Ciganinha/XI
Deste dia em diante começou a ciganinha a pôr em pratica os mais habeis manejos de faceira esquivança, deixando o Anselmo cada vez mais transtornado de paixão e exaltados desejos.
Em Santa Rita, já ninguem mais ignorava que o doutor, de pouso alli por alguns dias, estava positivamente a definhar de amor. A todos tomava para confidente, distribuindo dinheiro a rôdo e não se fartando de ouvir falar na Gêgéca, ora em bem, ora mais frequentemente em mal, o que o exasperava. As noticias do José Bispo então o torturavam de modo horroroso, indizivel.
Fazia tenção firme de logo e logo partir, de fugir alta noite, sumir-se, azular; marcava o dia certo, infallivel e, afinal, chegado o momento, decidia continuar a ficar por ali a banzar.
Tudo lhe servia de pretexto, necessidade de dar forte descanço aos animaes, receio de chuvas proximas, razões todas de cabo de esquadra, que os camaradas iam acceitando com a indifferença que essa gente pot tudo mostra, no fatalismo da existencia.
— É memo, é memo! Concordavam e lá iam folgar no rancho a tocar viola emquanto esperavam que o Sr. Doutor quizesse um bello dia, quando menos contassem, levantar o pouso.
— Mas Gêgéca, D. Gêgéca, perguntava a medo Anselmo, em certa occasião, á ciganinha pilhando-a de geito, porque é que você... a senhora... foge de mim?...
— Por que o doutor deseja o meu mal, a minha desgraça! Respondeu a moça resoluta.
— Eu, Gêgéca, eu? protestou elle com verdadeira e sincera indignação, eu que a amo tanto, que a quero como nunca suppuz poder querer a ninguem... eu, que não durmo, não como, não tenho mais um momento de socego a pensar na senhora... sempre em si?!
— E depois?...
— Depois o que?
— Sim, depois? Para mim a vergonha, as lagrimas, o abandono... tal e qual minha pobre mãe, e tantas coitadas por este mundo de Deus!
Arregalou Anselmo uns olhos muito grandes. Sériamente cahia das nuvens, via-se rolando aos trambolhões por enormes despenhadeiros.
— Eu te juro... fiel, fiel até morrer!...
— Sim, é o que vocês homens sempre dizem; a arapuca em que todas cahem... um milhosinho pisado em troco da prisão eterna... valha-me Santa Rita!...
E arremedando o arroubo do rapaz repetiu com engraçado e fingido ardor e apertando o peito nas mãos:
— Eu te juro...fiel, fiel até morrer! E riu-se ás gargalhadas.
Em outro tom, sem transição:
— Para nós, desgraçadas, as consequencias... o luto, esse eterno riso... o peso desse gracejo... os trabalhos, nós, sobreturo, do sertão, sem ninguem que nos ampare, nos mostre o caminho direito... nenhum castigo para os homens, que têm por si a força, o abuso...
Ó ciganinha damnada! Quem te ensinou tudo isso? Em que livro foste aprender toda essa desfiada de valentes argumentos, tu que só sabias kyrielas de nomes feios e se lias era mal e mal, tão sómente lettra graúda? Muito, muito póde o bom instincto!
— Então fujo d’aqui, vou me embora, desappareço... Você nunca mais ouvirá fallar de mim... Hei de esquecel-a, logo e logo que der as costas a Santa Rita...
— Paciencia, replicou a Gêgéca, levantando os hombros, a estrada é larga, está ás suas ordens. Ninguem o agarra; olhe, eu não lhe estou dizendo de ficar...
E, com melancolia, mirando o moço bem em cheio, os olhos carregados de brandura:
— Quanto a esquecer-me, disse, é bem facil, bem natural.Que valho eu? Uma pobre rapariga da roça...filha de mulher sem marido. Mas eu lhe affianço, Sr. Doutor, hei de sempre lembrar-me do Sr. Viva eu cem annos...
E quedou-se uns instantes a encaral-o immovel.
Mal poude Anselmo reter um frouxo de choro.
Parecia que todas as desgraças lhe cahiam em cima.
De repente:
— Então você gosta um bocadinho de mim? Indagou com anciedade.
— Não sei, não posso dizer... nem sim, nem não... gratidão é amor?
— Mas, Gêgéca, qual será o seu destino, neste logar tão pobre, tão sem recursos?... Tanta formosura para quem? Para que?
— Meu destino? Que interesse deve merecer-lhe? Ora,,, o de tantas outras... Casarei com algum tropeiro por ahi... Estou vendo, estudando, esperando alguem que seja de todo máu..._ Você, casada com um tropeiro, meu Deus, meu Deus!! Impossivel!
— E porque não? Nem sequer valho um arrieiro?
— Oh! Gêgéca, muito mais, muito! Não leve a mal as minhas palavras; estou fóra de mim, nem sei o que digo...
— Olhe, observou a Ciganinha, uma cousa eu juro por Deos que me está vendo, o homem que me tiver não há de se arrepender... Sinto que não nasci para mulher ordinaria... menos ainda para moça de parta aberta...
E com impeto:
— Não, isto não, antes a morte... mil vezes a morte!
Agarrando então violenta a mão de Anselmo e achegando-se a elle, perguntou irada, com os sobrolhos fechados, as feições contrahidas:
— O José Bispo da venda lhe contou alguma mentira? Fallou mal de mim? Responda, responda!
O moço repetiu o que era verdade.
— Não, elle se calla, todo embezerrado, quando outros cortam na pelle de você... E não são poucos Gêgéca... ah, não!
— Uma sucia de catimbáos e mofinos! exclamou ella com altivez. Podem inventar o que fizeram, desafio-os a todos; mas o mais pintado d’elles não teve isto de mim!... Ixe!
E fez estalar a unha de encontro a outra.
Passou então por perto uma velha que ia buscar agua ao rio com um pote á cabeça, e os dous pouco depois se separaram.
Anselmo levava, comtudo, a promessa formal do tão inspirado encontro a sós, n’um recanto ensombrado que ella lhe indicou, a custo, incerta, descontente, apprehensiva.