, e faço igual pedido à tua mãe. Não exijam de mim impossíveis. Vocês sabem que nada lhes posso negar. (Tirando o relógio e vendo as horas.) Os meus companheiros não tardam. Vou ao meu gabinete; já volto.

CENA IV

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FILOMENA, BEATRIZ e MISTER JAMES


BEATRIZ (Sentando-se e lendo um livro, que deve trazer na mão.) — É muito bem escrito este romance de Manzoni.

FILOMENA — Um tapete novo aqui deve fazer um vistão. Não achas?

MR. JAMES (Com um rolo debaixo do braço.) — Mim pode entra?

FILOMENA — Oh! Mr. James!

MR. JAMES — Como está, senhorra? (Para Beatriz.) Vosmecê vai bem?

FILOMENA — Pensei que não viesse.

MR. JAMES — Oh! mim dá palavra que vem; mim não falta sua palavra.

BEATRIZ — Assim deve ser.

FILOMENA — Trouxe os seus papéis?

MR. JAMES — Oh! Yes.

BEATRIZ — O seu projeto é a great attraction do dia.

MR. JAMES — Projeto estar muita grandiosa. (Desenrola o papel e mostra.) Carros sai daqui de Cosme Velha, e sobe Corco­vada em vinte minutas.

BEATRIZ — E estes cachorros que estão aqui pintados?

MR. JAMES — Senhorras não entende deste cousa: mim fala com pai de vosmecê, explica o que é todos esses cachorras.

FILOMENA — Tudo quanto temos de bom devemos aos senhores estrangeiros.

BEATRIZ — C’est vrai. Os brasileiros, com raras exceções, não se ocupam destas coisas.

MR. JAMES — Brasileira estar muito inteligenta; mas estar também muito preguiça. Passa vida no Rua do Ouvidor a fala de política, pensa só de política de manhã até a noite. Brasileira quer estar deputada, juiz de paz, vereador... Vereador ganha dinheira?

FILOMENA — Não, senhor; é um cargo gratuito.

MR. JAMES — Então mim não sabe como tudo quer ser vereador. Senhorra já fala com sua marida a respeita de minha projeta?

FILOMENA — Não, senhor, mas hei de falar-lhe.

MR. JAMES — Sua marida estar engenheira ou agricultor?

BEATRIZ — Papai é doutor em Direito.

MR. JAMES — E ministra de Império?

BEATRIZ — Também doutor em Direito.

MR. JAMES — Ministra d’Estrangeiras?

FILOMENA — Doutor em Direito.

MR. JAMES — How! Toda ministéria estar doutor em direita?

BEATRIZ — Sim, senhor.

MR. JAMES — Na escola de doutor em direita estuda marinha, aprende planta batatas e café, e sabe todas essas cousas de guerra?

FILOMENA — Não, senhor.

BEATRIZ — Estudam-se leis.

MR. JAMES — No Brasil estar tudo doutor em direita. País no indireita assim. Mim não sabe se estar incomodando senhora. (Sentam-se.)

BEATRIZ — Oh! o senhor nunca nos incomoda, dá-nos sempre muito prazer.

MR. JAMES — Pois mim tem também muito prazer em conversa com vosmecê; (Para Beatriz) pois eu gosta muito de brasileiras.

BEATRIZ — Mas as inglesas são very beautiful. Eu vi em Londres, no Hyde-Park, verdadeiras formosuras.

MR. JAMES — Oh! yes. Inglesas estar muito bonitas, mas brasileira tem mais... tem mais... Como chama este palavra... Eu tem no ponta da língua... brasileira tem mais pasquim.

FILOMENA — Pasquim?!

MR. JAMES — No, no, como chama este graça de brasileira?

BEATRIZ — Ah! quindins.

MR. JAMES — Oh! yes, very well. Quindins.

FILOMENA — Muito bem, mr. James. Falta agora que o senhor confirme o que acaba de dizer casando-se com uma brasileira.

