Compendio de Botanica/ADVERTENCIA
ADVERTENCIA.
Tendo a Academia Real das Sciencias de Lisboa, actualmente debaixo da sua inspecção o Jardim Botanico d'Ajuda, cujo Director he obrigado a reger a Cadeira de Botanica, entendi que faria um serviço á mesma Academia, offerecendo-lhe revisto inteiramente, e posto a pár da Sciencia, o Compendio de Botanica do Doutor Brotero, para servir de guia aos que frequentarem a Aula respectiva, e espero que as imperfeições contidas neste primeiro Ensaio Botanico, serão relevadas pela Academia, porque só o gosto desta parte das Sciencias Medicas, que me fôra inspirado, por occasião de tomar o gráo de Doutor em Medicina nas Universidades Estrangeiras, visitando os seus Jardins Botanicos, he que me poderia animar a emprehender similhante trabalho scientifico.
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MOTIVOS DA REFORMA DO COMPENDIO DE BOTANICA DO DOUTOR BROTERO.
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Tendo em vista perpetuar a memoria do nosso celebre Botanico o Doutor Brotero, cuja morte deixará ainda por muito tempo hum vacuo na Botanica portugueza, julguei que hum dos mais appropriados meios seria reimprimir huma das suas primeiras obras, como o presente Compendio, que em 1788 publicou em Pariz, não só pela raridade desta obra, mas tambem pela phrazeologia Botanica, que na lingua nacional ainda não foi imitada; e não obstante terem apparecido, no decurso de quarenta e oito annos, que tanto vai daquella impressão, algumas obras elementares como Myrbel, De Candolle, Richard, e outros, com tudo persiste ainda hoje a necessidade de consultar a obra do nosso Botanico, para conhecer os termos technicos, e nomes triviaes botanicos portuguezes. Entretanto he preciso confessar, que tendo a Botanica elementar feito progressos, tanto na parte descriptiva, como na anatomica, physiologica e pathologica, era indispensavel que não viesse á luz publica este Compendio, sem ser revisto, accrescentado, reformado, e posto finalmente a par dos conhecimentos actuaes desta parte da sciencia dos corpos organizados.
O Compendio de Botanica do Doutor Brotero, estava impresso em dois volumes em 8.º, nos quaes se continha hum prologo, sobre a fórma e distribuição das materias; hum discurso preliminar, que era huma verdadeira historia da Botanica, desde os mais remotos tempos até 1788; e finalmente huma introducção sobre Os principios geraes da sciencia, a que se seguia a parte descriptiva, misturada com algumas noções de physiologia; e pathologia terminando pela exposição do systema sexual de Linneo, e por um diccionario botanico latino e portuguez; álêm do catalogo dos authores botanicos, e dos nomes vulgares das plantas. Tambem tratou da arvore de chá, e da maneira de fazer os hervarios; tudo accompanhado de estampas para illustração dos objectos que tratou no mesmo compendio.
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Na presente edição omittirei o discurso preliminar, porque sendo a historia propriamente da Botanica, não pertence a hum compendio; e esta falta será compensada por huma exposição abbreviada de todas as classificações Botanicas, desde Theophrasto atê ao presente. O prologo será tambem supprimido, por ser relativo á distribuição das materias, que actualmente não póde persistir, em attenção á nova fórma que devo dar a este compendio. Igualmente será supprimido o diccionario botanico latino e portuguez, que termina o segundo volume, não só por ser incompleto presentemente, mas tambem por dever fazer huma obra á parte, que tenciono appresentar em tempo opportuno. Entretanto huma tabella glossologica alphabetica, fará as vezes de hum diccionario muito resumido da parte technica deste compendio. A Introducção porêm do Doutor Brotero será conservada, sendo precedida de algumas noções geraes de Botanica, como supplementares á mesma Introducção.
