Cartas Chilenas/X

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Em que se contam as desordens maiores que Fanfarrão fez no seu governo.

Quis, amigo, compor sentidos versos

A uma longa ausência e, para encher-me

De ternas expressões, de imagens tristes,

A banca fui sentar-me, com projeto

De ler, primeiramente, algumas obras

No meu já roto, destroncado Ovídio.

Abri-o nas saudosas alegrias

E, quando me embebia na leitura

Dos casos lastimosos, que ele pinta,

Na passagem que fez ao Ponto Euxínio

Encontro aqueles versos que descrevem

As ondas decumanas; de repente

Me sobe ao pensamento que estas eram

Do nosso Fanfarrão imagem viva.

Os mares, Doroteu, jamais descansam;

Agitam sem cessar as verdes águas,

E, depois que levantam ondas nove,

Com menos fortidão, despedem outra,

Que corre mais ligeira e que se quebra

Nos musgosos rochedos com mais força.

Assim o nosso chefe não descansa

De fazer, Doroteu, no seu governo,

Asneiras sobre asneiras e, entre as muitas,

Que menos violentas nos parecem,

Pratica outras que excedem muito e muito

As raias dos humanos desconcertos.

Perdoa, minha Nise, que eu desista

Do intento começado. Tu mil vezes

Nos meus olhos já leste os meus afetos,

Não careces de os ler nos meus escritos.

Perdoa, pois, que eu gaste as breves horas

A contar as asneiras desumanas

Do nosso Fanfarrão ao caro amigo.

E tu, meu Doroteu, antes que leias

O que vou a contar-te, jurar deves

Pelos olhos da tua amada esposa,

Por seu louro cabelo, e pelo dia

Em que viste, na sua alegre boca,

O primeiro sorriso, que não hás-de

Duvidar do que leres, bem que sejam

Desordens que pareçam impossíveis.

A Junta, Doroteu, a quem pertence

Evitar contrabandos, prende, envia

A sabia Relação do Continente

A trinta delinqüentes, para serem

Castigados conforme os seus delitos.

Entende o nosso chefe que esta Junta

Não devia mandar aos malfeitores

Sem sua autoridade e, dela, toma

O mais estranho, bárbaro despique.

Manda embargar aos presos na cadeia

Do nosso Santiago, e manda ao pobre

Do condutor meirinho que os sustente,

Assistindo, também, aos que enfermarem,

Com médicos, remédios e galinhas.

Acaba-se o dinheiro que lhe deram

Para fazer os gastos do caminho;

Recorre, neste aperto, ao bruto chefe,

Expõe-lhe que não tem com que alimente

Ao menos a si próprio; pede e roga

Que o deixe recolher à pátria terra,

Para nela exercer seu pobre oficio.

Tão terna rogativa não merece

Do chefe a compaixão; antes lhe ordena

Que assista, como dantes, aos culpados

De todo o necessário, na enxovia;

Que, a faltar-lhe o dinheiro para os gastos,

Ou que o peça, ou que o furte. Caro amigo,

Da boca de uma Fúria sairia

Mais dura decisão? Por que motivo

Deve um pobre meirinho dar sustento

A mais de trinta presos? São seus filhos?

E, ainda a serem filhos, um pai justo,

Que fazenda não tem, vive obrigado

A sustentar infames malfeitores,

Por meio de culpáveis latrocínios?

Suponho, Doroteu, suponho ainda

Que a Junta fez excesso na remessa

Dos presos, sem licença. Neste caso

Merece o condutor algum castigo?

Ele fez outra coisa que não fosse

Cumprir o que mandaram seus maiores?

Podia repugnar-lhes, sem delito?

Amigo Doroteu, o nosso chefe

É qual mulher ciosa, que não pode

Vingar no vário amante os duros zelos,

E vai desafogar as suas iras,

Bebendo o sangue de inocentes filhos.

Depois de se passarem alguns anos,

Depois que o bom meirinho já não tinha

Vestido que vendesse, nem pessoa

Que um chavo lhe fiasse, o bruto chefe

Passa a fazer-um novo despotismo:

Ordena que os culpados sejam soltos,

E, dizem, lhes mandava vinte oitavas,

Para os gastos fazerem da fugida.

Até aqui pagou o seu desgosto

O pobre condutor; agora o paga

A triste, aflita pátria, pois lhe aumenta,

Dos torpes malfeitores, a quadrilha.

É esta, Doroteu, a sua gente;

Trafica em coisa santa, no comércio

Da compra e mais da venda de seixinhos,

Negócio avantajado e mais seguro

Que o meter entre os fardos das baetas,

Os pesados galões e as drogas finas.