MR. JAMES — Mim no pode casa, por ora, porque só tem cinqüenta mil libras sterlinas; mas se mim arranja este privilégia, dá palavra que fica em Brasil e casa com brasileira.

FILOMENA — Pelo que vejo já está enfeitiçado pelos quindins de alguma?

MR. JAMES — Não duvida, senhora, e crê que feitiça não estar muito longe daqui. (Olha significativamente para Beatriz.)

BEATRIZ — (À parte.) — Isto já eu sabia.

FILOMENA (À parte.) — É a sorte grande!

CENA V

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OS MESMOS e BRITO


BRITO (Vendo o relógio.) — Ainda nada. Oh! Mister James. Como está?

MR. JAMES — Criada de Sua Excelência. (Conversa com Beatriz.)

FILOMENA (Levando Brito para um lado.) — Este inglês possui uma fortuna de mais de quinhentos contos, parece gostar de Beatriz... Se nós soubermos levá-lo, poderemos fazer a felicidade da menina.

BRITO — E o que queres que faça?

FILOMENA — Que lhe concedas o privilégio que ele pede.

BRITO — Mas, senhora, estas questões não dependem só de mim. Eu não quero comprometer-me.

FILOMENA — Então para que te serve ser presidente do Conselho?

BRITO — Mas eu não posso nem devo dispor das coisas do Estado para arranjos de família. A senhora já me endividou e quer agora desacreditar-me.

FILOMENA — Pois isto há de se fazer. Mr. James, meu ma­rido quer conversar com o senhor a respeito do seu negócio.

BRITO — Estarei às suas ordens, senhor James; porém um pouco mais tarde. Espero os meus colegas.

MR. JAMES — A que horas mim pode procura Sua Excelência?

BRITO — Às duas horas.

MR. JAMES — Até logo. (Cumprimenta e sai.)

CENA VI

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OS MESMOS, menos MISTER JAMES


BRITO — A senhora ainda há de comprometer-me. (Sai.)

FILOMENA — Dizem todos que é um projeto grandioso.

BEATRIZ — Vou acabar a leitura deste romance.

FILOMENA — Eu vou dar as ordens para a partida desta noite.

CENA VII

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DONA BÁRBARA, CRIADO e o DESEMBARGADOR FRANCISCO COELHO


CRIADO — Sua Excelência não está em casa.

COELHO — Quero falar com as senhoras. Aqui tem o meu cartão. (Criado cumprimenta e sai.)

DONA BÁRBARA — Está em casa com toda a certeza; mas negou-se.

COELHO — Isto sei eu; e por isso é que entrei.

DONA BÁRBARA — Eu não devia vir. Estas sirigaitas aborre­cem-me extraordinariamente.

COELHO — Mas, minha filha, tu pensas que em política a gente sobe unicamente por seus belos olhos? Não sou rico, já estou velho, não tenho pai alcaide, se deixar fugir as ocasiões, quando serei ministro?

DONA BÁRBARA — E para que você quer ser ministro, seu Chico?

COELHO — Ora, tens às vezes certas perguntas? Para quê? Para governar, para fazer o que os outros fazem.

DONA BÁRBARA — Você não tem sabido governar a fazenda, e quer governar o Estado!

COELHO — A senhora não entende destas coisas.

DONA BÁRBARA — Ora, diga cá! Suponha que você é nomeado ministro.

COELHO — Sim, senhora.

DONA BÁRBARA — Perde a cadeira na Câmara. Tem de sujeitar-se a uma nova eleição...

COELHO — E o que tem isto?

DONA BÁRBARA — O que tem?! É que se você cair nesta asneira, seu Chico, toma uma derrota, tão certo como eu chamar-me Bárbara Benvinda da Purificação Coelho.

COELHO — Eu, ministro, derrotado?

DONA BÁRBARA — E por que não? Você é melhor do que os outros?