Sendo conveniente que a parte descriptiva dos orgãos das plantas preceda á parte anatomica e physiologica, me affastarei inteiramente daquelle botanico, em quanto mistura a Physiologia com a parte descriptiva, por ser mais methodico o tratar da Physiologia e Pathologia, depois de serem conhecidos os orgãos em todas as suas relações exteriores, e muito mais me affastarei de Richard, o qual trata primeiro da minuciosa estructura intima dos orgãos, antes de dar a sua descripção; porque he quasi impossivel conhecer os elementos que entrão na sua organisação, antes de ter estudado a descripção geral dos orgãos. Por tanto a nova forma do actual compendio evitará muitos dos inconvenientes expostos, e tratará tambem da Pathologia geral e especial dos vegetaes, de que o Doutor Brotero apenas se limitou a algumas mais vulgares, e de que Richard não tratou; vindo a ser um compendio mais completo dos que se achão presentemente publicados, como se verá da seguinte distribuição.
Será dividido este compendio em tres partes. A primeira parte tratará da Glossologia ou Terminologia, isto he, da descripção de todas as partes da planta. Esta parte será dividida em capitulos e artigos, principiando pela enumeração em geral de todos os orgãos ou partes da planta, á qual se seguirá logo a descripção das cotyledones, radicula, plumula, raiz, tronco, folhas e orgãos accessorios, flor, fructo etc. Todos estes capitulos pertencerão ás duas classes ou divisões, em que naturalmente se achão distribuidos os orgãos das plantas, a saber: 1.ª classe ou divisão dos orgãos da nutrição ou vegetação: 2.ª classe ou divisão a dos orgãos de reproducção, ou fructificação; vindo assim a raiz, tronco, folhas e partes accessorias a serem os orgãos da vegetação; e a flor e o fructo, os orgãos da reproducção ou fructificação. As estipulas, as gavinhas, os espinhos, os aculeos, as glandulas, que são partes accessorias do tronco e folhas, serão descriptas por occasião destas; assim como os gomos bolbos, bolbilhos o serão na descripção das raizes. As bracteas que são folhas floraes serão descriptas por occasião da flor etc.
A segunda parte comprehenderá a Organographia, ou a estructura anatomica dos orgãos dos vegetaes, assim como a Physiologia respectiva, principiando pela descripção dos elementos geradores de todas as partes das plantas, como o tecido cellular ou areolar, e o tecido vascular ou tubular, expondo primeiro a parte anatomica, e depois a physiologica, tanto nos orgãos da nutrição, a saber: raiz, tronco, gomos, ramos, ramusculos, folhas, bolbos, bolbilhos, como nos orgãos da reproducção, isto he, flor, fructo, que será distribuida em capitulos e artigos. Ultimamente a Phytotheresia ou a alteração das plantas, na qual se comprehendem as flores monstruosas, ou viçadas com a parte respectiva nosologica e pathologica, terminará esta segunda parte.
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A terceira parte conterá a Taxonomia ou as classificações botanicas, tanto antigas como modernas, dando mais extensão á classificação das familias naturaes e suas novas divisões, a qual será exposta segundo o methodo adoptado no Jardim Botanico de Pariz, a fim de ser imitada nos nossos Jardins Botanicos conjunctamente com a classificação de Linneo. Esta parte terminará por tratar da Geographia das plantas do Calendario, e do Relogio de Flora, calculado para a Latitude de Lisboa. Tambem se dará o methodo de formar os hervarios, de classificar huma planta dada, ou reduzindo-a ao systema sexual de Linneo, ou ao das familias naturaes, durante ou por occasião das herborizações. Finalmente a tabella glossologica e as estampas completarão as tres partes, em que será dividido este compendio.
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NOÇÕES BOTANICAS
Para servirem de complemento á Introducção do Doutor Brotero.
Botanica (res herbarea) he esta parte da Historia Natural, que tem por objecto o estudo dos vegetaes; mas este estudo não consiste só no conhecimento puro e simples do nome dado ás diversas partes da planta, como se tem julgado por muito tempo; mas tambem se occupa das leis que regulão a sua organização geral, fórma, funcções dos orgãos, e das relações que os unem huns aos outros, e pelo que respeita igualmente ás suas applicações mais importantes, quer ellas sejão nocivas ou salutares, e ultimamente das vantagens que podemos tirar na economia domestica, artes, e Therapeutica. Em razão destas considerações tem sido dividida, em Botanica geral, Botanica organica, e Botanica applicada.
