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Cartas Chilenas/VIII

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Em que se trata da venda dos despachos e contratos

Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha

Têm diversas herdades: uma delas

Dão trigo, dão centeio e dão cevada,

As outras têm cascatas e pomares,

Com outras muitas peças, que só servem,

Nos calmosos verões, de algum recreio.

Assim os generais da nossa Chile

Têm diversas fazendas: numas passam

As horas de descanso, as outras geram

Os milhos, os feijões e os úteis frutos

Que podem sustentar as grandes casas.

As quintas, Doroteu, que mais lhes rendem,

Abertas nunca são do torto arado.

Quer chova de contínuo, quer se gretem

As terras, ao rigor do sol intenso,

Sempre geram mais frutos do que as outras,

No ano em que lhes corre, ao próprio, o tempo.

Estas quintas, amigo, não produzem

Em certas estações, produzem sempre,

Que os nossos generais, tomando a foice,

Vão fazer, nas searas, a colheita.

Produzem, que inda é mais, sem que os bons chefes

Se cansem com amanhos, nem, ainda,

Com lançarem, nos sulcos, as sementes.

Agora dirás tu, de assombro cheio:

"Que ditosas campinas! Dessa sorte

Só pintam os Elíseos os poetas."

Amigo Doroteu, és pouco esperto;

As fazendas que pinto não são dessas

Que têm, para as culturas, largos campos

E virgens matarias, cujos troncos

Levantam, sobre as nuvens, grossos ramos.

Não são, não são fazendas onde paste

O lanudo carneiro e a gorda vaca,

A vaca, que salpica as brandas ervas

Com o leite encorpado, que lhe escorre

Das lisas tetas, que no chão lhe arrastam.

Não são, enfim, herdades, onde as louras

Zunidoras abelhas de mil castas,

Nos côncavos das árvores já velhas,

Que bálsamos destilam, escondidas,

Fabriquem rumas de gostosos favos.

Estas quintas são quintas só no nome,

Pois são os dois contratos, que utilizam

Aos chefes, inda mais que ao próprio Estado.

Cada triênio, pois, os nossos chefes

Levantam duas quintas ou berdades,

E, quando o lavrador da terra inculta

Despende o seu dinheiro, no princípio,

Fazendo levantar, de paus robustos,

As casas de vivenda e, junto delas,

Em volta de um terreiro, as vis senzalas,

Os nossos generais, pelo contrário,

Quando estas quintas fazem, logo embolsam

Uma grande porção de louras barras.

A primeira fazenda, que o bom chefe

Ergueu nestas campinas, foi a grande

Herdade, que arrendou ao seu Marquésio.

As línguas depravadas espalharam

Que, para o tal Marquésio entrar de posse,

Largara ao grande chefe, só de luvas,

Uns trinta mil cruzados; bagatela!

Os mesmos maldizentes acrescentam

Que o pançudo Robério fora aquele

Que fez de corretor no tal contrato.

Amigo Doroteu, eu tremo e fujo

De encarregar minha alma. O bom Vergílio

Talvez, talvez que aflito se revolva,

No meio da fogueira devorante,

Por dizer que adorara, ao pio Enéias,

Uma casta rainha, cujos ossos

Estavam no sepulcro, já mirrados,

Havia coisa de trezentos anos.

Eu não te afirmo, pois, que se fizesse

A venda vergonhosa; só te afirmo

Que o mundo assim o julga, e que esta fama

Não deixa de firmar-se em bons indícios.

As leis do nosso reino não consentem

Que os chefes dêem contratos, contra os votos

Dos retos deputados que organizam

A Junta de Fazenda, e o nosso chefe

Mandou arrematar, ao seu Marquésio,

O contrato maior, sem ter um voto

Que favorável fosse aos seus projetos.

As mesmas santas leis jamais concedem

Que possa arrematar-se algum contrato

Ao rico lançador, se houver na praça

Um só competidor de mais abono;

E o nosso general mandou se desse

O ramo ao lançador, que apenas tinha

Uns vinte mil cruzados, em palavra,

Deixando preterido outro sujeito

De muito mais abono, e a quem devia

Um grosso cabedal o régio erário.

