Ciganinha/II

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Devia, com effeito, a peste do cigano ter sido das arabias, ou sel-o ainda, caso houvesse escapado das unhas dos temidos indios Affonsos.

Fizera da natureza apathica, dorminhoca, congochosa da Cula surdir, para pasmo constante de todos, lepida, escorreita, andarilha, em continua mexonada, a Gêgéca, a Ciganinha, cousa totalmente diversa, opposta, antinomica, um azougue, uma agua viva, legitimo producto do tinhoso.

Não podia estar quieta e parada dous minutos, com uns modos azoinados, bruscos, espontaneos, selvagens.

Tinha, positivamente, bicho carpinteiro em certa parte do corpo, que a gente de lá designava com a maior sem cerimonia.

E bem falante, muito explicada, respondona como a maior das malcreadas, sempre com a palavra do Cambronne na boca, prompta para desferil-a, como se estivesse no quadrado da guarda imperial, em Waterloo, replicando á intimação dos inglezes.

Uma occasião em que a mãi, toda lacrimosa a reprehendia, accusada, como fôra, de ter furtado um pombinho nuélo á Maria Rabolona, lavadeira no porto, umas casas abaixo:

— Não fui eu, defendia-se, nunca minto... se o tivesse surrupiado, confessava... Já lhe disse... não fui eu.

E como D. Cula insistisse, amaldiçoando as escapadas e traquinices já bastante graves, atirou-lhe ás bochechas:

— Ora, mamãi, de que serviu também mêcé ter sido sempre boa, socegada, mettida comsigo, uma santinha? O malvado do cigano não lhe fez mal, não a surrou como boi corneta e não a deixou de vez com a pança cheia?

— Menina! Bradou D. Cula aterrada levando as mãos á cabeça, quem te ensinou tudo isso? Olha, diabinho, Deus te há de castigar! Santo Christo, que será de nós?

— Deixe-se d’isso, replicou philosophicamente a Ciganinha correndo já para a porta, Deus tem muito em que cuidar. Quando se lembrar de mim, já a raiva terá passado... A Maria Rebolona, que não se faça de engraçada commigo... Sujo-lhe, num dia de chuva, toda a roupa estendida no gramado... Hei de avisal-a uma vez por todas...

Esse furto do pombo nuélo... Para que insistir-mos? ... Por acaso, D. Cula não teve sempre bons caldos, quando esteve tão doente? Quasi esticára a canella, coitadinha, sem cirurgião ou curandeiro, que a visse por caridade, nem remedio nenhum, nenhum para tomar!- E melhorsinha, não comera pratazios de arroz bem cozido, em que se poderiam vêr ossadas bastante suspeitas, até de gordas galinhas?

Chegou a beber seus calicesinhos de vino do Porto, comprado a 2$ o martello na venda do José Bispo, o que serviu, semanas e semanas, de thema a muita historia gaiata, longos commentarios e malevolas conjecturas.

Pois, senhores, tudo falso e inventado, quanto ao vinho, pelo menos. Querem saber a verdade? Por Deus Nosso Senhor Jesus Christo, que está nos vendo e nos ouvindo.

Disséra um tropeiro para D. Cula:

Vancê, dona, do que precisa é tomar todos os dias uns dous bons dedos de vinho do Porto, da venda... Sem isto, não sára... não pode arribar tão cedo.

— Mãi de misericordia! Retrucava a agorentada martyr, que é da cobreira para comprar a tal mézinha?...

— Há de se arranjar, declarou Gêgéca, que se impressionara com o conselho.

E como costumava a miudo sopesar curiosa o cofresinho esquecido pelo trastalhão do cigano, n’esse dia o levou ás escondidas para fóra de casa e o arrombou no cerrado, sem a menor hesitação.

— Vamos ver, disséra para si, o que nos deixou o sem vergonha do meu pae.

