Candido de Figueiredo 1913/Volume 1/Conversação preliminar/V
V
A pronúncia
A fixação e representação da pronúncia é uma das mais graves difficuldades, com que pódem defrontar diccionaristas portugueses. Por uma razão principalmente: porque, tendo sido avessa ao emprêgo da accentuação gráphica a maioria dos nossos escritores, esta ou aquella palavra começou a pronunciar-se de várias fórmas com igual autoridade e, ás vezes, o mesmo pêso de razões; e os próprios diccionaristas, vendo uma palavra sem accentuação tónica, uns a tomaram por esdrúxula, outros por grave. Daqui a Philologia a dizer-nos que se pronuncie aerólito, monólito, quadrúmano, nigromancía, encyclopedía..., e toda a gente, letrada e illetrada, a pronunciar aerolítho, monolítho, nemolitho, quadrumâno, longimâno, prestimâno, nigromância, encyclopédia... Claro é que, quando o uso se impôs despoticamente, e no falar commum se chegou a perder a consciência do preceito scientífico, o diccionarista tem de registar o facto, tal qual elle é, e indicar a pronúncia usual ou vulgar.
Mas, quando se trata da technologia scientífica, nunca é tarde para se corrigirem pronúncias defeituosas ou contradictórias, porque os homens letrados mais facilmente pódem vêr o bom caminho, do que o vulgo inconsciente, rotineiro e caprichoso.
Em sciências naturaes, mormente em Medicina, há irregularidades orthoépicas, que o diccionarista não deve subscrever. Assim, ao passo que todos, letrados e illetrados, dizem anemía, ouve-se muita vez hyperglycémia e pronúncias análogas; e, tendo nós therapía, que é palavra paroxýtona, há muitos médicos que, por hábito ou pelo exemplo de algum confrade illustre, dizem sem hesitar hydrotherápia, electrotherápia. etc. E, a tal ponto se se enraizaram estas contradicções, que um distinto philólogo, referindo-se ao facto, me lembrou a conveniência de accentuar graphicamente o i de therapía, para se frisar bem a recta pronunciação, embora a palavra, como paroxýtona, dispense a accentuação gráphica na sýllaba tónica; e com effeito algumas vezes pratiquei o conselho no segundo volume da obra, porque o primeiro já estava impresso, quando se me dirigiu o alludido philólogo.[1]
Na moderna technologia scientífica são vulgares aquellas incoherências, abundando as palavras graves ou paroxýtonas, que, rigorosamente, deviam sêr esdrúxulas ou proparoxýtonas: e abundam, mercê principalmente da prosódia francesa, que não conhece esdrúxulos como o português, o castelhano e o italiano. É o que explica a disparatada e vulgar pronúncia de hippodrómo e chrysanthêmo, palavras que, em português, só devem sêr esdrúxulas: hippódromo, chrysântemo; e as variantes prosódicas tacúla e tácula, assécla e ássecla, gôdo e gódo, mêda e méda, labarêda e labaréda, cogumêlo e cogumélo, etc.
O desprêzo do trema tem igualmente produzido interessantes despautérios. Como ai é um ditongo, os diccionaristas viram melaina e mandaram lêr me-lái-na; quando afinal se, quem escreve a palavra lhe pusesse o devido trema, — melaïna, ou a accentuasse, — melaína, os diccionaristas teriam mandado lêr me-la-í-na, e não teriam errado, como erraram.