Mal acaba Marquésio o seu triênio,

Outro novo triênio lhe arremata,

Sem que um membro da Junta em tal convenha;

E, tendo o tal Marquésio, no contrato,

Perdido grandes somas, lhe dispensa

Outras fianças dar à nova renda.

Amigo Doroteu, o nosso chefe,

Que procura tirar conveniência

Dos pequenos negócios e despachos,

Daria este contrato ao bom Marquésio,

Este grande contrato, sem que houvesse,

De paga equivalente, ajuste expresso?

Amigo Doroteu, se não sou sábio,

Não sou, também, tão néscio, que nem saiba

Das premissas tirar as conseqüências.

Agora dirás tu: "Se o patrimônio

De Marquésio consiste, como afirmas,

Em vinte mil cruzados, em palavra,

Como, de luvas, deu ao chefe os trinta?"

Amigo Doroteu, estou pilhado;

A palavra, que sai da boca fora,

É corno a calhoada, que se atira,

Que já não tem remédio; paciência.

Eu as ervas arranco, e, desde agora,

Contigo falarei com mais cautela.

Mas que vejo? Tu ris-te? Acaso pensas

Que me tens apanhado na verdade?

A mim nunca apanharam os capuchos,

Quando, no raso assento, defendia

Que a natureza não tolera o vácuo,

Que os cheiros são ocultas entidades,

Com outras mil questões da mesma classe.

E tu, meu doce amigo, pertendias

Convencer-me em matéria em que dar posso

A todos, de partido a sota e o basto

Desiste, Doroteu, do louco intento,

Faze uma grande cruz na lisa testa,

Dá figas ao demônio, que te atenta.

Ora ouve a solução desse argumento:

Bem que pingante seja quem remata

Este grande contrato, mercadeja

Com perto de um milhão; por isso todos

Lhe emprestam prontamente os seus dinheiros.

Os chefes, Doroteu, que só procuram

De barras entulhar as fortes burras,

Desfrutam juntamente as mais fazendas,

Que os seus antecessores levantaram.

Nem deixam descansar as férteis terras

Enquanto não as põem em sambambaias.

Aqui agora tens, meus Silverino,

O teu próprio lugar. Tu és honrado,

E prezas, como eu prezo, a sã verdade;

Por isso nos confessas que tu ganhas

A graça deste chefe, porque envias,

Pela mão de Matúsio, seu agente

Em todos os trimestres, as mesadas.

Eu sei, meu Silverino, que quem vive

Na nossa infeliz Chile, não te impugna

Tão notória verdade. Porém deve

Correr estranhos climas esta história,

E, como tu não vás, também, com ela,

É justo que lhe ponha algumas provas.

A sábia lei do reino quer e manda

Que os nossos devedores não se prendam.

Responde agora tu, por que motivo

Concede o grande chefe que tu prendas

A quantos miseráveis te deverem?

Porque, meu Silverino? Porque largas,

Porque mandas presentes, mais dinheiro.

As mesmas leis do reino também vedam

Que possa ser juiz a própria parte.

Responde agora mais, por que princípio

Consente o nosso chefe, que tu sejas

O mesmo que encorrente a quem não paga?

Porque, meu Silverino? Porque largas,

Porque mandas presentes, mais dinheiro.

Os sábios generais reprimir devem

Do atrevido vassalo as insolências;

Tu metes homens livres no teu tronco,

Tu mandas castigá-los, como negros;

Tu zombas da justiça, tu a prendes;

Tu passas portais ordenando

Que com certas pessoas não se entenda.

Porque, por que razão o nosso chefe

Consente que tu faças tanto insulto,

Sendo um touro, que parte ao leve aceno?

Porque, meu Silverino? Porque largas

Porque mandas presentes, mais dinheiro.