Achou umas bugigangas, galhosinhos de arruda seccos, umas pedras redondinhas pretas e verdes, tres figas de madeira poida e dous collares compridos de ouro ou prata dourada, além de muitos papeis com signaes esdruxulos, triangulos, meias luas, crescentes e estrellas rabudas.

— Diabo o leve, o bruxo, ou o guarde por lá! Exclamou persignando-se, um tanto assustada. E, recolhendo só o que para ella tinha valor, jogou o mais dentro do rio, em logar bem fundo.

Tratou logo de reduzir a dinheiro um dos collares, guardando o outro para si ou para maior de espadas, e foi propôr a venda a um boiadeiro pachola, que se gabarolava de apatacado.

— Onde campeou vancê isto? Perguntou o homem olhando-a de esguelha, todo desconfoado. Passou a unha?

— Não é da sua conta, siô besta, foi a resposta. Quanto quer dar pelo lavrado?

Propoz quantia visivelmente ridicula. Acordado, porém, o instincto do negocio no sangue cigano, conseguiu a menina o dobro do primeiro preço.

E assim póde a chlorotica mãi, a quem tudo logo contou, saborear os seus dedosinhos do apregoado e luxuoso vinho do Porto.

— Mas, filha dos meus pecados, observou assombrada, quem nos diz que no cofre não havia mandinga? As desgraças vão chover em cima de nós duas...

— Qual! Foi muito bom; acabou-se agora a caipóra... Mecê verá!...

— Santa Rita nos proteja!... Se aquelle homem por cá aparecer, dá cabo de nós, não há que duvidar... a poder de tanta bordoada.

Fez a Ciganinha significativo gesto de mófa e incredulidade:

— O diabo não é tão feio como se pinta... Elle que venha!... Há de ouvir boas... da minha boca!

E partiu em disparada, chilrando como um pintassilgo.

Atirava Gêgéca bodoque como poucos e lá ia com uma sacóla de bolas de barro pelas mattas, de onde voltava sempre com alguma caça, papagaios, tucanos, grallias e um ou outro mutum, que vendia por dous cruzados, ou até vinte e cinco cobres a algum dono de tropa.

Preferia mil vezes essas correrias com meninotes de sua idade, já então taludinha, a ficar estatelada á porta da casinha de sapê, resguardando das moscas e vigiando o taboleiro de sequilhos e brevidades, á espera dos possíveis freguezes. E, genuina herdeira do espirito guloso e petiscador do pai, não vendia um bolinho, que logo não roesse um bocadinho, dous ou tres na parte inferior, menos visivel.

Admitia sem pieguice muita graçola, até pesada, e ria-se com gosto, mostrando os dentes bonitos, alvos, iguaes – cousa rara no interior – quando á sua vista contavam historias e anedotas bem crespas; não lhe tocassem, porém, no corpo, lá isto não. Tinha a mão leve como tudo e dava bofetadas de estalar aos que lhe beliscassem os quadris e as pernas, ainda bem finas. Musculosa e ligeira, passava então taes rasteiras, que os gaiatos e pelintrotes iam ao chão com grandes batecús e lá ficavam chiando de dôr, no meio das estrepidosas vaias do rapazio.

Não falassem mal da mãe, não se atrevessem a agarral-a de certo modo, ou não lhe fizessem propostas equivocas, era incontinenti uma surriada de nomes feios e cabelludos, capaz de pôr tonto qualquer soldado tarimbeiro. E por cima, muitas caretas e ademanes violentos de desafio e ameaça, com energicos bamboleios de capoeiragem.

Sempre mal ajorcada, esfarrapada, as faces meio sujas, as unhas caireladas, cabellos desgrenhados, rebeldes, todos em caracóes e calamistrados, verdadeira gaforina, fincava n’elles uma flôr vermelha, algum mimo de Venus, e passeava serena o orgulho da sua raça, quando não dava cabriolas caprinas ou fazia mil maluquices, na expansão dos inesperados impetos.