Preza o bravo leão aos leões bravos,

A fraca pomba preza as pombas fracas,

E o homem, apesar do raciocínio

Que a verdade lhe mostra, estima aos homens

Que têm iguais paixões e os mesmos vícios.

Avisam ao bom chefe que um ministro

Queria que os soldados lhe mostrassem

As ordens, com que entravam a fazerem

Prisões no seu distrito. Investe o bruto

Qual touro levantado, a quem acenam,

C’os vermelhos droguetes, os capinhas;

Escreve-lhe uma carta, em que lhe ordena

Lhe dê logo as razoes, em que se funda.

Inda pede as razões, e já lhe estranha

O néscio proceder. Aqui não para

Tão rápida desordem: manda um corpo

De ousados militares, que conduzam,

Ao magistrado, a carta, e lhes ordena

Que fiquem nesta vila sustentados

A custa, Doroteu, do aflito povo.

Não se concede ao pobre que sustente,

Em casa, o seu soldado; manda o chefe

Que a cada um se dê, em cada um dia.

Para sustento, meia oitava de ouro,

Fora milho e capim para o cavalo;

E não entrando aqui o régio soldo.

Que santo proceder! Um Deus irado,

Se houvessem sete justos, perdoava

Os imensos delitos de Sodoma,

E o nosso grande chefe, pelo crime,

Pelo sonhado crime de um só homem,

Castiga, como réu de majestade,

Formado de inocentes, todo um povo.

Faz penhora Macedo em certas barras

Que, a um seu devedor, devia Mévio;

Recorre ao magistrado Silverino,

Pedindo que mandasse que o dinheiro

A juízo viesse, pois queria

Sobre ele disputar a preferência,

Na forma que concede a lei do reino.

Cita-se ao triste Mévio e deposita

As barras em juízo, prontamente.

Conhece Silverino que Macedo

Para a vitória tem melhor direito,

Não quer seguir a causa na presença

De um reto magistrado, que profere,

Na forma que as leis mandam, as sentenças.

Recorre ao general, e o bruto chefe

Decide desta sorte o longo pleito:

Habita nesta terra um homem rico,

Que tem de Albino o nome, e, dizem, trata

A Mévio, devedor, por seu sobrinho.

Manda pois, Doroteu, o grande chefe

Que Albino se recolha na cadeia

E more com os negros na enxovia,

Enquanto não pagar a Silverino

Outra tanta quantia, quanta Mévio

Depositou, doloso, por que houvesse

Entre os dois acredores um litígio.

Eis aqui, Doroteu, o que é ciência!

As nossas leis não querem que o pai solva

O calote que fez o próprio filho

E quer um general que Albino pague

Da sórdida masmorra, novamente,

A soma que pagou o bom sobrinho!

Aonde existe o dolo? A lei não manda

Que todo o que temer que alguém lhe peça

Segundo pagamento, se segure

Metendo no depósito o que deve?

Pois se isto nos faculta o são direito,

Que delito comete aquele triste

Que a dívida em juízo deposita,

Quando o sábio juiz assim o manda,

Porque o mesmo credor assim o pede?

E se Mévio fez dolo, por que causa

Há-de Albino pagar a culpa dele?

Porque lhe aconselhou que não pagasse

Outra tanta quantia a Silverino?

Aconselhar conforme as leis do reino

É culpa que mereça um tal castigo?

E pode ser castigo regulado

Pagar o conselheiro aquela soma

Que o mesmo aconselhado não devia?

Não é isto furtar? Não é violência?

Ah! pobre, ah! pobre povo, a quem governa

Um bruto general, que ao céu não teme,

Nem tem o menor pejo de lhe verem

Tão indignas ações os outros homens!

Há neste regimento um moço Adônis,

Amores de uma escrava, cuja dona

Depois de cativar a muitos peitos, . .

Ao nosso herói atou, também, ao carro

Dos seus cruéis triunfos. Cego nume!

Qual é, qual é dos homens que não honra,

Com puros sacrifícios, teus altares?

Tu vences os pequenos, mais os grandes,

Tu vences os estultos, mais os sábios,

Tu, vences, que inda é mais, as mesmas feras

E, bem que cinja o grosso peito d'aço,

Não pode resistir às tuas setas

O duro coração do próprio Marte.

Intenta este soldado que o ministro

Lhe remate umas casas e consegue

Um despacho do chefe, em que decreta

Que nelas ninguém lance: coisa estranha

Que, entendo, nunca viu nenhuma idade!