A lei do teu contrato não faculta

Que possas aplicar aos teus negócios

Os públicos dinheiros. Tu, com eles,

Pagaste aos teus credores grandes somas!

Ordena a sábia Junta, que dês logo

Da tua comissão estreita conta;

O chefe não assina a portaria,

Não quer que se descubra a ladroeira,

Porque te favorece, ainda à custa

Dos régios interesses, quando finge

Que os zela muito mais que as próprias rendas.

Porque, meu Silverino? Porque largas,

Porque mandas presentes, mais dinheiro.

Apenas apareces... Mas não posso

Só contigo gastar papel e tempo.

Eu já te deixo em paz, roubando o mundo,

E passo a relatar, ao caro amigo,

Os estranhos sucessos que ainda faltam;

Nem todos lhe direi, pois são imensos.

Pretende, Doroteu, o nosso chefe

Mostrar um grande zelo nas cobranças

Do imenso cabedal que todo o povo,

Aos cofres do monarca, está devendo.

Envia bons soldados às comarcas,

E manda-lhe que cobrem, ou que metam,

A quantos não pagarem, nas cadeias.

Não quero, Doroteu, lembrar-me agora

Das leis do nosso augusto; estou cansado

De confrontar os fatos deste chefe

Com as disposições do são direito;

Por isso pintarei, prezado amigo,

Somente a confusão e a grã desordem

Em que, a todos, nos pôs tão nova idéia.

Entraram, nas comarcas, os soldados,

E entraram a gemer os tristes povos.

Uns tiram os brinquinhos das orelhas

Das filhas e mulheres; outros vendem

As escravas, já velhas, que os criaram,

Por menos duas partes do seu preço.

Aquele que não tem cativo, ou jóia,

Satisfaz com papéis, e o soldadinho

Estas dívidas cobra, mais violento

Do que cobra a justiça uma parcela

Que tem executivo aparelhado,

Por sábia ordenação do nosso reino.

Por mais que o devedor exclama e grita

Que os créditos são falsos, ou que foram

Há muitos anos pagos, o ministro

Da severa cobrança a nada atende;

Despeza estes embargos, bem que o triste

Proteste de os provar incontinenti.

Não se recebem só, prezado amigo,

Os créditos alheios, para embolso

Das dividas fiscais. O soldadinho

Descobre um ramo, aqui, de bom comercio:

Aquele que não quer propor demandas

Promete-lhe a metade, ou mais, ainda,

Das somas que lhe entrega, e ele as cobra

Fingindo que as tomou em pagamento

Das dividas do rei. Ainda passa

A mais esta desordem: faz penhoras

E manda arrematar, ao pé da igreja,

As casas, os cativos, mais as roças.

Agora, Fanfarrão, agora falo

Contigo, e só contigo. Por que causa

Ordenas que se faça uma cobrança

Tão rápida e tão forte contra aqueles

Que ao erário só devem tênues somas?

Não tens contratadores, que ao rei devem,

De mil cruzados centos e mais centos?

Uma só quinta parte, que estes dessem,

Não matava, do erário, o grande empenho?

O pobre, porque é pobre, pague tudo,

E o rico, porque é rico, vai pagando

Sem soldados à porta, com sossego!

Não era menos torpe, e mais prudente

Que os devedores todos se igualassem?

Que, sem haver respeito ao pobre ou rico,

Metessem, no erário, um tanto certo,

À proporção das somas que devessem?

Indigno, indigno chefe! Tu não buscas

O público interesse. Tu só queres

Mostrar ao sábio augusto um falso zelo,

Poupando, ao mesmo tempo, os devedores,

Os grossos devedores, que repartem

Contigo os cabedais, que são do reino.

Talvez, meu Doroteu, talvez que entendas

Que o nosso Fanfarrão estima e preza

Os rendeiros que devem, por sistema:

Só para ver se os ricos desta terra,

A força de favores animados,

Se esforçam a lançar nas régias rendas.

Amigo Doroteu, o nosso chefe,

Se faz alguma coisa, é só movido

Da loucura, ou do sórdido interesse.