Voz geral no povoado:

— Esta rapariguinha leva a bréca de repente; acaba muito mal. Pobre da D. Cula, que filha lhe pôz nos quartos o maldito do cigano! Cruzes! Devéras, caipora assim é tambem demais... Talvez, o cujo fosse o diabo em pessoa... Te arrengo, abernuncio! Só mesmo o demonio é que podia ter a coragem de esbordor todos os dias a desgraçada amiga...era a ração... Milagre, que a deixasse com braços e pernas... não lhe tivesse aberto a cova com tanta porretada!...

Pelo que se vê, as surras de outr’ora haviam entrado nas tradições populares. Tambem não poucas mulheres de má vida, as fadistas, nas brigas com os tropeiros e scenas de ciumes, avisavam provocadoras e afoutadas:

— Olhe, sió moço, não sou nenhuma D. Cula. Para cá vem de carrinho. Tire o seu cavallo da chuva, ouviu? Commigo nada de farófa... Depois queixe-se ao bispo!

Tudo isso, tão longe, tão longe d’aqui, na villa de Santa Rita de Cassia, a margem direita do bello rio Paranahyba, na minha pobre e formosa terra natal _ Estado de Goyaz!...

Transportada a larga corrente n’uma balsa de duas compridas canôas encambu lhadas por pranchões atravessados e um soalho por cima, chega-se a uma praiasinha de areia fina - o porto de onde se empina elevado barranco. Alguns bonitos salgueiros por perto. E n’aquella balsa viajam, de um lado para outro do rio, homens e cavallos de sella ou bestas de carga, então desarreadas e só com as cangalhas de páos de forquilha assentes em chumaço grosso de macéga secca.

A boiada, muito chifruda, com os cornos compridos e bem abertos, ás vezes elegantes lyras nas graciosas curvas, boiada goyana, forte, grande, passa a nado; e os boiadeiros e camaradas a vão tangendo, na diagonal da travessia, com uma grita immensa, que rebôa pela matta.

Refuga a principio o gado, apertado pela gente a cavallo que montada em pello o toca e estimula, o pica e com elle se atira dentro d’agua, afinal se decide agoniado e lá vai em denso cordão com cabeça bem levantada, olhos aterrados e bocca offegante a deitar ruidosa respiração. A extremidade oposta do pesado ruminante não mergulha tambem, surde e como que seagita inquieta, presentindo perigos. É que, segundo voz geral, se aquella parte do corpo, em que a Ciganinha tinha bicho carpinteiro, se molha, está irremissivelmente perdido o pobre animal. Singular destino! Caso digno do estudo dos entendidos e sabios!

De vem em quando, lá se destaca um boi e busca voltar á margem segura e protectora, ou então roda de uma vez, embrulhado pela violenta corrente do Paranahyba.

Levanta-se então brado de interesseira angustia e gananciado desespero, não de piedade pela triste victima: _ Lá vai um; lá vão dous! – E os camaradas azafamados apressam, com gestos e clamores a mais e mais, a passagem, até que o guia tome pé na borda de lá.

Em cima logo do porto de Santa Rita de Cassia, uma esplanadasinha de grama verde e folhuda, largo fechado nos tres lados por linhas de pobres, casinhas terreas, algumas de telha, quasi todas de sapê.

No fundo, frente para o rio, a matriz, uma igrejasinha baixa, rebocada de annos e annos, com um sino rachado á esquerda, suspenso a uma especie de telheiro acaçapado, a cahir de podre.

E, ao redor da praça, assim pomposamente chrismada, estendendo-se para aqui e acolá caprichosamente, umas moradasinhas, quasi sempre de porta e duas janellas desguarnecidas de vidraças, moradasinhas bem caiadas e alvas, encravadas em copado laranjal. Entre si, communicam por tortuosas trilhas, que no tempo de florescencia ficam embalsamadas a pôr tonto um christão.

Nessas laranjeiras canta pela manhã e á tarde um mundo de maviosos sabiás, a que respondem os bandos de afinados e sibilantes caraúnas posados nas palmeiras indaiás, que alli ficaram da primitiva floresta virgem.