A Botanica geral comprehende 1.º a Glossologia, esta parte interessante da linguagem botanica, ou aquella que ensina a conhecer os termos technicos dos diversos orgãos das plantas, e suas numerosas modificações: 2.º a Phytographia ou a descripção das plantas: 3.º a Taxonomia ou a applicação das leis geraes da classificação ao Reino vegetal.
A Botanica organica, ou a Physica vegetal, he a que considera os vegetaes como entes organizados e vivos, que nos manifesta a sua estructura interior, assim como o modo de acção propria a cada hum dos orgãos, e as alterações que podem experimentar tanto na estructura, como nas suas funcções. Esta divide-se em Organographia ou a descripção da fórma, posição, estructura, e connexões dos orgãos: 2.º em Physiologia ou exposição das funcções proprias a cada orgão.
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A Botanica applicada he a que tem por objecto as relações existentes entre o homem e os vegetaes. Divide-se: 1.º em Botanica agricola ou da applicação do conhecimento dos vegetaes á cultura, e melhoramento do sólo: 2.º em Botanica medica ou da applicação dos conhecimentos botanicos á determinação dos vegetaes, que podem servir de medicamentos: 3.º em Botanica economica e industrial, ou a que tem por objecto fazer conhecer a utilidade das plantas nas artes, e economia domestica.
Tambem se diz Botanica historica, quando se limita a tratar da parte historica das plantas; e Botanica Geographica quando as considera em relação ao local da sua habitação nos diversos climas, ou a Geographia das plantas.
Não sendo o nosso fim tratar neste compendio de todos os objectos botanicos, por isso sómente nos faremos cargo da Botanica geral e organica, pertencendo a Botanica applicada aos tratados especiaes desta parte das sciencias naturaes.
§. 1.º
Differenças entre os animaes e os vegetaes.
Sendo tão facil distinguir hum corpo organisado de hum não organisado, ou inorganico; não he assim pelo que respeita ao corpo organisado, a que chamamos animal, daquelle outro organisado, a que damos o nome de vegetal, porque os extremos destas duas castas tocão-se e confundem-se de modo, que he impossivel desenhar a linha de demarcação que separa os animaes dos vegetaes; não parece mesmo se não huma cadea ou escala ascendente de entes organizados, cujas funcções e organização se vai cada vez mais desenvolvendo e manifestando, desde o vegetal mais infimo ao animal mais superior, que he o homem. Como sómente comparando, he que podemos julgar com acerto da differença que podem appresentar os vegetaes e os animaes, faremos a seguinte comparação.
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§. 2.º
Os vegetaes são uniformemente organizados, não tem centro nervoso, origem e termo das sensações e da sensibilidade, não tem huma cavidade propria, onde sejão lançados os alimentos, e ahi elaborados, levados depois aos ultimos pontos periphericos, não tendo mobilidade espontanea, como nos animaes, que até certo ponto he verdadeira. Se descermos porêm pela escala gradativa dos animaes, acharemos que nos ultimos individuos deste reino, os caracteres distinctivos não são demonstraveis, apezar do vegetal appresentar a mesma disposição dos tecidos. Entretanto discorrendo pelos animaes superiores achamos distinctas cavidades, com visceras variadamente organizadas, destinadas a differentes actos necessarios á conservação individual, com particularidade á cavidade gastrica, destinada a receber os alimentos, extrahir delles a parte alimentar, e depois separar o que não serve para este fim lançando e expellindo para fóra do corpo. Tudo isto porêm se vai successivamente simplificando, e fazendo mais obscuro, e só analogicamente he admissivel, á proporção que vamos correndo a escala descendente dos animaes. A irritabilidade, ou a faculdade que os orgãos tem de se ressentir á applicação dos differentes estimulos, he certamente hum dos principaes effeitos da vida, e que em quanto aquella se não extingue completamente, tambem esta não abandona ainda completamente o ente. O que parece certo, he que os animaes, álêm desta força gozão de outra que he a sensibilidade, as quaes ambas differentemente modificadas, segundo os diversos grupos de individuos, constituem os caracteres da sua organização respectiva; porquanto a sensibilidade reside particularmente no systema nervoso, e a irritabilidade he propria de toda a fibra viva.
