Ciganinha/I
Chamavam-lhe Ciganinha, e a principio tambem Magriça.
Exasperava-a, porém, este apellido. Quando o ouvia “ó, magriça!”voltava-se rapida, furiosa, com os olhos a chammejar, e torcia a cara toda nuns esgares muito feios de bruxa velha, botando para fóra uma lingua de palmo, fina, comprida, serpentina. Soltava até grossas palavradas.
Com a outra alcunha não se importava. Erguia os hombros num gesto de expressivo pouco caso e concordava resmungando:
— Se sou mesma!
Por lei fatidica dos contrates, havia recebido na pia baptismal o nome, que nunca devêra confirmar, de Angelica – d’ahi Gêgéca ou Gégéca, como costumava dizer a mãe, abrindo os ee de modo especial e descançado, e accrescentando sempre com languido suspiro de pezar:
— Um diabrete, esta ménina.
Desde bem pequena, mostrara com effeito, indole muito independente, genio violento, amigo de fazer as suas quatro vontades, audaz, altivo e arrebatado, de par com muitos cahidos e engraçadas momices e caricias com quem lhe cahia no gôto, ou permanentemente ou em horas de caprichoso bom humor.
Positivamente endiabrada, só gostava de andar á volta com rapazes e molequinhos, garotos de sua idade mais ou menos, furando matagaes, correndo pelas varzeas, espojando-se na relva, deixando-se rolar pelo barranco de areia até quasi dentro do rio, largo, magestoso, esfrangalhada sempre, com as saias em molambos, o corpete a lhe cahir pelos hombrinhos magros, descarnados, as pernas á vista, núas, nervosas, esgalgadas, pés no chão, um tanto grandes e maltratados, mas não espalmados e chatos.
Até perto dos 14 anos, ninguem como ella, a Ciganinha, para trepar nas arvores e apanhar frutas ou excogitar e descobrir ninhos de passarinho na ramagem mais folhuda e entrançada e pôr-lhes o gadanho em cima.
Agil como um sagui, leve que nem miudo e gracioso caxinguelê, eram de ver-se o geito e a firmeza com que sabia agarrar-se ao tronco liso e escorregadio das jaboticabeiras do matto e descascadas goiabeiras, indo sem vacillar pelos galhos abertos até aos ramos mais finos, que sacudia com vigor, para fazer tombar alguma goiaba teimosa e longe da mão avida, impaciente.
E lá ia tambem pelas larangeiras acima, uma perna aqui, outra acolá, escarrapachadas, sem se lhe dar com os espinhos agudos, minazes, alcançando n’um apice as franças mais flexiveis e perigosas.
— Não quero que olhem para cima, bradava lá do alto, imperiosa, aos companheiros agrupados em baixo, á espera dos pomos que ia colhendo e arremessando.
Obedeciam-lhe de prompto, porquanto o rosto de algum mais curioso e petulante ficava logo sujeito a moralisador e temido castigo e bombardeio.Para prova, o filho do Manéca Fructuoso, que se vira em risco de perder o olho esquerdo, quasi vasado por uma laranja verde, atirada com pulso vigoroso e afeito a acertar no alvo.
Muitos dias ficára como exemplo aquella face inchada e rubra, á maneira de uma bóla vermelha; e a todos explicava o ludibriado dono:
— Artes do demonio da Ciganinha; mas há de pagar-me, tão certo como dous e dous são quatro.
Quédas a valer levára ella das continuas e atrevidas ascensões, mas com tão pouco não se occupava. Passado o atordoamento do baque em sólo duro, e compondo-se depressa, pulava de contente ao verificar que ainda d’essa vez não ficára com membro algum partido ou deslocado, tendo em nenhuma conta arranhaduras fundas e dolorosas contusões.
No meio de todos esses desmando e reparaveis extravagancias, singular recato, instinctivo e selvatico pudor. Assim, jamais acceitara tomar, de dia, banho no rio, em sucia e duvidosa promiscuidade com os camaradas de travessuras. Banhava-se diariamente, sim, mas sósinha, á hora em que a tarde ia se fechando noute, e sempre protegida por frondoso salgueiro, que ainda mais ensombrava a bacia natural, onde immergia o gracil e delgado corpinho.
Uma feita, já bem crescidinha, voltara á casa coberta de sangue vivo, uma grande brecha aberta na cabeça.
— Não é nada, mamãi, affirmava toda exultante, com feição de legitimo triumpho: uma batalha de pedras, bonita como tudo, com os filhos da Narcisa Mofina. Del-lhes que foi um regalo. O Juca anda sempre me chamando para as bibócas, a fazer-se de cebo commigo, pois bem, levou até ao céo da bocca. Eu... contra quatro, hein? Não arredei pé enquanto não os debandei. Só agora é que senti que me tinham tirado mel da cachola... Canalhas!
E ainda se esgrimia exaltada, a pôr em fuga os numerosos adversarios.
Não cabia em si de ufana.
— Quatro, mamãi, quatro contra a filhinha de seu coração!
— Mas, menina, observava com tom plangente e arrastado a pobre da mãe, isto lá são modos de raparigas? Onde vai vance parar? Que désgostos me esperam mais n’esta vida de sópplicios? Não basta o que tenho soffrido?
E desatava a chorar.