CENA VIII

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OS MESMOS, RAUL, BEATRIZ e FILOMENA


RAUL — Senhor desembargador.

COELHO — Senhor doutor.

RAUL — Minha senhora.

FILOMENA — Fiz-lhe esperar muito?

BEATRIZ (Para Raul.) — Não sabia que estava também aqui.

COELHO — O conselheiro não está em casa?

FILOMENA — Está no seu gabinete.

DONA BÁRBARA (Baixo.) — O que te dizia eu?

FILOMENA — Quer falar-lhe?

COELHO — Se fosse possível...

FILOMENA — Entre.

COELHO — Com licença. (Sai.)

CENA IX

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RAUL, BEATRIZ, DONA BÁRBARA e FILOMENA


DONA BÁRBARA — Como vão os seus pequenos?

FILOMENA — O Chiquinho vai bem; a Rosinha é que tem passado mal.

BEATRIZ (A Raul.) — Por que não tem aparecido?

RAUL — Sabe que o meu desejo era viver sempre a seu lado.

BEATRIZ — Está nas suas mãos.

RAUL — Se fosse possível...

DONA BÁRBARA — Quem sabe se ela não sofre de vermes?

FILOMENA — O próprio médico não sabe o que é. Sente umas coisas que sobem e descem; às vezes fica meio apatetada.

DONA BÁRBARA — Querem ver que é mau olhado!

FILOMENA — Ora, a senhora acredita nessas coisas?!

DONA BÁRBARA — É porque a senhora ainda não viu o que eu presenciei com estes que a terra há de comer.

FILOMENA— Ah! ah! ah! O senhor crê em mau olhado, senhor Raul?

RAUL — Não, minha senhora; apenas no bom olhado de uns olhos feiticeiros. (Olha para Beatriz significativamente.)

DONA BÁRBARA — Pois eu vi lá em Minas uma criatura, que estava bem atacada. E em dez minutos ficou boa.

FILOMENA — Com a homeopatia?

DONA BÁRBARA — Com uma oração.

FILOMENA — Ah! E como é esta oração?!

DONA BÁRBARA — A mulher chamava-se Francisca. Molharam um ramo de arruda em água benta e rezaram-lhe o seguinte: “Fran­cisca, se tens mau olhado, ou olhos atravessados, eu te benzo em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Deus te olhe e Deus te desolhe, e Deus te tire essa mau olhado, que entre a carne e os ossos, tens criado; que saia do tutano e vá para os ossos, que saia dos ossos e vá para a carne, que saia da carne e vá para a pele, e que daí saia, e vá para o Rio Jordão, onde não faça mal a nenhum cristão.” É infalível. Experimente.

BEATRIZ (Baixo a Raul.) — Quelle bêtise.

RAUL — Não acredita na influência dos olhos?

BEATRIZ — Sim; mas não creio na eficácia daquelas orações.

RAUL — E sabe ler neles?

BEATRIZ — Quelque chose.

RAUL — O que lhe dizem os meus?

BEATRIZ — Que o senhor é um grande bandoleiro.

RAUL — Não, não é isto o que eles dizem.

BEATRIZ — O que dizem então? Voyons.

RAUL — Que aqui dentro há um coração que pulsa pela senhora e só para a senhora.

BEATRIZ— Non lo credo.

RAUL — Dona Beatriz, se estivesse em condições de fazê-la feliz, hoje mesmo dirigia-me a seu pai, e pedia-lhe o que mais ambiciono neste mundo — a sua mão.

BEATRIZ — E o que lhe falta para tornar-me feliz?

RAUL — Uma posição social.

BEATRIZ— O senhor não é bacharel em Direito?

RAUL — É verdade.

BEATRIZ — Alors...

RAUL — Porém, se o ser bacharel em Direito fosse um em­prego, haveria muito pouca gente desempregada no Brasil. Seu pai está hoje no governo, poderia lançar as suas vistas sobre mim... Como seríamos felizes um ao lado do outro.

