Cartas Chilenas/XI
- Em que se contam as brejeirices de Fanfarrão.
No meio desta terra há uma ponte,
Em cujos dois extremos se levantam
De dois grossos rendeiros as moradas;
E, apenas, Doroteu, o sol declina
A descansar de Tétis no regaço,
Neste agradável sitio vão sentar-se
Os principais marotos e, com eles,
A brejeira família de palácio.
Aqui, meu bom amigo, aqui se passam
As horas em conversa deleitosa:
Um conta que o ministro, à meia noite,
Entrara no quintal de certa dama;
Diz outro que se expôs uma criança
A porta de Florício, e já lhe assina
O pai e mais a mãe; aquele aumenta
A bulha que Dirceu com Lauro teve
Por ciúmes cruéis', da sua amásia;
Este chama a Simplicio caloteiro
E mofa, ao mesmo tempo, de Frondélio,
Que o seu dinheiro guarda. Enfim, amigo,
Aqui, aqui de tudo se murmura.
Só se livra da língua venenosa
O que contrata em vendas de despachos
E quem se alegra ao ver que a sua moça
Ajunta, pela prenda, um par de oitavas:
Que os membros do congresso são prudentes
E não querem que alguns dos companheiros
Tomem esta conversa em ar de chasco.
Amigo Doroteu, ah! neste sitio
Eu não me dilatara um breve instante
Em dia de trovões, bem que estivesse
Plantado todo de loureiros machos!
Por este sítio, pois, passei há pouco
Cuidando que, por ser mui cedo ainda,
Não toparia a corria dos marotos.
Mas, apenas a vi, fiquei tremendo
Qual fraco passageiro, quando avista,
Em deserto lugar, pintadas onças.
Contudo, Doroteu, criei esforço
E fui atravessando pelo meio,
Rezando sempre o credo e, por cautela,
Fazendo muitas cruzes sobre o peito.
Apenas me salvei daquele risco,
Um suspiro soltei, que encheu os ares,
E, voltando o semblante para o sitio,
Em que os tais\mariolas se assentavam,
Meneando a cabeça um par de vezes
E soltando um sorriso, em ar de mofa,
Dentro do meu discurso, assim lhes falo:
"Vocês, meus mariolas, meus tratantes,
Estão contando histórias das pessoas
De quem não são afetos, por que as levem,
Aos ouvidos do chefe, os seus lacaios;
Pois eu também já vou contar verdades,
Em que possam falar os homens sérios
Inda daqui a mais de um cento de anos.
Recolhi-me à choupana e, de repente,
Sem tirar a gravata do pescoço,
Entrei a pôr em limpo esta cartinha,
Que já, pelo caminho, vim compondo.
Entendo, Doroteu, que as nossas almas
Não são todas iguais; que o grande Jove
Fez umas de matéria muito pura,
Fez outras de matéria mais grosseira,
Por não perder as borras que ficaram.
Entendo, ainda mais, que o dispenseiro,
Quando lhe vão pedir algumas almas,
Vai dando aquelas que primeiro encontra.
Por isto, às vezes, nascem os mochilas
Com brios de fidalgos, outras vezes
Os nobres com espíritos humildes,
Só dignos de animarem vis Lacaios.
O nosso Fanfarrão, prezado amigo,
Vos dá mui boa prova: não se nega
Que tenha ilustre sangue, mas não dizem,
Com seu ilustre sangue, as suas obras.
Apenas, Doroteu, a noite chega,
Ninguém andar já pode, sem cautela,
Nos sujos corredores de palácio,
Uns batem com os peitos noutros peitos;
Outros quebram as testas noutras testas;
Qual leva um encontrão, que o vira em roda;
E qual, por defender a cara, fura,
Com os dedos que estende, incautos olhos.
Aqui se quebra a porta e ninguém fala;
Ali range a couceira e soa a chave;
Este anda de mansinho, aquele corre;
Um grita que o pisaram, outro inquire
"Quem é? " a um vulto, que lhe não responde.
Não temas, Doroteu, que não é nada,
Não são ladrões que ofendam, são donzelas
Que buscam aos devotos, que costumam
Fazer, de quando em quando, a sua esmola.
Chegam-se, enfim, as horas, em que o sono
Estende, na cidade, as negras asas,
Em cima dos viventes espremendo
Viçosas dormideiras. Tudo fica
Em profundo silêncio, só a casa,
A casa aonde habita o grande chefe.
Parece, Doroteu, que vem abaixo.