Na própria modulação das vogaes se reflecte a anarchia, resultante do desprêzo da accentuação gráphica. E, assim, labareda é pronunciada aqui labaréda e alli labarêda; godo, uns o pronunciam gôdo, outros gódo; poia, pronuncia-se na Beira pôia e em Trás-os-Montes póia; o feto, planta, é confundido, na pronúncia, com o feto, embryão, pelos diccionaristas e pelos professores, que nunca ouviram a palavra ao povo e só a conhecem dos livros, — sem accentuação gráphica. Se a tivessem ouvido ao mestre de todos nós, — ao povo, saberiam que feto, planta, é palavra corrente com a pronúncia de fêto. Em todas as províncias se dá àquelle e modulação fechada, e as próprias variantes da palavra confirmam tal modulação: no Minho e nos Açôres, feito; em Trás-os-Montes, fieito, derivação próxima do lat. filictum, e fórma anterior á de fêto. Em parte da Estremadura, é que, talvez por influência dos letrados da capital, algumas vezes se ouvirá féto por fêto. O feito do Minho reflecte-se na toponímia nacional: temos Cancella-dos-Feitos, junto a a Viana; temos Feital, Feiteira, Feitosa, etc.
Nas próprias escolas officiaes, á míngua de accentuação gráphica, ouvi sempre dar a dois conhecidos lagos os nomes de Ladóga e Ónega, quando a sua verdadeira pronúncia é Ládoga e Onéga, tal é a anarchia que tem dominado na orthoépia portuguesa, e que há de embaraçar sempre todos os diccionaristas, a que não falte consciência nem probidade literária.
Não obstante o cuidado, com que me ufano de têr procedido, confesso que mais de uma vez me vi enredado na difficuldade de indicar a pronúncia de palavras que nunca ouvi, e que nunca vi accentuadas, mormente ao tratar-se de vocábulos brasílicos. A pronúncia de tuiuiu, por exemplo, ¿como poderia sêr representada por quem nunca a ouviu? Escrita assim, tanto se poderia lêr tui-ui-u, como tu-iu-iu, como tu-i-u-iu... Se os que della usaram a escrevessem como deviam, não haveria dúvidas.
Sobretudo de algumas palavras da África portuguesa é até impossível determinar-lhes a verdadeira pronúncia. Por um capricho, difficilmente explicável, os nossos viajantes e exploradores africanistas lembraram-se de representar por M e por N o som inarticulado, quási nasal, com que os Landins e outras tríbos africanas acompanham a pronúncia de certos termos: m'pacaça, m'baca, n'guvo, etc. O diccionarista português, que queira indicar a pronúncia de taes palavras, não póde, porque não tem sýllabas nem letras que exprimam o alludido som. O racional seria escrever pacaça, baca, guvo, etc. Não sería representação rigorosa, mas aproximava-se mais da pronúncia local do que as mencionadas fórmas. O M e N, insulados, nada representam. Por isso, bem avisados andam os que escrevem Pungo Andongo, em vêz da fórma bárbara, usada por alguns africanistas modernos, Pungo N'Dongo.
Outra dificuldade occorre ainda, a respeito de pronúncia, ao diccionarista, quando trata de palavras compostas, na technologia scientífica. Primitivamente, a desinência do primeiro elemento dessas palavras é aberta e átona: pàthògenia, hippòdromia, geòdynâmica, neò-céltico, photòsphera, lithòspermo, lithòclase, histògenia, hypèrácido, intèrplanetário, mònòcéphalo, etc. Com o andar do tempo e com a vulgarização do termo scientífico, todas as vogaes secundárias se subordinam á vogal tónica, e temos typographia, morphologia, pathologia, histologia, photographia, geographia, neologismo, intermittente, hyperbólico, monographia, etc., que ninguém pronuncía hypèrbólico, intèrmittente, gèògraphia, phòtògraphia, nèòlogismo, històlogia, pàthòlogia, typògraphia, mònògraphia... ¿Onde acaba o carácter erudito e primitivo da palavra, e onde começa a sua feição vulgar ou popular? Ninguém marcou ainda a linha divisória; e o que hoje é erudito é amanhan popular.
E daqui se infere a difficuldade, se não a desnecessidade, de indicar a pronúncia das vogaes secundárias na maioria das palavras. O ponto capital é a determinação da vogal tónica.