BEATRIZ — Eu vou falar com mamãe. Comunicar-lhe-ei as suas intenções a meu respeito, e dar-lhe-ei a resposta.

RAUL — Advogue bem a minha causa, ou antes a nossa causa.

BEATRIZ — Sim. (À parte.) E eu que o julgava desinteressado. Oh! les hommes! Les hommes!

FILOMENA — Por que não veio à nossa última partida, senhor Raul?

BEATRIZ (Para Raul.) — Dançamos um cotillon que durou quase duas horas.

RAUL — Quem marcava?

BEATRIZ — O ministro da Bélgica. Oh! que j’aime le cotillon.

DONA BÁRBARA — O que vem a ser isto de cotião?

BEATRIZ — Uma dança arrebatadora.

CENA X

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OS MESMOS e COELHO


COELHO (Zangado.) — Vamos embora.

FILOMENA — Já?!

DONA BÁRBARA (Baixo a Coelho.) — Então; o que arranjaste?

COELHO (Baixo.) — O que arranjei?! Nada; mas ele arranjou uma oposição de arrancar couro e cabelo. Hei de mostrar-lhe o que valho. Estão aqui estão na rua.

DONA BÁRBARA (Baixo.) — Bem feito.

COELHO (Baixo.) — Vamos embora.

FILOMENA (Para Coelho e Bárbara, que se despedem.) — Espero que apareçam mais vezes.

COELHO — Obrigado, minha senhora. (Saem.)

RAUL — Há de permitir-me também...

FILOMENA — Então até a noite.

RAUL — Até a noite. (Sai.)

CENA XI

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FILOMENA e BEATRIZ


BEATRIZ — O senhor Raul acaba agora mesmo de pedir-me a mão.

FILOMENA — Agora mesmo?

BEATRIZ — Mas sob uma condição.

FILOMENA — Qual é?

BEATRIZ — De arranjar-lhe com papai um emprego. Veja só a senhora o que são os homens de hoje!

FILOMENA — E que lhe respondeste?

BEATRIZ — Que havia de falar com vosmecê e que dar-lhe-ia depois a resposta.

FILOMENA — Muito bem. Não lhe digas nada, por ora, enquanto não se decidir o negócio do inglês. Tenho mais fé em mr. James. Aquilo é que se pode chamar um bom partido.

BEATRIZ — E ele quererá casar comigo?

FILOMENA — Ora, não quer ele outra coisa.

CENA XII

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CRIADO, MINISTRO DA GUERRA, MINISTRO DA JUSTIÇA, MINISTRO DO IMPÉRIO, MINISTRO DE ESTRANGEI­ROS, FILOMENA e BEATRIZ


CRIADO (Na porta.) — Sua excelência o senhor ministro da Guerra.

MINISTRO DA GUERRA — Minhas senhoras. (Cumprimenta Beatriz.)

FILOMENA (Para o criado.) — Vá chamar seu amo. (O criado sai pela porta da esquerda.)

BEATRIZ — Como está sua senhora?

MINISTRO DA GUERRA — Bem, obrigado, minha senhora.

FILOMENA (Despedindo-se.) — Com licença. (Sai com Beatriz.)

CENA XIII

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OS MESMOS e BRITO, menos FILOMENA e BEATRIZ


BRITO — Meu caro conselheiro. Os outros colegas ainda não vieram?

MINISTRO DA GUERRA — Aí está o ministro da Justiça.

MINISTRO DA JUSTIÇA — Conselheiro...

MINISTRO DA GUERRA — E do Império. (Entra o ministro do Império.)

MINISTRO DA JUSTIÇA — O nosso colega de Estrangeiro aí vem.

BRITO — Ei-lo. (Entra o ministro de Estrangeiros.) Meus senhores, precisamos conjurar seriamente as dificuldades que nos cercam.

