Ciganinha/VII

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N’essa especie de choradinho ou cururú que ficou celebre, expandiu-se a homenagem á formosura da Gêgéca nas seguintes quadras, cantadas com muita denguice e grandes derreados, pelo João Valentim.

Repinicando o violão, nuns preludios todos cheios de blandicias, tomou largo hausto e plangentemente soltou a voz já um tanto estragada e rouquenha:

“No Brasil jámais se viu
Rapariga tão bonita
Como seja a Ciganinha
D’esta nossa Santa Rita.”

Correu um sussurro de applauso e admiração, que o artista acompanhou em surdina.

Erguendo, porém, o canto, obrigou o silencio que se fez completo:

“Busquem outros prata e ouro
Nos mil sonhos d’ambição;
Que eu só quero, altivo a tudo,
Conquistar-l;he o coração.”

Gêgéca, lá do seu canto, impando embora de vaidade, deu um ixe! significativo.

Concordou logo o cantor com as difficuldades da ardua campanha e gloriosa posse:

“Mas ahi é que são ellas,
Pois a mais lindas das flôres,
Escarninha, volta o rosto,
Não enxerga as minhas dores.”

Appellando para o idylio, prosseguiu, puxando as cordas do instrumento com os dedos, muito abertos e recurvados:

“Se junto ao Paranahyba
Gemem tristes os salgueiros,
Perto d’ella em vão soluço
Preso aos olhos feiticeiros.”

— Cruzes, observou a Ciganinha a uma mocinha chlorotica que lhe ficára ao lado, dizer que os homens levam a nós pobres mulheres com estas patacoadas e pacholices! Qual, este mundo não anda direito!

A tal reparo paraceu responder João Valentim, promettendo lugubre desfecho ao repellido amor, de que se tornara illustre victima, éco aliás de muitos pacientes:

“Ó Gêgéca, meus pecados,
És um castigo da sorte;
Mas a tanto sofrimento
Eu prefiro a dura morte!”

— Não morre não, Valentim, replicou a interpelada bem alto, o que provocou até palmas no auditorio, deixando bastante enfiado o guitarrista.

— Que moça cuéra ! exclamou um dos ouvintes. Verdadeira inspiração inflammou, porém, o cantor com aquelle ironico desafio e com arroubado rapto acudiu elle, erguendo o tom:

“Ordem é do Ser Supremo
“De joelhos, natureza!
Abatei-vos. Terras, céos,
Ante a força da belleza!” [1]

Não pôde porém sustentar estro tão alto e descahiu logo em legitimo vôo icario para o ridiculo:

“Mas de tal consumição
Olha bem, cruel Gêgéca,
Vou ficando magro e secco,
Que nem feia perereca!”

E assim por diante, a não acabar mais, tudo muito chupado, cheio de si! E uis! Com umas pieguices de mulherengo vadio... a sua caceteação, em summa, que deixava a D. Cula toda babosa enleiada com vontade de alli mesmo abrir um pranto enorme, mas que a filha acolhia incredula, indifferente, meio a bocejar.

Quando alguma quadra lhe cahia no goto, ria-se então, botando á mostra os dentes rutilantes de alvura, sempre arêados com uns talosinhos molles de aroeira do campo, nacaradas perolas tornadas mais brancas ainda pelo contraste do vermelho appetecedor dos labios, frescos, carnudos, feitos para beijos de enlouquecer.

Da rubida bocca, porém, partiam flechasinhas pungentes, como do seio das rosas sahem zumbindo mordicantes abelhas.

Nem sequer soube poupar o sabiá goyano, o melodioso glorificador dos seus encantos, pois sem respeito algum á necessidade da rima, logo lhe paspegou ao cogote o appellido de João Pereréca, que adheriu e d’alli em diante punha bambvo e furioso o nosso seductor Valentim.

E entre a paixão real e a vaidade de poeta travou-se breve lucta, que terminou pela victoria do Parnaso, offendido em sua meticulosa dignidade.

Declarou-se inimigo de Gêgéca, mas teve que desapparecer de Santa Rita de Cassia, onde muito tempo depois cantavam outros bem convictos:

“Ordem é do Ser Supremo:
De joelhos, natureza!
Abatei-vos, terras, céos,
Ante a força da belleza!”

Ou mais frequentemente ainda, tanto o ridiculo sobrepuja o bom, até em Santa Rita do Paranahyba:

“Mas de tal consumição
Olha bem, cruel Gêgéca,
Vou ficando magro e secco,
Que nem feia pereréca!”

Razão talvez mais plausivel levára João Valentim a de pressa sahir d’aquelles locaes de inesperados desenganos. Foi pedir em casamento a terrivel Ciganinha e levou formidavel taboa tudo com grande pasmo de D. Cula, que quasi desmaiou de emoção, ouvindo a despachada resposta da filha ao avelhentado e petulante candidato:

— Olhe, Sr. João, disse-lhe a Gêgéca na bochecha, não se faz familia nem se sustentam mulher e filhos com cantorias de pereréca!

Era, já se vê, rapariguinha pratica, bem americana.

  1. (1) Com ligeiras alterações, ouvi todas estas quadrinhas da bocca de um d’esses improvisadores populares. [N. do A.]