Além do que, a pronúncia do português no Brasil offerece notáveis divergências da nossa pronúncia e, em muitos casos, será diffícil justificar o direito com que pretendamos dar lições prosódicas aos nossos irmãos transatlânticos. Dentro do próprio Brasil, do norte ao sul, há sensíveis divergências na modulação das vogaes átonas. Assim, ao norte, como em Portugal, o o de botar é surdo, pronunciando-se bu-tar; e ao sul é aberto, pronunciando-se bò-tar.
Reduzida, na grande maioria dos casos, a questão da pronúncia á
determinação da vogal tónica, naturalmente nos abeiramos do problema da accentuação gráphica.[2]
Notas
[editar]- ↑ Cf. C. de Figueiredo, Vícios da Linguagem Médica, 1 vol. de 291 pág. Lisboa, 1910.
(Nota desta nova edição). - ↑ A propósito da orthographia portuguesa, deu-se, entre a 1.^a e 2.^a edição do presente Diccionário, um acontecimento memorável, que me cumpre registar neste ponto.
Em Portaria do Govêrno, de 15 de Fevereiro de 1911, foi nomeada uma Commissão, encarregada de fixar as bases da orthographia que deve sêr adoptada nas escolas e nos documentos e publicações officiaes. Essa Commissão era composta de D. Carolina Michaëlis, Gonçalves Viana, Candido de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, e foram-lhe depois aggregados Ribeiro de Vasconcelos, Gonçalves Guimarães, Epifânio Dias, Júlio Moreira, J. J. Nunes e Borges Graínha.
Essa Commissão, em 23 de Agosto do mesmo anno, apresentou o seu relatório, firmado pelos vogaes residentes em Lisbòa, com prévia audiência e assenso dos vogaes ausentes; e dias depois, em Portaria de 1 de Setembro, mandava o Govêrno que a reforma ortográphica, proposta naquelle relatório, fôsse adoptada nas escolas e nos documentos e publicações officiaes.
Eis a súmmula desta reforma, ou a sýnthese dos seus pontos capitaes:
1.º — Não se duplicam consoantes. — Portanto, beleza, aprovar, imediato, abade, Melo, Matos, Mota...
2.º — Simplificam-se e substituem-se os grupos ph, th, rh, ch (com o valor de k). — Portanto, filosofia, teatro, reumatismo, quimera, química, corografia.
3.º — Não se emprega y, nem k, nem w. — Portanto, lira, martírio, calendário, Venceslau... Exceptuam-se só os vocábulos derivados de nomes próprios estrangeiros, como byroniano, kantismo, wiclefitas...
4.º — Dentro de vocábulos não se escreve h. Portanto, inerente, inibir, inábil, compreender, inumano...
5.º — Os ditongos oraes, ae, áo, éo, óe, substituem-se por ai, au, éu, ói. — Portanto, pai, pais, jornais, marau, chapéu, herói, anzóis...
6.º — Evitam-se consoantes inúteis. — Portanto, escritura, escritor, escultura, distrito, salmo, luta...
Exceptuam-se os casos, em que a consoante, embora se não pronuncie, tem a utilidade de significar que é aberta a vogal que a precede, como em exceptuar, rectidão, redacção, direcção, actor, etc., e nos vocábulos das mesmas familias: excepto, recto, redactor, directo, actuar...
7.º — O pronome pessoal enclítico lo liga-se aos verbos por um traço. — Portanto, tu faze-lo e eu não posso fazê-lo; louvá-lo; ouvimo-lo...
8.º — O emprêgo do s e do z é regulado pela etimologia e pelas tradições da língua. — Portanto, português, francês, cortês, freguês, defesa, empresa; e ao mesmo tempo, natureza, beleza, civilizar, realizar, organizar, vez, talvez... Em caso de dúvida, há ainda o recurso dos bons diccionários e vocabulários, organizados depois que é conhecida entre nós a sciência da linguagem, isto é, nos últimos vinte ou trinta annos.