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§. 3.º
Em quanto á forma da reproducção, appresenta-se huma notavel analogia entre os animaes e vegetaes; porque em huns e outros, até certa altura da escala organica, se notão os orgãos sexuaes masculinos, e femininos; e acharemos ainda maior analogia se compararmos o modo, por que se propagão certos vegetaes, por meio de gommos ou estacas, com a maneira porque se podem multiplicar certos animaes, os vermes aquaticos (nereidas), e os polypos; e voltando novamente a fallar do movimento dos vegetaes se compararmos dois entes, seja por exemplo hum polypo gelatinoso, que he evidentemente hum animal, e hum nostoch gelatinoso que passa por huma planta, ainda que não haja differença alguma descriptiva entre ambos, á excepção do movimento contractil que pertence ao primeiro, de que o segundo não he susceptivel; nesta comparação o nosso juizo não pode ser fundado, senão em analogia, nós vemos mover-se este polypo; nossa hesitação cessa, e concluimos, que he um animal, porque suas formas se aproximão, tanto daquellas de huma planta como das de certos polypos, em que os signaes: de animalidade são mais evidentes: mas se este ente tivesse tido huma organização diversa, tendo tambem folhas, flores, etc., o movimento teria sido muito mais sensivel, e teriamos dito, que era huma planta, por exemplo, huma sensitiva, por isso que então percebiamos hum maior numero de analogias, entre este individuo, e as outras acacias, do que entre elle, e huma outra especie de animal.
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§. 4.º
Se houvessemos de levar a comparação mais adiante, teriamos a notar a maneira como se faz a respiração entre huns e outros, porque os animaes se são mergulhados, por algum tempo em gaz oxygenio puro morrem asphyxiados: o mesmo accontece com as plantas, quando são mergulhadas por algum tempo em gaz puro que não seja o carbonio e oxygenio: os primeiros inspirão oxygenio e expirão gaz acido carbonico, os segundos ao contrario inspirão carbonio e expirão oxygenio.
§. 5.º
Se observamos a maneira como se faz a nutrição, tambem achamos a maior analogia entre huns e outros, porquanto os Zoophytos e alguns mais, não se nutrem senão por elaboração de fluidos, operada em toda a superficie, e muitas plantas como por ex. os Lichens, estão no mesmo caso, nutrindo-se antes por imbibição do que por sucção das suas radiculas.
§. 6.º
Se compararmos a estructura de ambas as classes de entes vivos, acharemos ainda maior similhança; os Zoophytos pela maior parte são formados de huma substancia molle, gelatinosa, sem a menor apparencia de apparelhos digestivos, de vasos proprios da circulação dos fluidos, de musculos, de nervos, e centros communs de sensibilidade, entretanto que nas Confervas existe a mesma simplicidade de estructura.
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§. 7.º
Finalmente se examinamos como a morte sobrevem a huns e outros, ainda achamos a maior similhança, porque nos animaes a morte he filha da desunião das moleculas que estavão unidas pela vitalidade, e não tardão a combinar-se segundo as leis da affinidade e da attracção; o mesmo accontece nos vegetaes. Seria extendermo-nos muito se quizessemos comparar muitas outras funcções que huns e outros exercem, e pela comparação das quaes, conheceriamos a grande similhança entre huns e outros, e quanto he difficil a distincção entre os entes organizados que se chamão vegetaes e animaes.
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INTRODUCÇÃO
DO DOUTOR BROTERO.
