Ciganinha/VI

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Da terrivel aventura não disse a ciganinha palavra a ninguem.

Tornou-se, porém, apprehensiva, muito mais prudente e não era assim com duas razões que ia espairecer e dar um bocadinho de tréla aos rapazes, lá debaixo das laranjeiras.

Preferia longos passeios sósinha, por caminho e atalhos só della conhecidos, mas, apenas começavam, lá pelas 5 da tarde, a desfilar nos ares os bandos de pombos torquazes, buscando sempre inquietos e como que irresolutos até no vôo, o pouso para a noite, tambem se encafuava acautelada em casa, na capuába da boa mamãe.

Ficára retrahida, inquieta, menos confiante nos seus meios physicos de repulsa e tentativas de desacato.

Só se mostrava mais attenta aos requebros e protestos de dous ou tres, era para tel-os á mão, como especie de guardas vigilantes, o que desapontava não pouco os namorados de mais fresca data, obrigados a gaguejar as suas declarações de paixão, quasi á vista de uns estafermos, sorumbaticos, estatelados de tanto amor e estorvadores de profissão.

Do filho do Manéca Fructuoso, o tal do olho meio varado por uma laranja verde, fizera Gêgéca gato sapato. A tudo se prestava o pobre do trangola, macilento apalermado, comtanto que lhe fosse permitido respirar perto de quem lhe comera a alma, na energica expressão sertaneja.

— O Malaquias da boiada chegada hontem, e o Fortunato da tropa do Chico ricasso, dizia-lhe a ciganinha, querem por força falar commigo, cousa de segredo. Quando o sol se metter na matta, venha mo buscar, ouviu, Nhonhô?

— Pois não, Gêgéca, vancê manda...

E o Mataquias da boiada e o Fortunato da tropa ficavam, cada qual no seu turno, todo embabocados e desageitosos, ao verem surgir ao lado da gentil apparição, anciosamente esperada, o typo escaniçado, muito comprido e ridiculo d’aquelle patito do sertão, o nosso Nhonhô Fructuoso.

— É excusado; com a Gêgéca ninguem póde, era voz corrente em todo o povoado de Santa Rita.

E tal ou qual prestigio mystico a rodeava, pois accrescentaram a meia voz:

— Tem partes com o anhanega e o sacisé réré; anda de pandega com currupiras e boitatás. Não poucos podem jural-o aos Santos Evangelhos.

Talvez por isso, mas muito mais pelos seus olhos a luzirem como brilhantes negros, entre orlas de cabelludas pestanas, pelo seu narizinho espirituoso, um nadinha arrebitado na ponta, pelas faces penujadinhas como pecego do cerrado, tão bonito no avelludado aspecto como feio no nome (chamam-n’o cagaiteira), pelo seu corpo esbelto, cheio, promettedor de mil thesouros, andava positivamente tonta, de miolo virado, toda a rapaziada d’aquelles centros.

Não havia quem não parasse diante da chóça de D. Cula e, puxando logo conversa, deixasse de comprar sem vontade mesmo, nem olhar o preço, todas as brevidades e ingenuas goloseimas do interior, ali expostas á venda. Florescia então por tal modo o negócio, que as duas mulheres já podiam vestir com certa casquilhice umas saias de babados grandes de bom crivo, e traziam sobre os hombros lenços finos de seda, barreados de azul, e aos pés uns chinelinhos de couro de veado, enfeitados de debrum vermelho.

Não havia cocada, mãe benta, manaoé ou pé de moleque que parasse. Além do que comiam, levavam os tropeitos lenços cheios – um nunca acabar – e voltavam logo a pedir mais, só por causa do dedosinho de gostosa prosa e contemplação.

E a ciganinha a vender tudo á porta da choupana materna, com muito bons modos, risonha, escorreita, prompta á replica e rebatendo, habil esgrimista, os cumprimentos demasiado ardentes á sua formosura – legitima e bem instinctiva loureira, na sua Santa Rita do Paranahyba, como a mais sabida e calculista americana do Norte n’esse incessante duello de faceirice e esquivanças dos brilhantes salões de Washington e Nova-York.

Nem tardou a suprema e estrondosa consagração, dada pelas trovas do João Valentim, o sabiá gogano, n’uma festa, quasi cururú, que chamara á localidade muito povo de umas 30 leguas em torno.

Esse Valentim , que pachola ao violão! Quantos cahidos de braços e revirados de olhos! Já meio velho, calvo, assim com uns restos de homem bonito, atirado a suductur de mulheres com as suas quadrinhas, que iam desfiando á medida da inspiração todo choroso e derretido!

Vadio como tudo, só queria trabalhar nas cordas da guitarra ou no machete, em que devéras pintava o sete, com umas unhas immensas, attestado da sua preguiça e que zelava como inestimável preciosidade, sempre limpas de cairel e todas lustrosas

E como sapateava ao fado, o pernostico bailante, apezar das juntas já bastante perras! Como puxava fieira, ao convidar, em elegante derrengado de corpo, o par ainda sentado! Não queria outra dama senão a Gêgéca, que n’essas occasiões pulava agil, airosa, provocadora, as faces rubras que nem pimenta malagueta, os olhos faiscantes com uma pontinha de lascivia, exuberante de seiva e mocidade, cousa mesmo de botar de pernas para o ar moços até da capital federal!