MINISTRO DA GUERRA — Apoiado.

BRITO — Há quinze dias apenas que subimos ao poder, e já se notam muitos claros nas fileiras da maioria.

MINISTRO DA JUSTIÇA — A oposição se engrossa a olhos vistos.

BRITO — Agora mesmo acaba de sair daqui o desembargador Coelho. É mais um descontente que passa para o outro lado.

MINISTRO DA JUSTIÇA — O Coelho? Ainda ontem, pode-se dizer, aspirava a ser o líder da maioria.

BRITO — É verdade! Porém suspira por uma pasta, e nas circunstâncias atuais não é possível.

CENA XIV

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O CRIADO, BRITO, MINISTRO DA GUERRA, MINISTRO DA JUSTIÇA, MINISTRO DO IMPÉRIO, MINISTRO DE ESTRAN­GEIROS, CONSELHEIRO FELIZARDO e DOUTOR MONTEIRINHO


CRIADO (À parte.) — O senhor conselheiro Felizardo.

BRITO — Oh! Senhor conselheiro. (Cumprimentam-se todos.) Esperava ansiosamente por Vossa Excelência.

FELIZARDO — Estou às ordens de Vossa Excelência.

BRITO — O seu nome, o prestígio de que goza, a sua dedicação às idéias dominantes, são títulos que muito o habilitam.

FELIZARDO — Bondade de meus correligionários.

MINISTRO DO IMPÉRIO — Pura justiça.

BRITO — Precisamos do apoio de Vossa Excelência, como do ar que respiramos. A pasta da Marinha ainda está vaga...

FELIZARDO — Já estou velho...

BRITO — Não nos animamos a oferecê-la. Longe de nós semelhante pensamento! O lugar de Vossa Excelência é na presidência do Conselho.

FELIZARDO — Se Vossas Excelências permitem, dou um homem por mim.

MINISTRO DO IMPÉRIO — Basta ser de sua confiança...

BRITO — Para ser recebido de braços abertos.

FELIZARDO (Apresentando o doutor Monteirinho.) — Aqui está o homem, o doutor Monteiro, meu sobrinho, filho de minha irmã Maria José; e que acaba de chegar da Europa, razão pela qual ainda não tomou assento na Câmara.

BRITO (Admirado.) — Senhor doutor, folgo muito de conhe­cê-lo. (Baixo a Felizardo.) Acho-o, porém, tão mocinho.

FELIZARDO — Formou-se o ano passado em São Paulo. (Baixo.) Que inteligência, meu amigo!

DR. MONTEIRINHO — Saí apenas dos bancos da academia, é verdade, meus senhores; mas tenho procurado estudar com afinco todas as grandes questões sociais que se agitam atualmente. A minha pena já é conhecida no jornalismo diário e nas revistas científicas. Na polêmica, nas questões literárias, nos debates políticos, nas di­versas manifestações, enfim, da atividade intelectual, tenho feito o possível por criar um nome.

FELIZARDO (Baixo.) — É muito hábil.

BRITO (Baixo.) — É verdade.

FELIZARDO (Baixo.) — É um canário.

DR. MONTEIRINHO — Se não fossem as influências mesológicas assaz acanhadas, em que vivem nesta terra as inteligências que procuram abrir a corola aos raios ardentes da luz, eu já teria talvez aparecido, a despeito dos meus verdes anos.

BRITO (Baixo a Felizardo.) — Que idade tem?

FELIZARDO — Que idade tens, Cazuza?

DR. MONTEIRINHO — Vinte e dois anos.

MINISTRO DA JUSTIÇA — O senhor doutor Monteiro não é...

FELIZARDO — Chame-o doutor Monteirinho. É o nome por que ele é conhecido.

MINISTRO DA JUSTIÇA — O doutor Monteirinho não é o autor da célebre poesia O grito da escravidão, que veio publicada no Correio Paulistano?