Eu vou, prezado amigo, eu vou mostrar-te

Esta santa verdade, com exemplos.

Morre um contratador e se nomeia,

Para tratar dos bens, um seu parente,

Que Ribério se chama. Não te posso

Explicar o fervor com que Ribério

Demanda os devedores, vence e cobra

Os cabedais dispersos desta herança.

Estava quase extinto o que devia

A fazenda do rei; então o chefe

Lhe ordena satisfaça todo o resto,

No peremptório termo que lhe assina.

Exclama o bom Ribério que não pode,

Pois todo o cabedal, que tem cobrado,

Ou está, nas demandas, consumido,

Ou tem entrado, já, no régio erário.

E, para bem mostrar esta verdade,

Suplica ao grande chefe, que lhe escolha

Um reto magistrado, que lhe tome,

Da sua comissão, estreita conta.

Pois isto, Doroteu, não vale nada:

Sem contas lhe tomarem, manda o chefe

Que gema na cadeia, até que pague.

Já viste uma insolência semelhante?

Aos grandes devedores, não se assinam

Os termos peremptórios para a paga,

Nem vão para as cadeias, bem que comam

A fazenda do rei e só Ribério,

Sendo um procurador, que nada deve,

Vai viver na prisão, por tempos largos?

Amigo Doroteu, o nosso chefe

Patrocina aos velhacos, que lhe mandam,

Para que mais lhe mandem. Prende e vexa

Aos justos, que entesouram suas barras,

Para ver se, oprimidos, se resolvem

A seguir os caminhos dos que largam.

Remata-se um contrato a um sujeito,

Que o pode bem pagar, por mais que perca

Pertende um fiador deste contrato

Ir tratar, no Peru, do seu comercio;

Vai licença pedir ao grande chefe,

E o chefe lha concede. Escuta agora;

Ouvirás uma ação, a mais indigna

De quantas, por marotos, se fizeram:

Apenas o tal homem sai da terra,

Se despede uma esquadra de soldados

Que, mal com ele topa, lhe dá busca.

As cargas se revolvem, nem lhe escapam

As grosseiras cangalhas, que se quebram.

Não acham contrabandos, porem, sempre,

Lhe tomam os dinheiros, que ele leva.

E o grande chefe ordena que se metam

No régio erário todos, inda aqueles,

Que são de vários donos. Dize, amigo,

Já viste uma injustiça assim tão clara?

Aos grossos devedores não se tomam

Os seus próprios dinheiros, bem que tenham

Comido os cabedais dos seus contratos

E, ao simples fiador de um rematante,

Que nada, ainda, deve, e que tem muito,

Vão-se, à força, tomar os seus dinheiros,

E os dinheiros, que é mais, de estranhas partes!

Agora, Doroteu, não tens que digas,

Hás de, enfim, confessar, que o nosso chefe

Somente não oprime a quem lhe larga.

Ora, ouve as circunstancias que inda acrescem

E que inda afeiam mais o torpe caso:

Espalham as más línguas, que Matúsio

Pedira ao tal sujeito lhe cornprasse,

Uns finos guardanapos e toalhas;

Que o fiador mesquinho lh’os trouxera

E, vendo que Matúsio se esquecia,

Lhe chegou a pedir, sem peio, a paga.

Que o chefe, ressentido desta injúria,

Lhe mandou dar a busca por vingança,

E que até ao presente inda não consta

Que o preço da encomenda se pagasse.

Que mais pode fazer o seu lacaio?

Isto não é mais feio, que despir-se

A preciosa capa ao grande Jove

E mandar-se tirar ao sábio filho,

O famoso Esculápio, as barbas de ouro?

Amigo Doroteu, se acaso vires,

Na corte, algum fidalgo pobre e roto,

Dize-lhe que procure este governo;

Que, a não acreditar que há outra vida,

Com fazer quatro mimos aos rendeiros,

Há de à pátria voltar, casquilho e gordo.