Ciganinha/V

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Repellido sempre, poz-se José Bispo, descuidando até os negocios da venda, a armar esperas á ciganinha, umas especies de tocaia, em que perdia muito tempo e consumia a paciencia, reduzido a roer frenetico as unhas ou antes o sabugo, conforme cacoethe velho.

Presentiu Gêgéca o imminente risco e, embora um tanto descuidosa e zombadora, de continuo lhe furtava as voltas.

Uma tardesinha, porém, em que, scismando, fora do costume, com certa melancolia, se arredára mais do que convinha, foi de repente emplogada. Quando de accordo de si, o portuguez lhe mettera a mão em cima, e mão bem pesada, adunca e violenta garra.

— Apanhei-te, pombinha de cascavel, exclamou com triumpho; vamos agora ajustar nossas contas: basta de debiques e caçoadas.

Era o logar deserto, gritar de todo inutil. Só se ouviam, no silencio dos ares, ciciar perto os flexiveis sarandys, cujos finos caules encurvados pela correnteza do Paranahyba, a cada instante se reguem para logo se dobrarem, produzindo brandos zunidos de plangente harpa colia.

Sentiu na testa a nossa heroina camarinhas de algido suor; mas, fazendo valente esforço sobre si, buscou não dar mostra do menor receio.

— Me largue, Sr. José Bispo, observou com serena gravidade; não são modos de homem sério com uma moça como eu...

O tal apello á sua seriedade e ás maneiras pausadas da Gêgéca desapontaram um tanto o vendeiro; uns simples minutos, comtudo.

— Que histórias, replicou brutalmente. Vejam, só a santinha de páo ôco... olhem, que partista!... Você cahiu no alçapão, e não solto o passarinho que custei tanto a agarrar...

— Mas que é que o senhor quer de mim? Perguntou com calma e sobranceira, envolvendo-o n’um olhar de supremo desprezo.

— Que é que eu quero? ... Cousa muito simples... que seje minha... e há de sel-o, olaré!... á força, se não houver outro remedio... É de tantos... Para que se fazer de pimpona só commigo?

Intenso rubor subiu ás faces de Gêgéca; os olhos faiscaram de raiva.

— Me largue, siô gallego, exclamou impetuosa. E com ameaça:

— Depois não se arrependa...

Sorriu-se zombeteiro o José Bispo.

— Ora, quero ver isto... há de ser gaiato... Eu me arrepender? Nunca, nunca!

E riu-se devéras, quando a ciganinha, reforçada como era, lhe imprimiu forte empuxão para libertar o braço preso. Nem se mexeu do logar, enquanto ella reconhecia, com intimo terror, que os dedos do portuguez a atanazavam como guante de ferro.

— Não se faça de tola, Gêgéca, eu bem sei que você esteve agora mesmo com o Nhôr Grande da esquina..._ Mentira, protestou a rapariga._ Pois se os vi passeando juntos até se sumirem debaixo das arvores...

— É verdade, passeei com elle...mais nada...Nhôr Grande não é tão ordinario que abuse de seu talento.

(Entre parenthesis.)

Sabem os possiveis e complascentes leitores, que cousa seja talento, em todo o sertão d’este nosso Brasil?

Força physica, nada mais.

Continuemos agora, caso valha a pena estarem aturando esta massada, mas disso não sou juiz. Como conheci, de passagem, a tal ciganinha levada da breca e lhe admirei, há uns pares de annos, a notavel belleza, tomei a peito contar as suas façanhas e capetagens.

— Pois eu cá, replicou a brichote do José Bispo, entendo que talento para muito serve... Olhe, quero ser bom; escute um pouco...

— Solte então o meu braço...

— Iche, lá isso não. Você disparava que nem veado matteiro. Assumpte... entregue-se por gosto a mim e de amanhã em diante a bóto de portas a dentro como minha caseira... D. Cula, sua mãi, virá morar commigo... Nada lhes há de faltar...

Arfava de indignação, odio e pavor o peito da pobresinha.