Todos os corpos compostos, que existem no globo terrestre, podem ser reduzidos a tres grandes classes primarias, a que os Naturalistas chamão os tres reinos da Natureza, a saber, o reino mineral, vegetal é animal. No primeiro considerão-se as terras, pedras, e metaes, que se distinguem dos entes dos outros dois reinos, pela razão de não viverem ou não terem organização e contextura destinada ás funcções da vida, segundo o modo com que physicamente se entende esta palavra; as pedras e metaes não deixão sem embargo disso de ter crescimento. O segundo comprehende os vegetaes (vegetabilia) ou entes organizados que crescem e vivem sem comtudo serem dotados de sensibilidade, nem de potencia locomotiva. O terceiro contêm os animaes ou entes que crescem, vivem, e sentem e tem potencia locomotiva; ainda que nas suas extremas graduações (começando no homem e quadrupedes) se achem alguns que parecem ter a sua sensibilidade e faculdade locomotiva, em hum grande embotamento e inactividade. (1) A sciencia que trata dos entes destes tres ramos he chamada Historia Natural. Quando só se emprega na consideração dos mineraes, tem o nome de Mineralogia; se só trata dos vegetaes he chamada, Phytologia ou Botanica (Phytologia seu Botanica) mas este segundo nome he o mais usado. Emfim quando sómente trata dos animaes, he chamada Zoologia. A Botanica segundo o diverso modo com que trata dos vegetaes póde ser dividida em Botanica applicada, physiologica, e pura ou fundamental. A applicada trata do uso dos vegetaes tanto medicinal, como economico, isto he, de todas as utilidades, que o homem póde tirar dos vegetaes; donde resulta que todos os tratados de materia medica, de agricultura; das differentes madeiras, das tintas vegetaes, etc. não são outra cousa mais do que huma Botanica applicada. A Botanica physiologica trata das funcções vitaes, e estructura organica dos entes do reino vegetal, e para esse fim se vale da Anatomia, Chymica, e Physica; a Pathologia dos vegetaes ou tratado das suas doenças, ainda que devêra ser separada, he comprehendida ordinariamente tanto na Botanica physiologica como na pura, e ainda mesmo nos tratados de Agricultura. A Botanica pura ou fundamental trata do modo de distinguir hum vegetal de todos os mais, por meio dos seus caracteres, ou signaes externos, com certeza, facilidade e brevidade. Ella he a que deve fazer objecto deste tratado, della dependem as duas precedentes.
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Ainda que o meu fim não he tratar neste epitome, senão dos principios relativos á Botanica pura, não me parece comtudo desacertado dar aqui algumas breves noções sobre a organização ou estructura interna dos vegetaes, para facilitar a intelligencia de alguns termos a ella respectivos, que se achão nas obras de Linneo e de muitos outros botanicos.
Os vegetaes tanto pela sua organização como pelas suas funcções vitaes tem huma grande analogia com os entes do reino animal; nascem, perecem, reproduzem por sementes ou ovos vegetaes da sua mesma especie; continuão-na também por gomos, ramos cortados e enxertias; circumstancias que se achão igualmente em alguns animaes; (2) tem orgãos sexuaes por meio dos quaes os ditos ovos são fecundados; de seu coito nascem ás vezes especies hybridas, outras vezes degenerão em monstros; são sujeitos a muitas enfermidades; observa-se na sua estructura hum grande numero de vasos destinados a differentes a funcções vitaes, e a conter diversos fluidos, etc.
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O corpo dos vegetaes em geral consta de epiderme (epidermis) ou cuticula exterior apegada á casca (cortex) producções assaz conhecidas; a ultima lamina interna da casca, hum tanto mais compacta do que ella he chamada livrilho ou alburno (liber; alburnum) que endurecido passsa a ser lenho (lignum s. materies); este he immediato ao alburno composto de muitas camadas concentricas ou aros annuaes (circuli concentrici, annuli annotini) e muito mais duro e compacto do que o alburno e casca; no centro se acha a medulla ou amago (medulla), e della partem ordinariamente varias linhas divergentes até á casca, que tem o nome de raios medullares (radii medullares), como se vê nos ramos do carvalho cortados transversalmente. A vida do vegetal reside principalmente na medulla e casca.