Muito dada a lagrimas essa D. Cula, diminutivo de Clotilde, usual em todo o interior do Brasil; muito choramingadora, a boa da mulher, Tambem, havia sido tão desventuroso na sua existencia penosa, solitaria, predestinada aos abandonos!
Sempre feia, desenxabida, esgaivotada, pallida como cêra, n’um emaciamento desconsolado de penuria constante e aniquiladora, era filha de casal pauperrimo, que a deixára orphã bem cêdo, sem um cobre [1] no fundo de velha bruáca.
Vivera ao Deus dará, muito quietinha, retrahida e medrosa a curtir negra miseria de contorcer estomago e intestinos, e aguentando-se como podia com umas costurazinhas e bordados de crivo, que lhe pagavam uma ninharia.
Viéra, depois, um cigano de arribação, muito prestimoso e bulhento, atirado a conquistador, e, sem mais nem menos, se mettera com ella, procurando sobretudo explorar-lhe o trabalho e obrigando-a a fazer doce de fruta de lobo, vendido aos tropeiros como marmelada, e mais sequilhos e bolos de arroz e milho.
Quasi nada rendia o tal negocio, porque, além de tudo, o malandrino, guloso e glutão por natureza, comia o melhor do que pretendia expor á venda. Então, com grande dó e escandalo da vizinhança, começou a infeliz a ser, dia e noite, quasi sem intervallo, malhada pelo patife do amigo. Quanta bordoada! Que sovas de moerem os ossos!
De repente, após muita barganha aladroada, falcatruas vergonhosas e innumeras dividas contrahidas a torto e a direito, desappareceu o desbriado cigano- e para todo sempre. Foi-se embora, sem dizer adeus a ninguem, internando-se pelo sertão fundo. Corria depois que acabara ás mãos dos indios Affonsos, o que de certo bem merecera.
Signal da sua passagem, além do volumoso abdomen da Cula, só um cofresinho de bom peso e fechado com cadeado de segredo cabalistico, que a abandonada conservava com mysterioso cuidado e sério terror de feitiçarias.
Em todo o caso, ficara a coitada gravida e só tinha de seu a casinha de esburacadas paredes de adôbo e cobertura de sapê na barranca do rio, casinha em que de pancada lhe haviam morrido pae e mãe, e testemunha indifferente das colossaes e repetidas tundas. Ella ignorava até se lhe pertencia ou não.
Do terreirosinho de costume muito varrido e limpo, se via de fronte o Paranahyba, todo espraiado, solemne, raramente ludroso, quasi sempre puro e de aguas claras, a reflectir, como que em espelho animado e corredio, tudo quanto se passava lá em cima, no Céo de Nosso Senhor Jesus Christo e da Santissima Virgem Maria. No alto e embaixo, que combinações de cores, ao esplendido arrebol da manhã e da tarde nas multiplas mutações e phantasmagorias das nuvens leves e doudejantes ou pesadas e immoveis, illuminadas pelo descambar do sol!...
Ao brilho sereno do luar, então, que encantos, que quadros formosos, diversos, cambiantes, ora meigos e risonhos, ora melancolicos, quasi sombrios, de deixarem a gente cheia de scismas tristes e presagas!...
Da calmorreada e soffredora Cula se apiedaram, porém, os vizinhos; e cada qual a ajudou como poude – uma galinha idosa, meia duzia de ovos, ou uma cadeira furada, um catre de couro já inservivel, chicaras e pote esborcinados, miudezas e trastes de refugo, em extremo usados, quasi de todo imprestaveis.
Todos eram tão pobres!
A pouco e pouco, nascida a Gêgéca, foi se tornando D. Cula estimada, credora até de certa consideração, sempre muito séria e digna nos seus extremos apuros e necessidades, activa ao seu modo e fazendo quanto podia pela vida.
Entretinha relações de amisade com familias boas do logar, que lhe pagavam as visitas; e, quando o vigario do Curralinho vinha até o povoado, parava sempre lá para apreciar o seu cafésinho gostoso e quente, embora em chicara de folha de Flandres, que esfria depressa a bebida, queimando osbeiços de quem a toma, cafésinho acompanhado de umas brôas e brevidades muito bem feitas, pois ninguem as preparava melhor do que ella, após as severas e tão accentuadas lições do perfido e brutal amante.
E assim se iam os dias escoando.
Segredavam as más linguas, e á frente de todos mexericava com sorrisos ironico e ares de desprezo o José Bispo, dono da venda mais bem sortida e afreguesada, que, alta noute, não havendo luar, costumavam rondar a porta da sisuda D. Cula certos vultos suspeitos, talvez o vigario ou gente mais limpa e apatacada das tropas e boiadas, por alli de pouso, antes de transporem o grande rio.
Quem está, porém, livre de calumnias e denigrações?
Depois da sua primeira e sabida desgraça, tinha a mulher tanta compostura e tão resignada dignidade que só mesmo a bisbilhotice de aldeia podia esmerilhar duvidosas hypotheses, levando a mal as taes visitas, ainda que a deshoras. E a miseria e a fome...bem más conselheiras!
Demais, já dissemos, não era nada appetecivel, descorada e pamonha como tudo, nos modos e no fallar.
Com sotaque molle e cantado fazia justiça a si mesma, em invencivel desalento e abandono:
— Eu sou tão enjóada! Quem há de me quérer?
- ↑ Quarenta réis [N. do A.]