Ciganinha/X

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Não dormiu a noite toda o nosso impressionavel Anselmo de Sá, a passear, agitado, pelo povoado immerso em carregadas sombras, nervoso, irrequieto, acordando ao latir de um ou outro cão e fumando cugarros; a esperar, pelo que?... Por enquanto, pela madrugada, que não chegava.

De nada valiam os esplendores do céo, de um azul ferrete, negro, avelludado, profundo, como certas as hyras do oriente, céo marchetado de tantas estrellas, que o Paranahyba d’ellas colhia fantasticas fulgurações, no immenso serpear da larga corrente.

Afinal, sentiu-se o moço prostrado, com as pernas tão bambas, que cahiu na cama feita sobre as canastras de viagem, e passou por uma modorrasinha, mais que somno. A's 7 horas da manhã já estava, porém, de pé. Lembrou-se então de ir banhar-se nas aguas puras do rio, a vêr se acalmava o incendio que sentia lavrar violento, inapagavel, dentro de si e o suffocava; a mente conturbada, o peito oppresso, com os musculos repuxados.

Qual! Gregorio de Mattos, sem procurarmos exemplos e approximações em litteraturas de outras terras, na tal Europa e sobretudo na França, que tanto nos avassalam, o nosso Gregorio de Mattos já disséra descrevendo identica e penosa disposição d’alma:

Tomo banhos de neve por dentro,
Mas o fogo não quer abrandar!”

E eram banhos de neve, cousa que não existe no Brasil, tomados internamente, por cima! Como, porém, o poeta se os administrava, é o que não nos diz, nem ensina.

Fica, comtudo, a receita para o apaixonados em tão melindrosas circumstancias.

Nem de proposito, fôra Anselmo mergulhar o ardente corpo no banheiro habitual da ciganinha, á sombra do salgueiro que tantos primores costumava entrever de soslaio... Calculem só... De certo, a arvore foi discreta, mas quem sabe? é tão singular, inexplicavel, mysteriosa a força catalytica, a acção de presença? Que prodigios não operam no seio da natureza esses elementos mudos, impassiveis e inalteraveis?... Qualquer que seja a causa, o pobre do rapaz sahiu d’aquella immersão pior do que quando penetrára na agua tepida, ennervante, voluptuosa em suas amornadas caricias. Tinha chammas nas veias.

Vestiu-se ás pressas e com o cabello grudado ao casco da cabeça, portanto meio ridiculo para um pelintrote de S. Paulo, resolveu ir bater é porta de D. Cula, orientado por um meninosinho, a quem generosamente deu 200 réis em nickel.

Sem demora lhe appareceu a visão celeste! Nem mais, nem menos, de repente, a Gêgéca, que lhe dardejou logo dous olhares de revirarem de catrambias para o ar, não um simples bacharelete, mettido em paletot sacco, de sarja verde fundo de garrafa, porém, sim, com todo a sua armadura de ferro, Roldão em pessoa, o sobrinho querido do imperador, Carlos Magno, ou algum dos Doze Pares de França.

— Que deseja, Sr. Doutor? Perguntava a rapariga sorrindo com encantadora ingenuidade, mas devéras surpresa e lisonjeada d’aquella visita matinal.

— Venho... venho, balbuciou o Anselmo quasi estarrecido de tanta belleza matutina, venho... encommendar á... senhora sua mãe... Não posso falar... com ella? Cousa... urgente...

— Está ainda dormindo, replicou a ciganinha muito despachada.

Mas, demonio, é filha d’aquelle diabo que tanto surrára a desgraçada D. Cula, basta de atarantar mais o Sr. Bacharel! Para que esse sorriso enigmatico, para que esse bater languido de folhudas pestanas? Deixa, pelo menos, o moço dizer o que quer, que encommenda ora essa, tanto mais que um raio ronico de sol ao nascedouro lhe brincava nas barbas ainda incipientes, na ponta do nariz e no seu pince-nez de myope!

Era comtudo, exacto, D. Cula, com os habitos de inveterada preguiça goyana, ou antes sertaneja, ou melhor brasileira (fiat justitia ne pereat mundus, diz o direito estudado, ou não estudado, pelo Dr. Anselmo de Sá) D. Cula apezar do calor, estava áquella hora encafuada na cama, o tal catre velho, de que fala o capitulo I d’esta historia verdadeira.

— Não... não a incommode, implorou Anselmo com verdadeira angustia, como se da repulsa de sua supplica pudessem provir grandes dannos. Quero... a senhora... per... perdôe... Quero para a viagem... um taboleiro de doces.

E ficou assombrado da repentina idéa que lhe ilumminara o cerebro; dominado, porém, pelo terror de que o tal taboleiro de doces fosse cousa tão fóra de alcance como o vélo de ouro, ou algum pomo do jardim das Hesperidias.

Tranquillisou-se de prompto.

— Hontem mesmo á noite fizemos um bem grande, replicou Gegéca. O senhor volte logo para ajustal-o com mamãe.

Ia humildemente, todo soffrego, perguntar a que horas; mas não teve tempo, Pan! A ciganinha lhe batera a porta na cara.

Já se viu o capricho?

Atraz dessa porta trancada, ficou ella comtudo pensativa, de sobrancelhas um tanto cerrada. Vamos e venhamos, aquelle mancebo tão alvo, de bigodinho revirado, pince-nez de ouro, mãos e pés delicados, maneiras finas, trage elegante, lhe agradava devéras, não lá exaggeradamente, cousa extraordinaria; mas, emfim, esse não era, de certo, como os outros, oh não!

— Que há de novo, ménina? Perguntou de um canto a vóz arrastada de D. Cula, entre dous bocejos.

— Um moço bem parecido que veio pedir um taboleiro cheio de doces... para não sei que viagem.

— Louvado seja! Diga-lhe que são tres mira réis pagos á vista.

— Quase 3S! objectou a filha. Peça-lhe a mamãe 5S , quando elle voltar.

— E se não vortá?

— Oh! Se volta!...

Com effeito voltou e, ao preço exigido de 5S, impetrou licença para offerecer 10S; favor feito a elle. Tomara informações seguras; uma viuva, vivendo honestamente do penoso trabalho com a sua filha, já moça, ambas sem protecção de ninguem – nada mais digno e commovente.

E, se não deitou discurseira, foi por sentir a cabeça quenem um ninho de guaxupés assanhados, debaixo das baterias oculares da ciganinha.

— A moça sabe lêr? Atreveu-se elle a perguntar á Gêgéca n’um momento em que estiveram a sós.

— Mal e aml, respondeu ella sempre a sorrir (diabo de sorriso) arranho... quando a lettra é grande...

D’alli a pouco, tambem recebia um papel com garrancho bastante graúdos: “Preciso muito falar-lhe logo á tarde, debaixo das laranjeiras. – Dr. Anselmo.”

N’aquelle esplendoroso doutor depositava o nosso homem muita confiança, toda a confiança.

Entretanto, oh desilluão! A Gêgéca, n’essa tarde deixou-se exactamente ficar bem socegadinha em casa; a ajudar a mãi n’uma tachada de doce de fructa de lobo, que esta no dia seguinte devia impingir como marmelada ao desnorteado viajante.

E não é que o bolas do cigano fizera escola e para alguma cousa servira?!

Tudo nesse mundo tem sua compensação.