Fingindo a moça que levanta a saia
E voando na ponta dos dedinhos,
Prega no machacaz, de quem mais gosta,
A lasciva embigada, abrindo os braços;
Então o machacaz, mexendo a bunda,
Pondo uma mão na testa, outra na ilharga,
Ou dando alguns estalos com os dedos,
Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz "eu pago, eu pago" e, de repente,
Sobre a torpe michela atira o salto.
Ó dança venturosa! Tu entravas
Nas humildes choupanas, onde as negras,
Aonde as vis mulatas, apertando
Por baixo do bandulho a larga cinta,
Te honravam, c'os marotos e brejeiros,
Batendo sobre o chão o pé descalço.
Agora já consegues ter entrada
Nas casas mais honestas e palácios!
Ah! tu, famoso chefe, dás exemplo.
Tu já, tu já batucas, escondido
Debaixo dos-teus tetos, com a moca
Que furtou, ao senhor o teu Ribério!
Tu também já batucas sobre a sala
Da formosa comadre, quando o pede
A borracha função do santo entrudo.
Ah! que isto, sendo pouco, é muito!
Que os exemplos dos chefes logo correm
E corre muito mais, quando fomentam
Aqueles vícios, a que os gênios puxam.
O tempo, Doroteu, voando foge
E nunca os de palácio imaginaram
Que tão veloz fugia, como agora.
Acaba-se a função, e chega o dia;
vem abrir as janelas um criado,
E o chefe lhe pergunta que algazarra
Fizeram os mais servos toda a noite,
Que o não deixou dormir um breve instante.
O criado, que sabe que o bom chefe
Só quer que lhe confessem a verdade,
O sucesso lhe conta, desta sorte:
“Fizemos esta noite um tal batuque!
Na ceia todos nós nos alegrávamos,
Entrou nele a mulher do teu lacaio;
Um só, senhor, não houve que, lascivo,
Com ela não brincasse; todos eles,
De bêbedos que estavam, não puderam
O intento conseguir; só eu, mais forte...”
Apenas isto diz o vil criado,
O chefe as costas vira e lhe responde,
Soltando um grande riso: “fora, fracos!”
Já disse, Doroteu, que as mocetonas
Só entram em palácio quando estende
A noite, sobre a terra, a negra capa;
Que a formosa virtude da cautela
Até parece bem, naquele mesmo
A quem a profissão lhe não exige
Que viva recatado, como vivem
As moças, que inda querem ser donzelas.
Agora, Doroteu, julgar já podes
Que saem de palácio muito cedo.
Assim é, Doroteu; as donzelinhas,
Pela porta travessa, vão saindo,
Mal tocam as garridas à primeira.
Mas a bela Rosinha fica e dorme,
Nos braços de Matúsio, a madrugada;
Só sai de dia claro, e o grande chefe
Lhe atira uma pedrinha da janela,
Só para que lhe dê um ar de graça!
Que grande estimação, Rosica bela!
Aqui se mostra bem, que as outras mocas
Não trazem, como trazes, lucro à casa.
Não há, prezado amigo, quem não queira
Mostrar-se liberal com sua dama.
Para dar-lhe o vestido, mais a capa,
O manto, a saia, a meia, a fita, o pente.
Tira o pobre de si e, destro, furta
O peralta rapaz ao pai jarreta.
Eu mesmo, Doroteu, que fui dos santos
Que em Salamanca andaram, umas vezes
Doenças afetava, outras fingia
Necessitar de livros, ou de um traste,
Para mandar de mimo a certo lente.
Maldita sejas, tu harpia Olaia,
Que, enquanto não abria a minha bolsa,
Não mostravas, também, alegre, os dentes!
Esta paixão, amigo, que nos vence,
Nos próprios animais também se observa:
Esgravatam os galos sobre a terra
E, mal topam o grão ou a migalha,
Contentes cacarejam, porque a moça
Se vá utilizar do seu trabalho.
O nosso ilustre chefe, que se julga
De mui diversa massa do que somos,
Neste ponto, também, também conhece
Que está sujeito à miséria d’homem.
Nas obras, doce amigo, da cadeia,
Trabalham jornaleiros por salário.
Aqueles que carregam cal e pedra,
Só ganham, por semana, meia oitava;
Aqueles que trabalham de canteiro,
Ao menos ganham, cada dia. um quarto.
Tem, pois, certa mocinha, quatro negros
Que apenas são serventes, mas o chefe
Ordena que, na féria, se lhes pague
A quarto os seus jornais, e creio, amigo,
Que ainda não consente se descontem
Os muitos dias que nas obras faltam.
As casas onde mora esta madama
Ainda não estavam acabadas;
Agora já de longe a cal alveja,
Quem entra dentro delas já recreia
Os olhos nas pinturas das paredes
E teto apainelado, a quem, um dia,
Supria, Doroteu, a grossa esteira.
