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Castelo Perigoso/XVI

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Porque dizem alguns porque se não sabem confessar e dizem verdade, muitos aí há. Quem se bem quer confessar deve deligententemente buscar toda sua consciência e esguardar se caiu em alguns dos pecados susoditos. E isto não correndo, mas por bom espaço, e como e quantas vezes e em quantas maneiras fez queixoso o seu Deus, e quanto tempo esteve no pecado; ou se lhe esqueceu algum, por se confessar tarde; ou se se deixou de confessar com pouca devoção, ou por vergonha de escarnecerem dele; ou se se confessou mais por costume que por amor de Deus. Ca todas estas coisas são pecado.

E dês que homem em isto bem pensa, deve-se trigosamente confessar. Esta é a segunda condição que deve ser na confissão, que é ser trigosa.

El-rei Davi se levantava à meia-noite a se confessar, segundo ele diz no Salteiro. E a grande tardança é perigosa, primeiro pela dúvida da morte, que não venha subitamente; desde aí pelos bens que homem perdeu pecando, que pode cobrar na confissão. E quanto Deus mais longamente atende o pecador, tanto o punirá mais gravemente, se se não emenda. Desde aí, aquele que muito espera para se confessar, esquece muitos pecados de que não pode ser confessado. E isto é grande perigo, que ainda que os homens esqueeçam, não os esquece Deus.

Quando alguma pessoa, seja homem ou mulher entra em religião, ele afiúza Jesus Cristo, que é verdadeiro esposo das virgens e das santas almas; e quando faz profissão, esposa e são feitas as bodas de Jesus Cristo e dele e lhe promete os três votos da religião: pobreza, castidade, obediência. E sabei que quem está na religião, além do ano sem fazer protestação, é teúdo por professo. E nós vemos claramente que uma donzela que é afiuzada ou casada, por melhor parecer a seu amigo, corrige-se o melhor que pode e olha-se e touca-se bem, e esguarda que não haja em ela coisa que possa desprazer a seu amigo.

E pois, muito é grande confusão e sinal de pouca devoção a uma pessoa de religião, que é esposa e amiga do rei dos reis, se mais não trabalha por prazer a este glorioso esposo, que nos (...) chama tão docemente, e diz: "Vem, minha esposa e amiga, vem e serás coroada", que não faz uma casada a seu senhor mortal, ou uma namorada a um seu namorado.

Jesus Cristo, o rei da glória, que é o mais formoso de todos, não quer haver amiga que não seja formosa e alva por inocência de vida e limpa sem sujidade de pecado e sem vilã tacha, e nobremente vestida de roupa de virtudes. E por isto, a devota pessoa que quer prazer a tal esposo e havê-lo por amigo, deve-se cada dia olhar no espelho da sua consciência; e como vir alguma nódoa de pecado, deve correr à fonte da confissão e lavar-se e não atender as páscoas, que a consciência que tanto anda por lavar não há poder de ser limpa. E isto é sinal de pouca devoção.

Pela qual coisa eu rogo a todas devotas criaturas e conjuro, na virtude do amor que o muito doce Jesus Cristo nos amostrou, quando lhe prouve morrer por nós em na cruz, de morte tão feia e assim vergonhosa, que elas acostumem a se confessar amiúde, ao menos uma vez na semana, e mais, se mister for. E comunguem ao mais pouco, uma vez no mês. E quem vive em obediência comungue segundo sua ordem lhe oferece. E isto deve homem a fazer não por vã glória, nem por louvor, mas (parar mentes?) por amor daquele que nos amou primeiro que nós a ele, e por lhe prazer. E se assim acostumam e dão a Deus todo seu coração e lhe trazem lealdade, Deus lhes dá a sentir que todo terreal amor é sujo e amargoso contra o amor de Deus, e lhes dá consolações espirituais como ele sabe que é seu proveito. E de quem tão proveitoso conselho não quiser crer, eu me quito. E este livro lhe será apresentado no dia do juízo. Esta é a segunda condição da confissão que deve ser trigosa.

A terceira condição é que homem se deve confessar abertamente, sem cobertura, assim que o confessor veja e conheça claramente o coração e tenção daquele que se confessa, porque o ferido deve de descobrir sua chaga ao cirurgião, se quer ser bem guarido, segundo diz Hipócrates. E assim deve fazer o pecador, se quer haver misericórdia.

A quarta condição é que homem se deve a confessar inteiramente, isto é, dizer seus pecados todos e as circunstâncias, sem se defender nem acusar outrem, e sem alguma coisa encobrir. Assim dizia o publicano no templo, que não ousava levantar os olhos contra o céu, mas batia seus peitos por sua culpa, e dizia: "Senhor Deus, havei mercê de mim, pecador". Assim se deve acusar cada um pecador, e dizer: "Eu pequei assim e assim por minha maldade e por meu mau coração", se quer haver mercê.

Desde aí, a confissão deve ser inteira, toda a um confessor e não a muitos, que quem diz uma parte a um e outra a outro, pouco lhe vale. Deve homem dizer as circunstâncias que agravam o pecado, ca o pecado é não somente o da luxúria, mas de detração e de mal fazer, ou dizer, ou de ódio maior em uma pessoa que em outra. Desde aí, se homem pecou ciente ou por ignorância, assim o deve de dizer, e se se combateu com a tentação, ou se ele mesmo a buscou.

Desde aí, deve contar os membros por que mais pecou. Primeiramente o coração, e dizer todos os pensamentos que encaminham homem a pecados, ou carnais ou espirituais; assim como contra a fé, ou de vã glória, ou de inveja ou de má vontade, ou de muitas outras maneiras, como já é dito; ou de pensamentos de blasfêmias de Deus ou de seus santos ou dos sacramentos, que o diabo traz ao coração por torvar a pessoa e a meter em (desasperação?)[1].