O systema vascular dos vegetaes he menos conhecido que os dos animaes; a anatomia e observações microscopicas tem comtudo descoberto quatro sortes de vasos; a saber os seivosos, proprios, aereos, e os utriculos. Os vasos seivosos (vasa sapaceae), chamados tambem fibras lenhosas e vasos Lymphaticos, contem a seiva chamada vugarmente agoadilha ou chorume (sapa humor plantarum) que he um fluido aquoso sem cor, sem cheiro, nem sabor. Ella passa por ser o succo nutritivo dos vegetaes, que se aperfeiçoa nos utriculos e alguns outros vasos delgados; ella se observa bem distinctamente nos ramos das videiras cortados na primavera; este vasos correm longitudinalmente ao lado das trachéas, são fasciculados, cruzão-se algumas vezes, outras vezes desvião-se mutuamente, deixando entre si espaços cheios de utriculos: podem-se observar distinctamente nas raizes das caneiras e lirios. Os vasos proprios (vasa propria) são também fibras lenhosas e succosas como os precedentes, mas são em menos numero, contêm succos mais espéssos, córados, lacteos, vermelhos, amarellos, saborosos, cheirosos; etc., e delles dependem as qualidades de cada vegetal, alguns physiologistas pensão que elles são analogos ao chilo, e sangue dos animaes; elles estão dispostos circularmente á roda do tronco, mas achão-se em maior numero na casca, e se podem observar nas euphorbias, celidonia, carthamus lanatus, etc. Os vasos aereos chamados ordinariamente tracheas (tracheae) são tubos formados de huma lamina elastica, espiral ou similhante a hum arame enroscado á roda de hum vime. Achão-se em todo o corpo do vegetal, correm ordinariamente parallelos aos vasos seivosos, e parecem ter maior diametro ou calibre do que os outros vasos. São destinados a contêr o ár ou pelo assim dizer, servem á respiração dos vegetaes, e se observão rasgando com brandura transversalmente em duas partes, as folhas da vide, rozeira e escabiosa. Os utriculos (utriculi) chamados tambem tecido cellular ou parenchyna (parenchyna) são huma especie de succos ovaes, esponjosos de varia grandeza, situados transversalmente e occupando as malhas ou intervallos, que deixão entre si os vasos longitudinaes; são destinados á elaboração dos succos nutritivos, achão-se em maior numero na casca do que no lenho; a medulla contêm os maiores, e não parece ser outra cousa mais do que hum montão desta substancia vesicular, ou vesiculas membranosas que communicão entre si. Podem observar-se no sabugueiro, choupo, carvalho etc. por meio de hum microscopio. Os raio medullares em muitas raizes, fructos, e algumas plantas marinhas, parecem ser quasi inteiramente utriculos, segundo as observações repetidas vezes feitas por muitos sabios physiologistas. Álem destes vasos ha tambem nos vegetaes, muitos outros destinados a secreções, e as differentes sortes de glandulas os indicão.
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Nos vegetaes não ha coração nem circulação; o movimento dos seus succos he chamado propulsão (propulsio), o calor, frio, ou frescura alternados, ou a acção do ár ambiente sobre a lamina das tracheas, parece ser a causa da propulsão dos succos, ao menos ha grande probabilidade, que a sua dilatação e condensação ajuda muito o jogo dos vasos. Nestes não ha valvulas algumas, o que hoje he raiz em hum bacêlo por ex., se arrancamos e reviramos a planta, dentro de pouco tempo virá a ser cume, sendo pelo contrario o antigo sido convertido em raiz. Os succos passão da raiz ao tronco pelas fibras internas do lenho, vão até ás ultimas ramificações vasculares das folhas, e descem para a raiz pelos vasos da casca, de modo que a raiz tira succos do tronco e este da raiz, álêm disto os ramos tirão tambem a sua nutrição pelas folhas, e as raizes pelas radiculas fibrosas ou capillares. As folhas absorvem como a pelle dos animaes, e em muitas plantas a maior parte da substancia nutritiva lhes entra pelas folhas: segundo alguns physiologistas os vegetaes em geral nutrem-se de dia pela via das folhas, e de noite pelas raizes, e no inverno aquellas plantas que nelle perdem inteiramente as suas folhas, só se nutrem pela raiz. O movimento da seiva e dos succos próprios tem lugar em todas as estações do anno, mas no inverno he mais lento; este movimento como já indiquei he ascendente e descendente como se prova pelas enxertias. Se na primavera cortamos um ramo das videiras, ou hervas maleitas, o ramo separado lança menos succo, e a sua effusão cessa, e se esgota muito tempo antes, que a do ramo ou tronco cortado que communica com a raiz; isto parece provar álêm dos dois movimentos, que ha huma especie de communicação da seiva descendente e ascendente na raiz, mas isso não obstante não merece o nome de circulação, por quanto nos vegetaes não ha coração, nem primeiro motor intrinseco dos succos, nem valvulas em quaesquer dos seus vasos (4). As injecções coradas tambem provão a favor do movimento da seiva, pois se tem visto nos feijoeiros regados com tinta de escrever, os succos negros terem subido até ás folhas. As tracheas achão-se em grande numero nas folhas, as quaes por isso mesmo alguns botanicos chamárão bofes dos vegetaes. Os orificios destes vasos ainda que se reconheção em ambas as duas faces das folhas, n'uma dellas sempre são em maior numero que na outra. A observação tem mostrado que a substancia aeriforme, que dellas exhala durante a noite he muito nociva, ao mesmo tempo que de dia exhalão outra com que se purifica a atmosphera; nellas parece residir a irritabilidade da sensitiva, e de outros vegetaes cujas folhas e flores se contrahem por estimulos externos.
