Ciganinha/VIII
Desde ahi verdadeira epidemia na rapaziada do povoado e adjacencias. Não havia agora quem não quizesse casar com a Ciganinha.
A todos ia dizendo- não, não!
Para que nada faltasse ao seu triumpho, uma tarde appareceu de repente lá pela casinha de D. Cula o vendeiro José Bispo, todo desajeitado, inquieto, a suar como um burro, mettido n’um rodaque branco bem engommado, de meias aos pés, dentro de alentados tamancos. Não tinha gravata, mas ostentava collarinhos altos e tesos, com muita gomma.
Estavam as duas mulheres merendando. Comiam com os dedos molle pirãosinho de farinha de mandioca a acompanhar um sorubysinho pescado de fresco e cozido n’aqua e sal,
Ficaram ambas sobremaneira sorpresas, até receiosas, sem saberem o que fazer.
— Não é servido? Perguntou a velha descorando muito, ao passo que Gêgéca fazia-se escarlate.
— Obrigado, dona respondeu José Bispo com timidez, transpondo a custo o limiar da chóça.
— Mas porém abanque-se, convidou a dona da casa indicando uma cadeira velha.
O homem foi, depois de algum pigarro, entrando em materia. Há muito quizera vir lhes falar, mas uma cousa e outra, isto aquillo, aquillo outro, negocios, etc., etc., o haviam sempre atrapalhado.
Depois...! receios de ter offendido D. Gêgéca, mas lhe perdoasse, não Fôra por querer, estava muito arrependido das suas brutalidade...
Tudo muito gaguejado, enquanto D. Cula abriu uns olhos muito grandes de coruja assombrada.
Afinal desembuchou.
A menina já era moça feita, precisava tomar estado, Ter uma posição, e elle, no caso de principiar familia, vinha, nem mais nem menos, pedir a sua mão.
E contou lá suas fanfarronadas.
Possuia bastante de seu para assegurar o futuro de ambas, pois até pretendia mudar-se d’aquelle logarejo, que não lhe servia mais, retirando-se para a capital, onde daria maior extensão ao negocio, para Goáyaz – como dizia.
E parece, com effeito, que pronunciava mais certo do que os que dizem Goyaz, pois o Sr. Beaurepaire Rohan, muito entendido em materia de bugres e cousas do tupi, assim tambem é que falla, - Goáyaz. Muitas e muitas vezes, eu, Heitor Malheiros, o tenho ouvido dizer d’esse modo, á fé meu gráu. Verdade é que o juramento está hoje abolido, e não sou formado em cousa alguma.
Continuava, porém, José Bispo. Dava aquelle passo na certeza de ser attendido, embora muita gente certamente o devesse censurar. Não duvidava dos bons sentimentos da menina, cujos modos entretanto serviam de motivo a muito mexericos e falatorios. Era franco. Nutria, porém, a convicção de que tudo não passava de muita mocidade. Uma vez mulher d’elle José Bispo, saberia portar-se de modo a só merecer respeito e consideração dos povos todos de Santa Rita, e onde quer que fossem parar.
— Dé certo, dé certo, ia affirmando a lesma da D. Cula toda a babar-se de gosto com a perspectiva de semelhante enlace, uma fortuna do céo.
Conservava-se Gêgéca retrahida, calada, com uns restos de pirão a seccar na pontasinha dos dedos.
Uma vez superados os primeiros instantes de acanhamento, falou José Bispo a valer, fazendo sobretudo alarde da sua qualidade de homem sério, de boa posição e apatacado, insistindo muito nas vantagens que desse casamento advirão para ellas duas.
Deixou até entrever, que, do seu lado, havia não pouco sacrifficio.
A isso Gêgéca rompeu o silencio:
— Então quem o mandou vir cá? Perguntou desdenhosa e altiva.
Respondeu o vendeiro com sinceridade.
— A paixão, Gêgéca, a paixão! Tudo fiz para conter-me, mas não pude. Estive quasi a fugir como um perdido, alta noite. Formei mil planos... até de crimes. Achei que afinal era melhor dar o passo que dou. Se vancê me disser não, mesmo assim ficarei mais socegado.Estou disposto a tudo... comtanto que não me queira mal... não me despreze, não se volte, ao ver-me, com escarneo e nojo...
E aquelle homem brutal, violento, tinha os olhos supplicantes, cheios de lagrimas, vencido pela força da belleza, como dissera João Valentim nas suas trovas.
Estava D. Cula totalmente besta do que via e ouvia.
— Gêgéca aceita, disse afinal intromettendo-se ainda que a vacillar e com uns laivos de rubra emoção na eterna pallidez das faces; sem duvida ella aceita... Que póde mais quérer n’este mundo? É desafiar a sorte.
— Cale a boca, mamãe, exclamou impaciente Gêgéca que parecia concentrar-se em rapida e necessaria meditação.
Afinal, voltando-se para José Bispo, respondeu-lhe com serenidade:
— Pelo passo que o senhor deu hoje, perdôo-lhe do fundo do meu coração tudo quanto me fez. Acabou-se o odui, e odio bem justo, que eu lhe votava. Não posso, porém, attender ao seu pedido, que tanto me honra e me levanta aos meus proprios olhos.
Não é que a diabinha da rapariga falava bem? Ora, sejam justos, leitores da minha alma. De entre os 40.000 assignantes da Gazeta de Notícias não haverá meia duzia mais condescendente?
— Pelo meu genio, continuou ella, e com os seus arrebatamentos, não podiamos ser senão dous infelizes, uma vez amarrados pela lei do casamento. Falando-lhe assim, dou-lhe prova de que não sou tão desajuizada como a muitos pareço. Por outro lado, e lado muito grave, que faria o senhor da desgraçada Perpetua, com quem vive ha tantos annos? Que seria dos seus quatro filhinhos, já tão abandonados?
— Mas, ménina, buscou inquieta interromper D. Cula, para que... se metter assim na vidá... dos outros?...
Via, com effeito, José Bispo, quasi a estalar de roxo, todo apoplectico, tolhido de vergonha, embasbacado.
— E o que é a pobre Perpetua, perguntou com voz vibrante a Ciganinha á mãe, toda estarrecida, senão a D. Cula lá da praça?... Não lhe faltam pancadas e tundas, além do peso dos quatro pequenos... Só agora o abandono...
— Gêgéca, exclamaram com tom de anciosa rogativa os dous, basta... basta!
E emquanto a chorona mamãi prorompia nos mais angustiosos soluços, retirava-se José Bispo tonto, titubeante, empuxado por mil sentimentos, numa afflicção bem real de pungitiva dôr, em que sobrelevava intenso vexame de si mesmo, pela taboca que acabara de chupar.