Ciganinha/III

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Cheia de travessuras no jaez das esboçadas foi, até quasi fazer-se moça, a existencia toda da Angelica, além de uma ou outra façanha de mais vulto, por exemplo, ir vagabundear, dias seguidos, da banda de lá do rio.

— Nossa Senhora da Abbadia bradava D. Cula angustiada, sahindo da habitual pasmaceira, não é que a menina se passou para as Geraes?!

Do outro lado, com effeito, de Paranahyba, fica o triangulo mineiro, habitado por povos sérios, de certo, e pacificos, mas muito retrahidos e com cara de poucos amigos.

Afinal, reapparecia a Ciganinha.

— Onde andaste, menina dos meus peccados? Indagava a desconsolada mãi.

— Ora, respondia a damnadinha, estive correndo mundo, assumptando, vendo...

— Mas, rapariga dos seiscentos, com quem, minha Santa Maria?

— Com o José Bexiguento, o filho da portugueza. Quis, certo dia, fazer-se de engraçado commigo; mas dei-lhe logo tal safanão, que d’ahi por diante andou direitinho que nem um fuso.

Embora aos 16 annos, tinha ella, ainda que mais assentada de juizo, pessima reputação; gozava de pessima reputação, dizem até bons classicos.

E bonita como mil pecados em penca, buliçosa, suggestiva, a pôr faulhas de ardente cobiça nos olhos dos mais indifferentes e quietos.

Cabellos negros, bastos, então mais cuidados e lustrosos, mas sempre com a sua forsinha, de preferencia vermelha, cabellos ondeados, com uns crespinhos rebeldes na testa e na nuca roliça; rosto para o comprido, n’um oval regular e como fechado por encantadora covinha no queixo; tez não muito morena, tanto assim que bem largas sardas lembravam as grandes soalheiras de outrora, apanhadas em criança; sobrancelhas de japoneza; olhos enormes, negros, rutilantes, avelludados, com uns cillios que punham sombra ás atrigueiradas faces em que florescia suave rubidez; labios humidos, polposos, com o brilho de romã entre aberta, n’um arco deliciosamente desenhado, orelhinhas pequeninas, como conchinhas nacaradas.

E que elegancia nativa e senhoril no porte; que collo soberbo, cintura fina, estatura mais que meiã – emfim, um todo, um conjuncto de fazer peccar Santo Antão, na sua gruta da Thebaida.

Namoradeira como tudo, a Gêgéca; muito ufana da sua belleza, dos seus encantos, mas acceitando a côrte e as homenagens de qualquer pé rapado.

A rapaziada de Santa Rita de Cassia e dos arredores umas 20 leguas andava tonta, n’um rodopio.

Ao lusco-fusco, um corisco a diabinha, sempre á cata de aventuras banaes, que sabia, porém, conter nos justos limites, avisada, aliás, a cada instante pela voz arrastada, plangente da mãe, como agoureiro pregão:

— Ménina, vancé se perde... Tanto vai o pote ao rio... Proteja-nos... Santo Christo dos Milagres.

— Conheço o caminho, respondia a Ciganinha e não me hei de perder assim com duas razões...Estou traquejada na estrada e no atalho...

— “Lá vai a pestesinha”, dizia-se ao lobrigar sobre tarde uma sombrinha airosa, esbelta, esgueirando-se, sem grandes mysterios, aliás, por baixo dos laranjaes. Ia até ás vezes cantalorando, com andar leve, mas seguro e firme. E ouviam-se as gargalhadas de escarneo, que dava lá debaixo das suas laranjeiras.

Com imprudencia sem par contava as bobagens que lhe haviam dito fulano e sicrano, o tropeiro Vargas, o arrieiro Thomé do Valle, o mascate José de Italia e mais este e mais aquelle, um povaréo grosso, emfim.

E imitava, com muita graça e valente debique, os protestos de amor eterno, as declarações ardentes e claras ou timidas e ridiculas, o gaguejado de quasi todos os pretendentes, os seus ademanes desengonádos. E concluia:

— Que pagode!

Todos lhe apontavam mil amantes; mas ninguem podia gabar-se de o haver sido. O filho do Manéca Fructuoso fôra já á cama doente de paixão. Debalde fizera valer o caso do olho quasi vasado pela laranja verde. A ciganinha, sem compaixão, motejava do seu triste estado, no passado e no presente.

— Um palerma, dizia desfazendo-se em crystalina e adoravel gargalhada, que a tornava ainda mais irresistivel. Já me falou em casamento, como se fosse um favorão, algum bicho de sete cabeças... Tão bom, como tão bom... Que é elle, afinal? Filho de um empalamado...

E continuava a dar escandalosa corda a quantos lhe arrastavam a aza, quer moço do povoado, quer adventicio e de passagem por Santa Rita.

— Essa rapariga é uma perdição, affirmava com pausa e todo convicto o José Bispo, da venda.

Perdição ou não, estava sempre a Gêgéca prompta para as entrevistas vespertinas, a que ia sem susto, sósinha, com a galhardia de se sahir sempre bem, incolume e a contento da altiva consciencia.

E uma vez ou outra pescava uns presentesinhos, cótes de vestidos de chita franceza e até de cassinha, lençosinhos bordados ou de seda, garrafinhas e frascos de oleo fino para o cabello, ou perfumes em moda entre as senhoras donas do Rio de Janeiro, da côrte, o que tudo aceitava, não por interesse, mas para obsequiar, muito instada e rogada – uma lembrançasinha sem vallor daquella tarde... E accentuava a lembrança da tal tarde com um aperto de mão mais forte, que nada significava, mas que a fazia dsprender-se e fugir ás carreiras pelo laranjal afóra,

Puzera-se tambem a trabalhar, e ligeira como era, ajudava com muito geito e bom resultado a pachorrenta da mãe. Ninguem resistia ao seu sorriso, quando offerecia, convidativa e meiga, um docesinho de seu taboleiro.

Um viajante, que por alli pousou com grande estado, da familia até dos Jardins, salvo engano, chegou a pagar uma cocadasinha, puxapuxa com uns brincos de pedrinhas verdadeiras, amarellas, muito vistosas; tudo desinteressadamente e por achal-a bonita devéras, como não vira igual nem em S.Paulo, nem na Capital Federal. Tambem essa fama de formosura enchia o sertão todo.

— Rapariga como a Ciganinha de Santa Rita de Cassia, apregoava-se, não há duas nestas trezentas leguas á roda!... Cousa de pôr tonto o homem mais valente!... E levada da carepa, um foguete, um buscapé... cruzes!