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Nas enxertias, quaesquer que sejão tanto de garfo, como de escudo, flauta, entalhe etc., os succos passão do enxerto ao enxertado, e do enxertado ao enxerto alternativamente, em razão da anastomose ou reunião dos vasos de hum e outro. Esta reunião he tanto mais duravel quanto he mais perfeita; a sua perfeição consiste na grande analogia do garfo com o tronco enxertado, ou na grande affinidade de organização e dos succos. O garfo deve vir a ser hum tronco do enxertado, e por isso quanto maior for a dita affinidade, tanto mais depressa e firmemente se encorporará com elle, e tanto mais tempo viverá.
Os vegetaes, assim como os animaes, tendem todos naturalmente a reproduzir-se. Toda a sua vegetação se dirige a este fim, chamado ordinariamente fructificação, que tem principio nas flores e acaba no fructo. O grande numero de vegetaes relativamente á sua fructificação he reduzido a duas grandes classes, a saber: plantas perfeitas, e plantas imperfeitas (plante perfectae aut imperfectae). As perfeitas são aquellas em cujas flores se observão estames ou pistillos, ou ambos estes dois orgãos; as imperfeitas são aquellas que rigorosamente fallando não tem estes orgãos, e se os tem não são bem apparentes á vista nua, de sorte que a sua fructificação tem lugar por hum modo differente do das plantas perfeitas; são as que Linneo classificou na sua Cryptogamia, e as que os physiologistas chamão plantas microscopicas. No tempo da florescencia das plantas perfeitas, as observações dos modernos descobrirão em suas flores hum coito summamente analogo ao dos animaes, e reconhecerão que nellas havião genitaes dos dois sexos envoltos em certos tegumentos, a que dão ordinariamente o nome de calice ou corolla segundo as circumstancias. Os genitaes masculinos são chamados estames, e os femininos pistillo, o qual se acha ordinariamente no centro da flor, como se observa bem distinctamente em huma açucena. Cada estame he composto de duas partes inferior e superior, a primeira tem o nome de filete, e a segunda ou superior que termina o filete he chamada anthera. O pistillo consta em um grande numero de flores, de tres partes, a saber germe, estylete, e estigma; o germe he a parte mais inferior do pistillo ou o fructo recém-nascido, e nelle se achão já as sementes (5), ainda que não estejão fecundadas, como se observa nas flores da pereira, e alecrim; o estylete he hum fio posto immediatamente sobre o germe, e o estigma he a extremidade do estylete. As antheras são huma especie de capsula ou bolsa que dentro de huma tunica fina, contêm huma grande quantidade de pó de natureza rezinosa, chamado ordinariamente pó fecundante. Visto com o microscopio apresenta hum grande numero de globulos tambem cobertos de huma membrana finissima. No tempo da madureza da anthera, a tunica desta rebenta, e o pó ou globulos são lançados sobre o estigma visinho, ou levados a elle pelos ventos, no caso que esteja distante, como succede nas flores dioicas. O estigma sempre humido mais ou menos, detem ou attrahe estes globulos; em breves instantes a sua membrana inchada pela humidade rebenta e vibra certos atomos nimiamente moidos e subtis, a que alguns chamão vapor volatil ou aura seminal, a qual entrando pelo estylete (7) e correndo mais ou menos espaço se introduz pela cavidade umbilical nas sementes, e nellas derrama a fecundidade, isto he, dá o primeiro impulso, ou vida vegetal ao corculo que dantes parecia invisivel, e que pouco depois da fecundação, se divisa como hum ponto branco ou esverdinhado.