9.º — Escreve-se igreja, idade, igual.
10.º — Acentuam-se graficamente todos os vocábulos esdrúxulos. — Portanto, pálido, túmulo, crisântemo, lêvedo, hipódromo, velódromo, diário, África... Acentuam-se os homógrafos, não homofónicos, pois há séde e sêde, govérno e govêrno, dúvida e duvida, etc. O acento grave pertence ás vogais abertas, não tónicas. Portanto, còrado, prègador, pègada... E também se póde empregar para desfazer ditongo, como em proìbir, miùdamente; e para mostrar que o u se pronuncia depois de g ou q, como em agùentar, freqùente... (quando convenha representar a pronúncia, especialmente no ensino primário).
Esta reforma entrou immediatamente em execução, e, felizmente, ainda fóra dos domínios officiaes, está sendo espontanea, e, mais ou menos rigorosamente, praticada por numerosos publicistas e jornalistas.
Para a sua melhor execução, publicaram-se dois vocabulários, o de Gonçalves Viana e o de Xavier Rodrigues, sob os auspícios da Commissão reformadora.
Como subscritor da reforma e velho propangandista da simplificação orthográphica, recebi conselhos e pedidos, para que a nova edição do presente diccionário se subordinasse inteiramente a essa reforma, na disposição alphabética dos vocábulos e na matéria do texto.
Bem intencionadas eram decerto essas solicitações; e, se a presente edição se fizesse daqui a dez ou vinte annos, é natural que os factos me levassem a acceitá-las e a deferí-las, visto que, segundo creio, dentro de alguns annos, a simplificação orthográphica, sem demasias irritantes e sem radicalismos nocívos, será naturalmente dominante em Portugal e no Brasil, e os diccionários de então deverão subordinar-se aos factos.
Mas os factos de hoje aconselham outra coisa. Como se não trata de um simples vocabulário de propaganda, mas de um diccionário da língua, a cujo autor impende o estricto dever de representar a actualidade gráphica do idioma, imprudência sería tomar como enraizada desde já, e geralmente, a simplificação orthográphica, e fazer de conta que não existiram as graphias de Herculano, Castilho e Latino, e ainda as da maioria dos que, no momento actual, escrevem português, aquém e além do Atlântico.
Um diccionário tem de sêr o registo dos factos da língua; e os factos são que a chamada até agora orthographia usual é por ora aceita, e sê-lo-á, por algum tempo, pela grande maioria dos que escrevem. Bastará ponderar-se que, embora a Academia Brasileira haja preconizado e praticado já uma reforma, que essencialmente não differe da portuguesa, a maioria dos milhões de indivíduos que na América falam a nossa lingua, ainda não praticam a simplificação adoptada pelo Govêrno português e pela Academia Brasileira.
Ora, um diccionário é livro para todos, e tem de subordinar-se aos factos mais geraes da língua; pelo que, tenho de manter a orthographia mais usual, á parte as fórmas erróneas, que procuro corrigir. Mas, como também é um facto a adopção official da orthographia simplificada e a adopção della, por parte de muitos e autorizados publicístas, registo a par as fórmas usuaes e as fórmas simplificadas, sempre que o vocábulo é susceptível de variantes legítimas: philósopho e filósofo, lyra e lira, theatro e teatro, Chímica e Química, inherente e inerente, etc.
Assim, encontra aqui o leitor as fórmas mais usuaes entre os escritores modernos; e o partidário menos perito da simplificação orthographica encontra, a par daquellas fórmas, as fórmas simplificadas, quando as usuaes possam sêr substituidas por fórmas simples.
De maneira que, sob êste ponto de vista, a obra deverá satisfazer os etymologistas, os usualistas, os simplificacionistas e todos os que queiram vêr registadas as graphias que mais lhes aprazam, sob a condição de serem legítimas..
(Nota desta nova edição).