Não quis o nosso herói chamasse a moça,
Para mestre das obras, um pedreiro,
Entregou o conserto ao grão-tenente,
Que o fez baratinho, c’o massame
Que pertencia às obras da cadeia.
Entende Fanfarrão que não devia
Deixar ao desamparo a sua dama;
Que a lei da Igreja pede que amparemos
As que, por nossa culpa, se perderam,
E a lei da fidalguia, que professa
O nosso chefe, manda que ele ampare
As mesmas, que na fama já têm nota,
Contanto que isto seja à custa alheia.
Chama, pois, o bom chefe a um peralta,
Que era cabo de esquadra, e lhe comete
A glória de casar com uma dama
Que, se não fez descer dos céus à terra
Ao Supremo Tonante, fez, contudo,
Humanizar um chefe, que descende
Da mais distinta, mais soberba raça.
Que súbita alegria banha o rosto
Deste inocente cabo! Nos seus olhos
As lágrimas rebentam, e os seus beiços
Formar não podem uma só palavra.
A dita, Doroteu, é muito grande.
Que fortuna não é casar um pobre
Com a rica viúva de um fidalgo?
Chamar ao fidalguinho, que ele deixa,
Ou enteado ou filho? Aparentar-se
Com todos os magnates desta terra
Em grau tão conhecido e tão chegado?
Esta grande ventura, doce amigo,
Para todos não é. O negro demo
A quadra para prêmio dos serviços
Dos chefes principais dos seus bandalhos.
Mas ah! prezado amigo, que o bom chefe
Já manda aparelhar as magras bestas,
Que têm de conduzir-lhe o pobre fato
Que trouxe lá da corte, e se o casquilho
Não chega a receber a cara esposa
Primeiro que ele, no governo, morra,
Bem pode ser. amigo, se arrependa
E que, depois de ter cingido a banda
E empunhado o bastão, lhe pregue o mono.
Faltaram às promessas outros homens,
Que, de honrados, nos deram muitas provas.
Como faltar não pode ao seu ajuste
Um fraco coração, uma alma indigna
Que, por tão baixo preço, a honra vende?
Cautela e mais cautela; sim, o chefe
Não saberá mandar armadas tropas,
Nem saberá reger as cultas gentes,
Mas, para o não lograrem, sabe, astuto,
Dar todas as cadimas providências.
Escreve ao velho bispo e lhe suplica
Que em todos os três banhos o dispense;
Não expende razão que justa seja,
Porem o velho bispo tem bom gênio
E em todos os proclamas o dispensa;
Que ele tem grandes letras e bem sabe
Que os cânones da igreja não pensaram
Da espécie singular de quando um chefe
Quer, à pressa, casar a sua amásia.
Ah! se ele estas desordens não fizera,
Não daria motivo a ser cantado
Por sábia, oculta musa, em um poema!
Agora inquirirás, prezado amigo,
Se é este sábio bispo aquele mesmo,
Que o bruto Fanfarrão, em certo dia,
Meteu na sua sege, ao lado esquerdo?
É este, sim. senhor. o mesmo bispo,
A quem o nosso chefe desalmado,
Enquanto governou a nossa Chile,
Já dentro de palácio e já na rua,
Tratou como quem trata um vil podengo.
De novo inquirirás: "Então um chefe,
Que trata, dessa sorte, ao seu prelado,
Atreve-se a pedir-lhe que lhe faça
Dispensa em uma lei, a benefício
Da sua torpe amásia?" Eu, doce amigo,
Ainda duvidara, se pedira
Me desse absolvição dos meus pecados,
Ao ver-me para dar, a Deus, minha alma.
O mesmo, Doroteu, também fizeras;
Mas tu, prezado amigo, não conheces
O sistema que tem tão vil canalha.
Uma mui grande parte destes chefes
Assenta em procurar seu interesse
Por todos os caminhos, e acredita
Que o brio e pundonor, que nós prezamos,
São umas vãs fantasmas, que só devem
Honrar de simples voz aqueles homens,
Que vêm de uma distinta e velha raca.
Para estes a nobreza está nos termos
Do sórdido monturo em que se deita
Quanta imundície têm as velhas casas.
Ditoso de quem vive, neste mundo,
No estado de ver rir os outros homens
Das suas vis ações, sem que lhe suba
Um vermelho sinal de pejo à cara!
Mas ah! meu doce amigo, quanto, quanto
Se enganam estes monstros, que a nobreza
É um vestido branco, aonde, logo,
Aos olhos aparece a leve mancha!
Já chega, Doroteu, o alegre dia.
O dia venturoso do noivado.
Entra, no santo templo, a linda esposa,
Coberta toda de umas novas graças.