DR. MONTEIRINHO — E que foi transcrita em todos os jornais do Império. Um seu criado. Já cultivei a poesia em tempos que lá vão. Hoje, em vez de tanger a lira clorótica do romantismo ou de dedilhar as cordas, afinadas ao sabor moderno, dos poetas realistas, leio Spencer, Schopenhauer, Bückner, Littré, todos esses grandes vultos, que constituem o apostolado das sociedades modernas.

FELIZARDO (Baixo, a Brito.) — Este rapaz vai fazer um figurão no ministério.

BRITO — Creio. Terá, porém, ele a experiência dos negócios públicos?

FELIZARDO — Não lhe dê cuidado. Fica sob as minhas vistas: eu saberei guiá-lo.

DR. MONTEIRINHO — A grande naturalização é uma das questões atuais mais importantes para o Brasil.

BRITO — Podemos contar, portanto, com o apoio decidido de Vossa Excelência.

FELIZARDO — Se até aqui eu quebrava lanças por este ministério...

BRITO — Lá isso é verdade.

FELIZARDO — Imagine agora... (Olhando para Monteirinho.) O meu Cazuzinha!

DR. MONTEIRINHO — E a questão das terras? Já leram a Questão Irlandesa, de Henry George? É um livro admiravelmente escrito. Um livro do futuro!

BRITO — Senhor doutor Monteirinho, temos a honra de considerar Vossa Excelência no número dos nossos colegas.

DR. MONTEIRINHO — Oh! Senhor conselheiro.

FELIZARDO — Cazuza, faz por seguir o caminho de teu tio. Vou correndo para a casa. Que alegrão vai ter a Maria José. (Sai.)

CENA XV

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OS MESMOS e JAMES, menos FELIZARDO


BRITO — Vamos para o gabinete.

MR. JAMES (Aparecendo na porta.) — Duas horas em ponta.

BRITO (À parte.) — Que maçada. Não me lembrava mais dele. (James entra. Alto.) Meus senhores, apresento-lhes mr. James, que requer um privilégio que parece ser de grande utilidade.

DR. MONTEIRINHO — Vejamos.

MR. JAMES (Desenrolando o papel e mostrando.) — Aqui tem, senhoras.

DR. MONTEIRINHO — O que vem a ser isto?

BRITO — Uma estrada especial para o Corcovado.

MR. JAMES — Maquinisma estar muito simples. Em vez de duas trilhas, ou de três trilhas, como tem sistema adotada, mim coloca uma só trilha larga, de meu invenção.

DR. MONTEIRINHO — É bitola estreita?

MR. JAMES — Oh! estreitíssima! É bitola zero.

DR. MONTEIRINHO — E como se sustém o carro?

MR. JAMES — Perfeitamente bem.

DR. MONTEIRINHO — O sistema parece ser facílimo.

MR. JAMES — E estar muito econômica, senhorr.

MINISTRO DA JUSTIÇA — Mas não vejo máquina, vejo apenas cachorros. O que quer dizer isto?

MR. JAMES — Aí é que está tuda.

BRITO — Não compreendo. Tenha a bondade de explicar-me.

MR. JAMES — Idéia estar aqui completamente nova. Mim quer adota sistema cinófero. Quer dizer que trem sobe puxada por cachorras.

DR. MONTEIRINHO — Não era precisa a explicação. Nós todos sabemos que cinófero vem do grego cynos, que quer dizer cão, e feren, que significa puxar, etc.

MR. JAMES — Muito bem, senhorr.

DR. MONTEIRINHO — Agora o que se quer saber é como é que os cachorros puxam.

MR. JAMES — Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de roda. Ora, cachorra dentro de roda, no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha!

DR. MONTEIRINHO — E de quantos cachorros precisa o senhor para o tráfego dos trens diários do Cosme Velho ao Corcovado?