Por isto é cumpridouro que homem aí haja desprazer e temperança e paciência, que assim se busca mérito, mais que quando se queixa desordenadamente ao pecado. Por isto deve dizer a Deus a pessoa que devotamente se sofre: "Senhor, que conheceis os corações e sabeis minha vontade, havei piedade de mim e não me deixeis cair em maus consentimentos, nem sofrais que eu seja tentado além de meu poder". E não é necessário dizer ao confessor tais pensamentos, assim como vêm, mas somente que homem os possa entender, ca os pensamentos onde não há senão tormento e desprazer e aflição, às vezes purgam a alma mais que a agravam.

Mas os pensamentos em que há deleite, deve homem a dizer quanto lhe deu de consentimento e o tempo que em eles tardou, e se cobiçou homem prazer à mulher ou a mulher ao homem por ser desejado, ca isto é pecado, segundo diz Santo Agostinho. Assim deve homem pensar se corrigiu já sua cabeça ricamente por prazer ou por vã glória, e deve-o confessar.

Desde aí, dos cinco sentidos, com que homem muito amiúde peca: pelos olhos em olhar sandiamente e com soberba e por desprezo e com jeitos luxuriosos, assim como dizem os filósofos, a luxúria da mulher é conhecida pelos olhos que são mensageiros do coração. E quem não há os olhos castos em seu olhar, o coração não é casto, segundo diz Santo Agostinho.

E pelas orelhas, assim como em ouvir de boa mente as vãs palavras do mundo e os maldizentes e louvaminheiros e mentidores e enganadores, e outras palavras sujas e sandias. São Bernardo diz: "Eu não sei quem peca mais, ou aquele que diz mal de outrem, ou aquele que de boa vontade o escuta; que, se não fossem os que escutam, não haveria aí maldizentes". Por isto deve homem mostrar que lhe não praz.

Assim pela boca em falar nesciamente e muitas vaidades com soberba e desonestidade, e jurar e perjurar e mentir ciente ou em difamar outrem com seu abaixamento.

Desde aí, com tocamentos vilãos e desonestos, em si mesmo ou em outrem. Assim se deve homem a confessar do afincado cuidado que teve em se bem vestir ou em calçar, e em todas outras maneiras, quando vai à igreja ouvir a palavra de Deus; e se homem filhou desordenado prazer em cheirar os doces cheiros terrais. Esta é a quarta condição que há de haver na confissão.

A quinta é que seja humildosa, que homem se deve confessar em temor e humildade e esparger todo seu coração ante Deus e seu confessor, assim como um pote cheio de água, de que não fica nem cor, nem odor, nem sabor; assim como faria de vinho ou de mel ou de leite, se ele retém a cor que tinha; os maus jeitos, e se retém o odor do pecado, que o deixa quanto no feito, mas de boa mente ouve falar em ele. Se retém o sabor que pensa nos pecados que fez e se deleita, e que verdadeiramente [não] se repreende, deve se guardar destas três coisas suso ditas. Mas o religioso ou religiosa, que amiúde vai fora de seu claustro, a más penas se guarda.

Nós achamos nas Escrituras que Isaac houve dois filhos: Jacó e Esaú. Esaú era caçador e ia amiúde a caçar bestas selvagens. E assim perdeu a bênção de seu padre que devia a haver como primogênito. E Jacó, que era segundo, a ganhou porque ficava em casa. Por Esaú são entendidos religiosos e religiosas que desamam seu claustro e não hão aí prazer por míngua do amor de Deus, e por isto vão de boa vontade caçar ao mundo as vãs consolações e as deleitações seculares. E assim acontece que eles perdem a bênção de seu padre, que é a graça de Deus, e o paraíso que é nossa herdade. Por Jacó se entendem os bons que amam seu claustro e seu mosteiro, e estão em ele de boa mente, pelo amor de Deus, em cujo serviço são metidos. E ele os cria com divinas consolações, assim que os terreais sempre lhe são amargosos e de desprazer. E tais gentes guardam a bênção e herdade de seu padre que é a graça de Deus e o paraíso.

A sexta condição, que deve ser na confissão, é que homem se deve confessar amiúde por ganhar mais graça e mais limpeza de consciência, pelos pecados veniais em que homem cai muitas vezes. E quem amiúde cai, amiúde se deve de alevantar, assim como homem sustém a nau que se não alague. Desde aí, por incorrer de si o diabo, assim como se alonga a ave de onde lhe desfazem o ninho. E ainda por aprender bem a se confessar que a usança faz os mestres. Desde aí, temendo que homem não está bem confessado e repreendido, assim deve homem de recobrar e cumprir o que fez menos do que cumpria; desde aí, por obedecer e haver mais mérito. Por estas três coisas se confessava homem amiúde, segundo é contado na Vida dos Padres.

Já haveis ouvido como se homem deve confessar. Ora deveis de saber que cinco coisas são que embargam vir à confissão. A primeira é vergonha, mas vergonha da danação perdurável a deve de vencer. A segunda, medo mau de fazer penitência. A terceira, desordenado amor, quando homem ama tanto seu deleite que não pode ou não quer deixar o pecado e pensa que embalde se confessaria, e assim se adormece em ele como porco em esterco. A quarta coisa, esperança de longa vida, de que muitas gentes são enganadas, ca Deus promete perdão àquele que se repreende, mas não lho promete de manhã, segundo diz são Gregório. A quinta coisa é desesperança; mas homem deve pensar que Deus há maior vontade de perdoar àqueles que de bom coração se repreendem, que eles de demandar perdão.

Notas

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  1. "Desesperação" ou "exasperação"?