O reto magistrado, que respeita,

Mais que ao chefe, as leis do seu monarca,

Ordena que o porteiro, incontinenti,

As pertendidas casas meta a lanço.

Honrado cidadão o preço cobre;

O porteiro passeia pela rua,

Repete, em alta voz, o lanço novo

E prossegue a falar, assim dizendo:

"Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três,

Dou-lhe outra mais pequena, afronta faço,

Se ninguém mais me oferece, arremato".

Ao lanço do Brandúsio ninguém chega,

Informado o juiz, ordena e manda

Que o prédio se remate; então se chega

O porteiro risonho ao licitante,

E lhe diz "que lhe faça bom proveito"

Ao mesmo tempo que lhe entrega o ramo.

Parte logo o soldado e conta ao chefe

O sucesso da praça. O bruto monstro,

Julgando profanado o seu respeito,

Manda lançar no pobre licitante

Um pesado grilhão e manda pô-lo,

Ajoujado com um despido negro,

A trabalhar nas obras da cadeia.

O preso injuriado desfalece

E o chefe desumano desce à rua

Para que possa, de mais perto, vê-lo.

Sucede a um desmaio outro desmaio;

O negro companheiro, então, lhe acode,

Nos braços compassivos o sustenta;

Porem o velho chefe, que deseja

O vê-lo, ali, morrer, por um soldado

Manda ao negro dizer que ao preso deixe

E cuide em prosseguir no seu trabalho.

Os mesmos desumanos, que rodeiam

Tão bruto general, aqueles mesmos

Que, alegres, executam seus mandados,

Apenas escutaram tal preceito,

Um pouco emudeceram e tiveram

Os rostos tristes, muito tempo, baixos.

Os outros, Doroteu, deram suspiros

E, bem que forcejaram, não puderam

Fazer que os olhos não se enchessem d'água.

Eu creio, Doroteu, que tu já leste

Que um César dos romanos pertendera

Vestir, ao seu cavalo, a nobre toga

Dos velhos senadores. Esta história

Pode servir de fábula, que mostre

Que muitos homens, mais que as feras brutos,

Na verdade conseguem grandes honras!

Mas ah! prezado amigo, que ditosa

Não fora a nossa Chile se, antes, visse

Adornado um cavalo com insígnias

De general supremo, do que ver-se

Obrigada a dobrar os seus joelhos

Na presença de um chefe, a quem os deuses

Somente deram a figura de homem!

Então, prezado amigo, o néscio povo

Com fitas lhe enfeitara as negras clinas,

Ornara a estrebaria com tapetes,

Com formosas pinturas, ricos panos,

Bordados reposteiros e cortinas;

Um dos grandes da terra lhe levara

Licor, para beber, em baldes d'ouro,

Outro lhe dera o milho em ricas salvas;

Mas sempre, Doroteu, aqueles néscios

Que ao bruto respeitassem, poderiam

Servi-lo acautelados e de sorte

Que dar-lhes não pudesse um leve coice.

Eis aqui, Doroteu, o que nos nega

Uma heróica virtude. Um louco chefe

O poder exercita do monarca

E os súditos não devem nem fugir-lhe

Nem tirar-lhe da mão a injusta espada.

Mas, caro Doroteu, um chefe destes

Só vem para castigo de pecados.

Os deuses não carecem de mandarem

Flagelos esquisitos; quasi sempre

Nos punem com as coisas ordinárias.

O mundo inda não viu senão um corpo

Em branco sal mudado, e só no Egito

Fez novas penas de Moisés a vara.

Perguntarás agora que torpezas

Comete a nossa Chile, que mereça

Tão estranho flagelo? Não há homem

Que viva isento de delitos graves,

E, aonde se amontoam os viventes

Em cidades ou vilas, ai crescem

Os crimes e as desordens, aos milhares.

Talvez prezado amigo, que nós, hoje,

Sintamos os castigos dos insultos

Que nossos pais fizeram; estes campos

Estão cobertos de insepultos ossos

De inumeráveis homens que mataram.

Aqui ou europeus se divertiam

Em andarem à caça dos gentios

Como à caça das feras, pelos matos.

Havia tal que dava, aos seus cachorros,

Por diário sustento, humana carne,

Querendo desculpar tão grave culpa

Com dizer que os gentios, bem que tinham

A nossa semelhança, enquanto aos corpos,

Não eram como nós, enquanto às almas.

Que muito, pois, que Deus levante o braco

E puna os descendentes de uns tiranos

Que, sem razão alguma e por capricho,

Espalharam na terra tanto sangue.