Os seus louros cabelos não flutuam,
Levados pelo vento, a toda parte;
Em tranças se dividem e se prendem
No pente, a quem esconde um branco laço;
Nos cabelos da frente resplandecem
Das pedras de mais custo, os fogos vários;
A sua testa iguala à pura neve
E são da cor da rosa as suas faces;
São pérolas mimosas os seus dentes,
As gengivas rubis e os grossos beiços
Estão cobertos dos cheirosos cravos.
Talvez, talvez não fosse tão formosa
A mesma, que obrigou ao forte Aquiles
A que, terno, vestisse a mole saia.
Neste sagrado templo não se adora
A imagem do Himeneu; aqui os noivos,
Para prova da fé que, eterna, dura,
Não recebem na mão acesa tocha.
Ministro do senhor é quem os prende,
Cobrindo as castas mãos, com que se enlaçam.
Co,a branca ponta da pendente estola.
Aqui lascivas graças, nus amores
Não cercam os consortes, nem meneiam,
Em torno dos altares e das piras,
Os vistosos festões de lindas flores.
Aqui, aqui só entram as virtudes,
A cândida modéstia, a inocência,
A santa honestidade e a vergonha.
São estas e não outras as que correm
A receber, à porta do edifício,
Os sinceros amantes; sim, são estas,
São estas e não outras, as que espalham,
Debaixo dos seus pés, cheirosas folhas
E as que fazem queimar, sobre os braseiros,
O incenso devoto e os mais aromas.
Recebem estes gênios aos dois noivos
E, ao ministro do altar, os apresentam.
Ah! formosa Marília, agora, agora
Se aumentam tuas graças, pois te aviva
A cor da linda face um novo pejo!
Com que custo não dás a mão nevada
Ao teu amado Adônis, que a recebe
Como quem lucra nela o seu tesouro!
Já não veste Jelônio a grossa farda
Com divisas de lã e, sobre a testa,
Não põe a barretina, que enfeita
Com armas e botões de grosso estanho.
Já não cinge as correias amarelas,
Nem carrega, na cinta, o peso enorme
Dos férreos copos da comprida espada.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
Já brilham, nos canhões, os alamares
Das finas lentejoulas, e, nos ombros,
Já brilham as dragonas, enfeitadas
C'os grandes cachos das lustrosas flores.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
A veste de cetim já resplandece
Orlada co’o galão da fina prata,
E, por cima da veste, já se enrola,
Na cintura, a vermelha e rica banda.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
Como está belo! Como está casquilho!
Concerta do babado a fina renda,
Olha uma e outra vez os alamares
Endireita a cucula, estende a perna;
Não consente um só fio sobre a farda;
Levanta o pescocinho, morde os beiços,
E o seu cabelo, com a mão, afaga.
Jelônio se namora de si mesmo,
Ainda, ainda mais que o terno Adônis,
Quando viu o seu rosto dentro d’água.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
Então, os militares que o rodeiam,
Amado Doroteu, risonhos, mofam.
Um pisa com o pé nos pés vizinhos;
Puxa outro pelas pontas das fardetas
Aos amigos chegados; este acena
C'os olhos e cabeça aos companheiros
Que lhe ficam defronte; aquele tapa,
Fingindo que tem tosse, a alegre boca;
Qual foge da presença... mas que vejo!
Tu, Doroteu, carregas sobre os olhos
As grossas sobrancelhas? Tu enrugas
A testa levantada? Tu inflamas
As faces já desfeitas e suspiras?
Acaso tu presumes que eu murmuro
Do fato de casar o nosso chefe
A sua terna amásia? Não, amigo,
Eu conheço, também, aonde chegam
Os deveres de quem nasceu fidalgo:
Obrou o nosso chefe o que eu faria.
Murmuro, Doroteu, mas é do dote;
Do dote, sim, do dote. Dize, a banda,
O castão de coquilho, as mais insígnias,
São dotes que se dêem a um soldado,
Porque serviu ao chefe, em receber-lhe,
Sem vergonha do mundo, a sua amiga?
Não achas insolência e desaforo
Ver os porta-bandeiras, os cadetes,
E os furriéis já velhos, preteridos
Só para-premiar-se com o posto,
Que por lei lhes pertence, um torpe crime?
São estes, Doroteu, os grandes cabos,
De quem a triste pátria fiar deve
A sua salvação? São estes? Dize...
Agora já te calas. Pois não tornes
A mostrar-me, outra vez, o gesto irado,
Que um dia hei-de enfadar-me e, se me enfadas,
Ainda que me pecas de joelhos,
Não hás-de receber da minha pena,
Em verso ou prosa, mais uma só carta.