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Nas plantas imperfeitas não se conhecem a olhos nús os orgãos sexuaes; o microscopio os tem feito descobrir em algumas, mas ha outras em que nenhum observador ainda mesmo com este instrumento os tem podido até agora divisar, nem me parece que existão. He certo comtudo que todas dão sementes; os cogumelos, e o bolor, podem segundo a experiencia, ser semeados como as plantas perfeitas; quanto aos fetos e musgos as sementes são ainda mais bem conhecidas, e se não podem negar ainda mesmo aos limos, succos, e outros generos de Algas, se bem que pareção ser de huma forma exquisita em algumas especies.
Taes são em summa as principaes noções relativas á physiologia dos vegetaes. A Botanica pura tractando, como disse, do modo de distinguir com certeza os vegetaes huns dos outros, he o fundamento de todos os tractados de plantas, de qualquer sorte que sejão considerados. Ella se serve para este fim dos signaes caracteristicos que se achão em cada individuo do reino vegetal, ajuntando similhantes com similhantes, e separando os dissimilhantes. Desta reunião de plantas ou especies conformes em caracteres, resultão os generos infimos, que reunidos de novo, do modo que depois exporei em seu lugar (8), dão outros maiores chamados ordens e classes, vindo assim a constituir hum systema ou methodo.
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Os systemas são com justo motivo, considerados, como um fio das Ariadnes no immenso labyrintho vegetal; elles são hum grande soccorro da memoria, conduzem ao conhecimento do nome da planta, e nos mostrão se ella tem ou não sido conhecida dos botanicos, que nos tem precedido. Os signaes caracteristicos que se achão nas especies do reino vegetal, são os meios de que nelles se vale a Botanica, como disse para nos encaminhar a este conhecimento. Todos estes signaes são exprimidos por termos technicos, que reunidos formão o idioma botanico, cuja exposição he o principal objecto deste tractado. Antes de Linneo os termos facultativos de Botanica não tinhão huma accepção tão determinada como hoje tem, elle a fixou em hum grande numero; e se bem que alguns delles parecem ter ainda huma significação vaga e ambigua (9), cuidarei comtudo quanto me for possivel, em explicálas comforme as ideas, em que são hoje mais usualmente recebidas.
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NOTAS RESPECTIVAS DO AUTHOR.
(1) Muitos Naturalistas achão grande difficuldade em declarar com evidencia onde termina o ser vegetal e começa o animal: eu tratarei mais extensamente desta materia nos meus elementos de Botanica.
N. B. O author não chegou a publicá-los, pois só publicou a Flora Lusitana e Phytographia respectiva etc.
(2) Nos polypos.
(3) Alguns Botanicos fazem differença entre estas duas palavras, relativamente a algumas arvores, dizendo que o alburno medea entre o lenho e o livrilho, e tem huma consistencia diversa d'ambos, constituindo as primeiras camadas concentricas do corpo chamado ordinariamente, Lenho.
(4) Alguns physiologistas, que admittem a circulação nos vegetaes, dizem que ella he assás analoga á circulação que existe nos polypos.
(5) O Author manda consultar a nota (d) sobre as sementes, que diz respeito á composição das sementes.
(6) Elle constitue a cera bruta, que as abelhas tirão das flores.
(7) Adanson não quer que seja o pó seminal dos globos o que entra no estylete, mas sim hum espirito volatil, e envolto nelle (bem comparavel á materia electrica, que se acha envolta nos corpos electricos) e proprio para penetrar pelas tracheas do estylete. Com effeito he raro ver estyletes que sejão tubulosos, e a Anatomia não tem mostrado até agora nos estyletes, e germes cortados na florescencia, o menor indicio do pó dos globulos. Eu fallarei mais extensamente nesta materia nos meus elementos de Botanica.
N. B. O author não chegou a publicá-los que eu saiba.
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(8) O author manda consultar a exposição do systema de Linneo na 4.ª parte do seu compendio que hoje he a terceira parte desta edição.
Eu demonstrarei em outro tratado estas ambiguidades, e proporei as definições, com que semelhantes termos se podem fixar. N. B. Ignoro qual fosse esse tratado, porque o Doutor Brotero publicou, álem do compendio, a Flora Lusitana em 1804, e a sua Phytographia em 1826.