MR. JAMES — Mim precisa de força de cinqüenta cachorras por trem; mas deve muda cachorra em todas as viagens.

MINISTRO DA JUSTIÇA — Santo Deus! É preciso uma cachorrada enorme.


MR. JAMES — Mas eu aproveita todas as cachorras daqui e faz vir ainda muitas cachorras de Inglaterra.

BRITO — Mas se estes animais forem atacados de hidrofobia não há perigo para os passageiros?

DR. MONTEIRINHO — Eu entendo que não se pode conceder este privilégio, sem se ouvir primeiro a junta de higiene.

MR. JAMES — Oh! senhorr, não tem a menor periga. Se ca­chorra estar danada, estar ainda melhor, porque faz mais esforça e trem tem mais velocidade.

BRITO — Em resumo, qual é a sua pretensão?

MR. JAMES — Mim quer privilégia para introduzir minha sis­tema em Brasil, e estabelecer primeira linha em Corcovada, com todas as favores de lei de Brasil para empresa de caminha de ferro.

BRITO — Mas o cachorro não está ainda classificado como motor na nossa legislação de caminhos de ferro.

DR. MONTEIRINHO — Neste caso deve levar-se a questão ao poder legislativo.

BRITO — Está bem: nós vamos ver e resolveremos como for de justiça.

MR. JAMES — Em quanto tempa decide este negócia?

DR. MONTEIRINHO — Vamos resolver.

MINISTRO DO IMPÉRIO — Tenha paciência, espere.

BRITO — Às suas ordens. (Despede-se, os outros despedem-se de James e saem pela esquerda.)

CENA XVI

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JAMES, só


MR. JAMES — Tem paciência, espera! Sistema de brasileira. Time is money. Eu fala com mulher, e arranja tuda. (Sai.)

CENA XVII

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BEATRIZ e depois FILIPE


BEATRIZ — Vejamos se aqui posso concluir sossegada a leitura deste romance. (Lê.)

FILIPE — Ela?! Oh! Eu atiro-me e confesso tudo. Ora adeus! (Tropeça em uma cadeira.)

BEATRIZ (Revolvendo-se.) — Quem é?

FILIPE — Filipe Flecha, um criado de Vossa Excelência. Sou repórter.

BEATRIZ — Papai está agora em conselho com os outros ministros.

FILIPE — Como é bela! (Beatriz continua a ler.)

BEATRIZ (À parte.) — Este estafermo pretenderá ficar aqui. Que bruta faccia.

FILIPE — Eu atiro-me-lhe aos pés. Coragem! (Encaminha-se para Beatriz.)

BEATRIZ — Quer alguma coisa?

FILIPE (Tirando uma carteira.) — O senhor seu pai onde nasceu, minha senhora?

BEATRIZ — No Pará.

FILIPE (Escrevendo na carteira.) — Onde formou-se?

BEATRIZ — Em Pernambuco.

FILIPE (Escrevendo.) — Que empregos tem exercido? Que condecorações tem?

BEATRIZ — Mas para que o senhor quer saber tudo isto? Oh! qu’il est drole!

FILIPE — É que quando ele morrer a notícia para o jornal já está pronta. (À parte.) Oh! que diabo de asneira!

BEATRIZ — O senhor está doido?

FILIPE (Ajoelhando-se.) — Sim, doido, minha senhora, doido varrido. Quando a vi pela primeira vez foi no Castelões. A senhora comia uma empada... (Beatriz procura tocar a campainha.) O que vai fazer?

BEATRIZ — Chamar alguém para pô-lo daqui para fora.

FILIPE — Pelo amor de Deus, não faça escândalo. (Levantando-se.) Eu vou, eu vou, mas creia que ninguém no mundo a idolatra como eu! (Sai olhando amorosamente para Beatriz.)

BEATRIZ — Pobre louco! Mas este ao menos não me falou em emprego nem em privilégio! (Senta-se e continua a leitura.)


(Cai o pano.)