Vinha a tarde descendo depressa e, distante, á beira do rio, avisava uma anhuma póca, com intervallado cantar á maneira do bater de dous páos seccos, que a noite não tardava. A luz que ainda havia, tenue, esbatida, descia de umas nuvens grandes, de intenso vermelho, a purpurejarem todo o lado do poente.

Deu então Gêgéca novo arranco para traz com tal impeto, desta vez, que o seu aggressor teve que avançar dous passos. Quasi de todo lhe quebrou o animo esse esforço improficuo.

— Juro-lhe, bradou ella com a respiração offegante e immenso accento de verdade e angustia, que nenhum homem ainda me tocou no corpo. Tenha pena de mim, José Bispo. Se há virgem n’este mundo, sou eu... Não me desgrace... prefiro morrer...

— Qual, não se morre por isto, zombeteou o tendeiro.

— Tão certo como Deus estar no céo, affirmou Gêgéca arrebatada e ardendo em febre, saia eu d’aqui suja, desgraçada e me vou logo e logo pinchar ao rio. Ninguem mais me há de ver.

Minha pobre mãi que se agarre com a Virgem Santissima... não terá mais filha.

Viu José Bispo, no fundo, não de todo máo e perverso, que essa jura lhe subia direitinha do coração – havia de executar o que promettia.

Vacillou pois.

— Mas se eu a amo como um perdido? Se a quero noite e dia?

— Razão de mais para me tratar com respeito... Não sou nenhuma fadista para o capricho dos homens por qualquer meia pataca...

— Onde fica o mundo dos amigos e rufiões? Que querem dizer todas essas conversas, á noitinha?... Santa Rita está cheia das suas passadas tranquibernias...

— Brinco, gracejo, ouço as tolices que me dizem... deixo prégar á vontade, mas ninguem toca no pulpito...

E concordou quasi com humildade...

— O senhor tem razão... Não é nada bonito o que tenho feito. Prometto emendar-me. Ficarei-lhe querendo tanto, tanto bem!... A lição foi muito séria.

Com a volubilidade de seu genio, Gêgéca,. Ao dizer conceitos tão sensatos, já era outra, serenada a physionomia e, por isso mesmo, mais formosa e seductora. Parecia-lhe que aquelle homem, cujas intenções a aterraram, de subito se transformara em bom e leal censor.

Pouco durou a ilusão.

— Não me levo por cantigas... Você falla em morrer, quando agora é que a vida vai devéras principiar.

Recomeçava a dolorosa e indigna lucta.

— Não nasci para os teus beiços, gallego, porco, ladrão, tinhoso!

E as palavras sibilavam, ardentes, cuspidas com nausea, o corpo derreado para traz em disposição de resistencia a todo o transe, e até ao ultimo alento, lucta de morte.

Procurava José Bispo, vermelho, apoplectico de furor e volupia, enlaçal-a pela cintura com o braço livre. Ia a dar-lhe o fatal cambapé.

Foi quando a ciganinha, com inopinado movimento de mergulho, agachou-se rapida. Ao erguer-se, trazia na mão direita uma grande pedra providencialmente achada aos seus pés e, sem perder um segundo, com ella bateu por modo tão brusco e contundente nos peitos de José Bispo, que este a largou, soltando um grito de surpreza e dor.

Era quanto bastava.

Fuzilou a Gêgéca pelo cerrado afóra; mas á distancia parou e, pondo os dedos nos cantos da bocca, atirou aos ares calmos amornados uns assovios tão finos, agudos e penetrantes, que a mataria já adormecida pareceu sobressaltar-se. Respondeu-lhes, á margem do Paranahyba, a assustada grita dos bulhentos e mettidiços queroqueros, de subito alvoroçados.

Ao chegar á casa, toda fóra de si, arquejando de susto e de cansaço, abraçou a ciganinha a mãi com angustiada vehemencia e, deixando-se cahir de joelhos, prorompeu em longo e nervoso pranto.

Debalde tentou D. Cula saber o motivo. Afinal, suspeitando o que não era real, triste e resignada, chorou ao lado da filha até alta noite.

Meu Deus, meu Deus, que será de nós? Exclamava a cada instante.